quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

A ESTRADA QUE ATRAVESSA O CAMINHO DAS BORBOLETAS


Esses últimos dias dirigi bastante. Fui à Baixa Grande, voltei para Jacobina, fui à Quixabeira e, de lá, voltei para Salvador. Eu gosto de dirigir. Enquanto trafego por estradas que parecem não ter fim, fico contemplando a paisagem. Uma das coisas que mais gosto é observar as casas avarandadas que me observam passar velozmente. Elas sempre estão ali vigilantes, testemunhando a procissão veloz que, à distância, parece lenta.

Sinto uma imensa vontade de dirigir-me até lá. Para ficar um pouco naquele lugar de vigia. Pedir um copo d’água fresca como desculpa e sentar no chão frio de cimento, para ficar dali registrando o mundo ir e voltar, no círculo de costume que ele faz pra viver, como a trilha cotidiana das formigas construindo a vida. De fato, olhando dali, eu também sou uma formiga. Nada mais que uma formiga, que sobe e desce, vai e volta, circula constantemente a construção que a existência exige. Mas eu continuo. Estou preso no destino que escolhi momentaneamente. E eu mesmo sou o mundo que vai e volta para continuar vivendo como eu quero. Embora a estrada pareça reta, sei claramente que estou traçando um círculo ou uma elipse em minha vida.

Este círculo ou esta elipse que traço deve ter um centro em torno do qual giro. Deve ter. E é por isso mesmo que investigo a minha subjetividade que também trafega, para ver se consigo encontrar o meu sol, ou os meus sóis e minhas luas, astros em torno dos quais desenvolvo as minhas quatro estações. E dirijo, absorto em pensamentos que me acompanham estrada adentro ou afora, numa velocidade espantosa.

Pensamentos que me afligem
sentimentos que me dizem
dos motivos escondidos
na razão de estar aqui.
As perguntas que me faço
são levadas ao espaço
e de lá eu tenho todas
as respostas que pedi...

Assim como o velho rei Roberto Carlos, Sempre procuro Deus para conversar. Mas evito as religiões e os religiosos profissionais. Como a maioria deles procura evitar artificialmente o mundo, eu procuro evitá-los concretamente. Porque eu sou mundo. E dirijo, rezando pra ver se consigo alcançar equilíbrio no giro que traço na vida em que existo.

E foi vindo de Baixa Grande para Jacobina, passando por Mundo Novo e sua paisagem belíssima, e depois, voltando de Quixabeira para Salvador, que deparei-me com o título deste texto. Estou muito sensível. E havia um tráfego intenso cortando a estrada: o de borboletas. E percebi o quanto estava matando no choque entre o ferro veloz e impiedoso, pintado de prata, e a asa frágil colorida pela vida. Então, movido por Beto Guedes – “Tudo que move é sagrado e remove as montanhas com todo o cuidado...” – comecei a desviar das asas frágeis que batiam em busca da outra margem da estrada. E fiquei pensando no porquê das borboletas atravessarem a estrada. Algum biólogo especializado nas asas frágeis deve saber. Vi muitas debatendo seus últimos suspiros no asfalto estendido no chão. Seu voo interrompido pela velocidade brusca dos humanos atrasados. Os humanos estão muito atrasados.

Mas, outro pensamento assaltou-me: percebi que não eram as borboletas que cortavam a estrava, mas, ao contrário, era a estrada que cortava o caminho das borboletas. Como os humanos estão atrasados, eles chegaram depois das borboletas e, como elas são muito frágeis, os humanos não conseguem perceber fragilidades e, por isso mesmo, colocaram a estrada ali, sem consultar as borboletas e seu trajeto magnífico. Foi aí que me senti ainda mais insensível. E foi por isso que comecei a tentar desviar das criaturas aladas cujo caminho eu invadia com a crueldade veloz de ferro, plástico, óleo, combustível e borracha. Pensei ainda em parar o carro, sei lá. Ficar no acostamento contemplando a procissão sagrada que a estrada atravessava. Mas continuei, rezando por elas e agradecendo a sua existência poderosa e frágil.

Vamos colocando nossas estradas por aí, nossas barragens acolá, nossos edifícios ali e nossas piscinas alá, sem pensar nos pequenos seres da vida que precisam existir, para nós continuarmos existindo. As asas no seu trajeto conduziam a vida à vida diante dos meus olhos. Vida batendo delicadas asas, enviando informações mais adiante de que a vida continua e se transforma. A estrada já está ali há algum tempo e não sai dali tão cedo. Continua atravessando a vida. O ser humano, atrasado e arrogante, pensa que está construindo estradas e permitindo o desenvolvimento. Hum. No dia em que o ser humano inventar uma máquina que triture capim de um lado e dê leite pelo outro eu vou comemorar e beber à genialidade humana. A natureza já se antecipou: nos deu a vaca. O desenvolvimento já foi dado pela vida, pela forma como a natureza nos doou este lugar, com lagos, com rios e mares, com árvores e frutos, com montanhas e geleiras, enfim, com fauna, flora, e tudo que aflora, inclusive as borboletas frágeis que invadem os meus olhos e me contam segredos da vida que voa sua arte delicada de cor e leveza.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, das borboletas, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel. 

Um comentário:

  1. Que texto belo... Quanta sensibilidade presente na observação do revoar das borboletas e em todo o contexto de sua existência e coexistência entre nós! Mais uma vez e sempre, encantada.

    Abraço,

    Mayre

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