terça-feira, 27 de março de 2012

PARTICIPAÇÃO

Ontem, 27/03/2012, assisti a entrevista que o repórter da Globo, Jorge Pontual, no programa Milênio, exibido na Globo News, fez com o filósofo americano Michael Sandel e fiquei, digamos, um pouco esperançoso diante do mundo que frequento com minha subjetividade. Ele fala do convite aristotélico ao telos, à participação no espaço público do debate e das decisões políticas. Sandel fala, num dos trechos, “que precisamos criar o sentimento de que o governo democrático pertence a todos.” Diz que precisamos criar um espírito de civismo e de responsabilidade pública e de que nossa política tornou-se muito gerencial e tecnocrática, focada demais em questões econômicas limitadas. Afirma que isso tem deixado à margem questões genuinamente políticas, inclusive questões éticas e questões espirituais que surgem no debate político. Pois bem: penso com ele que somente o debate público dos problemas que interessam à sociedade é que joga luz sobre tais problemas, a luz das vozes coletivas que se manifestam em discursos, posicionando-se ideologicamente e logicamente diante dos encaminhamentos que devam ser dados a tais problemas. Essa luz da participação no debate público não somente encaminha os problemas, supervisiona suas aplicações e implicações, reduzindo a possibilidade de corrupção e, também, educa o julgamento que as pessoas fazem de tais problemas, aprimorando sua capacidade e melhorando sua participação individual na arena pública das decisões.

Michael Sandel afirma que "a política é o exercício da capacidade humana de julgamento". De fato, a política é o espaço e o lugar, a arena, por assim dizer, de decisões que dizem respeito a todos e a todas, e, tanto essas decisões como seu conteúdo e seu processo, devem ser trazidas para o âmbito da participação, da possibilidade de participação de toda e qualquer pessoa que assim o deseje, inaugurando, de fato, a democracia. O debate é algo fundante de todo processo e de qualquer estrutura que se caracterize como democrática. É no debate que os posicionamentos se revelam e que a dialética se estabelece, permitindo metadebates, ou seja: a análise reflexiva do que está sendo dito; do que não está, mas deveria ser dito; do que não deveria ser dito, do que já foi dito antes e está sendo reeditado e, entre benditos e malditos, a decisão seja um processo em que, tanto seus encaminhamentos, quanto seus desdobramentos favoreçam o aprimoramento da capacidade humana de julgar o objeto de discussão e de posicionar-se conforme suas crenças, suas ideologias e suas razões diversas.

A participação é uma condição requerida em todo o processo social. É muito difícil encontrar alguém que, deliberadamente, possa colocar-se contra a participação. No mundo empresarial, por exemplo, o modelo de gestão requer a participação ativa do funcionário, “vestindo a camisa da empresa” a fim de reduzir custos e aumentar a produtividade, visto que, em última instância, quem faz a diferença não são as novas tecnologias, mas empregados criativos, participativos e dinâmicos. Mas o que é mesmo participar? Segundo Habermas (1975, p.159), “significa que todos podem contribuir, com igualdade de oportunidades, nos processos de formação discursiva da vontade.” Interpretando-o, Catani e Gutierrez nos diz que “participar consiste em ajudar a construir comunicativamente o consenso quanto a um plano de ação coletivo.” (2000, p.62). Penso que tal definição vai ao encontro do que Michael Sandel afirma sobre o amadurecimento da capacidade de julgamento individual na participação ativa da formação discursiva da vontade, onde os consensos e os conflitos a partir de posicionamentos distintos vão nos permitindo adotar uma perspectiva de alteridade, a partir do trânsito que somos obrigados a fazer, até mesmo para compreender, do nosso olhar para outros olhares, do que achamos ser nosso discurso para outros discursos sobre os problemas apresentados na arena do debate político, na multiplicidade de discursos e sentidos que a memória atualiza no tecimento ininterrupto da realidade e dos sujeitos. 

Nesse sentido, a participação requer, a meu ver, o envolvimento de diferentes atores sociais num ambiente democrático e dialógico, para que a formação discursiva da vontade não caia no erro da imposição da vontade, tornando-a artificial, uma espécie de contravontade, baseada numa necessidade artificial. Em função disso, esse ambiente é criado, não por artificialidades burocráticas e demagógicas, mas por uma necessidade coletiva detectada pragmaticamente pelo coletivo de pessoas que compartilham de uma experiência semelhante sobre o mundo em que estão inseridos, e que precisam decidir, da melhor forma possível, sobre o que fazer diante dos problemas que os afetam. Há, inevitavelmente, um processo educativo assistemático, mas eficaz, quando um sujeito se insere, por obrigação, curiosidade ou necessidade, na “construção discursiva da vontade” geral. A responsabilidade pela construção do espaço público, pelo cuidado com o espírito cívico, a capacidade de ouvir, a sensibilidade da escuta, a consideração de um ponto de vista diferente do seu, a busca da superação do conflito pela construção do consenso, através de negociações e construções de acordos, onde há perdas e ganhos individuais, entre outros, contribuem, sobremaneira, para a educação política de cada sujeito envolvido diretamente no processo que se desenvolve no debate público. 


Esse raciocínio acima me lembra a história do discípulo que queria ser sábio e procurou seu mestre para realizar seu desejo. Chegou à presença do mestre e afirmou o seu intento: - Mestre, desejo ser sábio! O mestre prontamente respondeu: - Você já comeu? O discípulo ficou confuso. Pensou consigo: - eu venho aqui à presença do mestre e revelo o meu nobre desejo de tornar-me sábio e ele me responde com uma pergunta que beira o non sense. De qualquer forma, o discípulo respondeu: - Já mestre, eu já comi. Ao que o mestre recomendou: - Então vá lavar a tigela! O grande problema de muitos discípulos é que desejam o “mestrado” antes de “lavarem a tigela”, antes de começarem a pensar sobre as coisas simples do cotidiano e se debruçarem a entendê-las. Não percebem que a sabedoria começa pela contemplação das coisas aparentemente banais e pelo envolvimento reflexivo no cuidado  com as coisas mais simples e imediatas da vida.  Não percebem que a aprendizagem da participação se dá pela participação mesma, ativa, reflexiva, constante, persistente. É dessa participação que nascem os conteúdos universais que conduzem o ser humano à sabedoria.

Contudo, os espaços públicos de decisão estão a cada dia mais degradados, mais asfixiados, mais entupidos de sujeiras, de lixo, de gordura, de bactérias e de vírus, produzindo um chorume político e cultural que ameaça a debilitada democracia brasileira. Como aprender a exercer a participação numa nação onde os Três Poderes da República se locupletam em indecência, escândalos, desvios do dinheiro público, cinismo, e, sobretudo, a impunidade sem-vergonha que sela o bom investimento dos criminosos. As pessoas, ao se defrontarem com esse mar de lama, receiam participar de tudo o que vem com a marca do público, pois temem afundar nessa areia movediça que caracteriza o poder público, com raras exceções, no Brasil. Assim, vão privando seus discursos dos insultos públicos e vão se privando de indignar-se publicamente diante desse estado corrupto de coisas, nos espaços criados para isso. Essa atitude vai asfixiando ainda mais a democracia, por falta do contraditório, por falta do anseio de justiça, pela banalização e naturalização da injustiça, da impunidade, da incompetência sistematicamente construída para manter o privilégio nesse país de falácias. A luz do público vai se apagando e, no escuro desse processo, os bandidos, os facínoras, os cínicos, os fatalistas, os criminosos, vão agindo, distantes dos olhos da população. Até a religião vai encontrando caminho para impor seus dogmas e suas crenças únicas, ferindo de morte a pluralidade religiosa, como acontece em Ilhéus, onde é exigida a oração do Pai Nosso antes do início das aulas. 

Mas ainda há esperança. Aqui mesmo em Salvador, o Movimento Desocupa Salvador representa uma iniciativa pública na criação de um espaço de debates e manifestações contra o abandono em que nossa cidade se encontra, não apenas pelo atual ex-prefeito – pois já deixou de governar a cidade desde o carnaval – mas também pelo atual Governador, que não toma iniciativa alguma para salvar a cidade do abandono em que se encontra, entregue ao lixo, ao mijo, aos bandidos, aos automóveis, aos arranha-céus que se multiplicam sem planejamento urbano, aos empresários espertalhões do carnaval que invadem Salvador com seus megacamarotes em busca do lucro mesquinho. Esse movimento não aceita participação dos partidos, sabe que será usado eleitoralmente e evita a lama que alcança a bainha – nem só a bainha – das calças dos que se vestem, comem, se movem, viajam com os recursos públicos. Esse “Desocupa”, de certa forma, reinventa a política, porque requer a participação por amor ao espaço público, pela defesa e promoção desse espaço, pelo civismo que caracteriza o movimento, em busca de uma cidade e de agentes políticos ativos, movidos pelo cuidado com o que é de todos, e não apenas do que é apenas meu, ou apenas seu. O que essas pessoas estão fazendo nos convida a sair do sonho ilusório, do abstrato da palavra e adentrar em sua concretude, unindo reflexão e ação, sonho e realidade, ser humano e sua cidade, tornando-nos políticos acima de qualquer suspeita, porque decidindo na luz que emana dos espaços democráticos de decisões.
Joselito Manoel com o auxílio de
BARROSO, João. O reforço da autonomia das escolas e a flexibilização da gestão escolar em Portugal. In Gestão democrática da educação: atuais tendências, novos desafios. Naura Carapeto Ferreira (org.) 2. Ed. São Paulo: Cortez, 2000.
MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. 2. Ed. São Paulo: Contexto, 2010.
GUTIERREZ, Gustavo Luis; CATANI, Afrânio Mendes. Participação e gestão escolar: conceitos e potencialidades. In Gestão democrática da educação: atuais tendências, novos desafios. Naura Carapeto Ferreira (org.) 2. Ed. São Paulo: Cortez, 2000.

Um comentário:

  1. È um apena pensarmos que nessa sociedade hipocritamente construída por politico corruptos e homens de coração e espírito marcados pela sujeira da corrupção, os homens e mulheres de boa vontade ainda não se conscientizaram que é preciso se posicionar e participar ativamente das decisões politicas,afim de que essas possam favorecer o bem viver de todas as camadas sociais.

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