Pablo Neruda tem um livro intitulado “Para Nascer, Nasci”; este título reflete a ideia principal defendida nesta reflexão: a intervenção educativa nesta greve pode levar o ser humano a nascer outras vezes dele mesmo em interação com os outros, pode levar a “se parir” e a ajudar no “parto” dos outros, parto que, sendo singular, é histórico-social. A geração e a gestação têm como semente, a palavra, o discurso, a ação, que, através do diálogo, engendra, nos velhos humanos, novos humanos para um novo mundo em gestação no ventre do mundo velho. É uma gestação conflituosa, e, por vezes, contraditória, o que exige bom acompanhamento pré-natal. É preciso refletir a direção que a gente toma, para que não haja complicações nos momentos da concepção; é preciso escolher com cuidado a(s) metodologia(s) a ser(em) adotada(s) e os princípios que irão orientar todo o processo, para que bactérias oportunistas de autoritarismo velado no organismo fecundante não causem infecção generalizada, levando a óbito a universidade que desejamos que renasça nesse processo político instaurado agora em greve.
Nesse sentido, a depender da direção adotada, a intervenção educativa pode contribuir para a “natalidade”, ou para a “mortalidade”, de homens e mulheres que, no horizonte da emancipação, podem nascer deles mesmos ou morrerem neles mesmos. É preciso que a vida seja o sentido de toda a greve, não a morte.
[...] o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir. Nesse sentido de iniciativa, todas as atividades humanas possuem um elemento de ação e, portanto, de natalidade. Além disso, como a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode constituir a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico. (ARENDT, 2004, p. 17)
Todo espaço é pedagógico quando há duas ou mais pessoas ensinando e, ao mesmo tempo, aprendendo. A greve é um espaço pedagógico e pode ser vista como uma “maternidade”, um “berçário” de novos humanos a partir de interações desencadeadas sistemática e intencionalmente, ou o seu contrário: um lugar de mortalidade, do desperdício do ser humano no espaço e no lugar da vida que continua na cultura. O grande desafio que se apresenta é o seguinte: Como iniciar algo novo no velho a partir e após esta greve? Ou como afirma Boaventura de Sousa Santos: “Como fazer falar o silêncio sem que ele fale, necessariamente a linguagem hegemônica que o pretende fazer falar?” (SANTOS, 2001, p. 30). Bem, em se tratando de humanos, não há fórmulas racionalizantes que, ao invés de emancipar e fazer nascer, regulam, controlam e fazem morrer. De qualquer forma, tenho convicção de que há movimentos interativos que favorecem – a partir da criação de campos de interlocução, baseados em princípios éticos e democráticos – a manifestação súbita da novidade que, devido à condição da pluralidade, pode surgir de qualquer sujeito, em qualquer lugar, a qualquer momento, e pode contagiar o coletivo dos homens e mulheres. Creio ser este o caso desta greve. Greve contágio, que te pega no campo da indignação e te educa para a emancipação construída coletivamente.
Do desafio acima apresentado, nasce outro, a ele intrinsecamente ligado: que tipo de conhecimento pode ser acionado na Pedagogia e na prática educativa para que o novo humano surja do velho? Segundo Boaventura de Sousa Santos (2001), todo ato de conhecimento é uma trajetória de um ponto A, que designamos por ignorância, para um ponto B, que designamos por conhecimento. A partir das categorias emancipação/regulação ele compreende o conhecimento, conforme abaixo ilustrado, que eu fiz uma pequena modificação:
GREVE EMANCIPAÇÃO
A (Outro como objeto) B (Outro como sujeito)
A (Outro como objeto) B (Outro como sujeito)
COLONIALISMO SOLIDARIEDADE
GREVE REGULAÇÃO
(CAOS) B (ORDEM)
Ponto de ignorância ponto de saber
Santos (2001) afirma que “(...) Estamos tão habituados a conceber o conhecimento como um princípio de ordem sobre as coisas e sobre os outros que é difícil imaginar uma forma de conhecimento que funcione como princípio de solidariedade.” (p. 30). Somente este conhecimento-emancipação pode fazer nascer o outro como sujeito nascendo de uma “gestação” político-pedagógica, de si mesmo e dos outros, que se engravidam na troca sincera das palavras, o diálogo, a dialogicidade. O ser humano nasce do gozo partilhado sinceramente na palavra respeitosa e na ação solidária. Abrir mão de uma perspectiva entranhada em tradições patrimonialistas e autoritárias se faz necessário, pois nessa, o “gozo” é alcançado via “estupro”. (Trecho retirado do artigo parcialmente modificado “Os desdobramentos do programa todos pela alfabetização: “natalidade” e “mortalidade” humana em Ourolândia – Bahia”)
Pois é colega: e assim meu pensamento arendtiano, mesclado com o humanismo crítico Paulo freiriano, além do socorro de Boaventura de Sousa Santos. Discordo do seu “caos”. Lembrei-me de uma singular professor Georgehocoama, quando ele afirmava que o caos não existia. Para ele, não podia existir caos pelo simples fato de que tudo estava sistematizado pela humanidade no mundo contemporâneo. E o que não está, é porque inexiste. Se o mundo é uma criação humana, não pode haver caos, pois tudo passa a existir dentro de uma coerência humana, seja em senso comum, seja na interpretação científica das coisas. Quando você afirma que “é muito caos para pouca greve”, está contradizendo a própria pluralidade que Hannah Arendt acentua e que você aponta. Essa pluralidade é “natural” e desejável, pois, como afirmei de outra vez, o consenso que se constrói sem conflito é, no mínimo, suspeito. A participação de tantos atores – que bom! – com seus interesses e suas estratégias de poder geram, imprescindivelmente, o conflito, o embate, o debate, o contraditório, tão evitado nos espaços instituições da universidade que frequentamos. É por isso que a greve que ora se desenrola tem características reconhecidamente de emancipação, e não de regulação. Um fluxo de poder em forma de indignação veio à tona e expôs “as veias abertas da universidade” e derrubou a máscara de um governo que pousava de democrático, mas não passa de um intransigente e autoritário interlocutor.
Esta é uma greve-emancipação! Predominantemente. Uma greve que deseja o Outro como sujeito e não como objeto. Uma greve que deseja seres políticos ativos, disputando a palavra, o seu micro poder, o espaço político da revelação do que estava escondido debaixo do tapete. Eu creio nesta greve e nos seres humanos que nela entram para serem mais, sempre mais. Eu creio neste greve que fortalece nosso braço político: nossa Associação Docente da UNEB e espero que tal braço continue se fortalecendo num processo ininterrupto onde, todos nós, neste caos aparente, vá repensando e reconstruindo essa universidade para que ela seja o exemplo vivo e concreto de que educação emancipa, qualifica, melhora o humano para o serviço à sociedade a que pertence.
Joselito do Zé, da Nair, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
Com o auxílio de
ARENDT, Hanna. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1999.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 24. ed. São Paulo/SP: Paz e Terra, 2002.
SANTOS, Boaventura de S. A crítica da razão indolente: Contra o desperdício da experiência. Para um novo senso comum. A ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
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