quarta-feira, 26 de março de 2014

A GENTE NÃO QUER SÓ COMIDA. A GENTE QUER PODER!

O fato das classes populares procurarem a educação sistemática nas escolas, cursos técnicos privados, como é o caso do SENAI e do SENAC e universidades, para inserirem-se no mercado de trabalho, a fim de garantir a sua existência primária gera, a meu ver, um sério distúrbio na formação política dos indivíduos que pertencem a tais classes sociais e culturais, levando-os à distinção prejudicial entre a educação para o trabalho e a educação para a formação filosófica e política tal como a ditadura e os Estados Unidos sempre quiseram.

A divisão social do trabalho no perverso regime capitalista brasileiro gerou, inevitavelmente, a divisão social da educação. As classes médias e as elites intelectuais sempre encontraram na universidade pública o espaço da realização de seus interesses e de solução de suas necessidades, enquanto as classes populares sempre procuraram as escolas da educação básica e as escolas técnicas como caminho para o acesso ao emprego e na esperança de uma ascensão social que o capitalismo prometia em suas propagandas ilusórias. Daí que as mobilizações sociais e as lutas políticas no campo educacional, consequentemente, refletiram essa realidade. Os desdobramentos desse fenômeno são visíveis na realidade educacional brasileira.

Para a grande maioria da população, o acesso à educação e à formação profissional é uma forma de garantir a sobrevivência e mesmo a ascensão social. E isso, obviamente, não é em si errado. O que está certamente errado é que os jovens procurem uma profissão não em virtude de suas aptidões, mas dos movimentos no mercado de trabalho, e às vezes entrem numa carreira contra suas próprias aptidões e preferências. Para essas pessoas, o custo psicológico ou emocional pode não ser pequeno com o passar dos anos. (DUTRA, 2000, p.12-13)
Não somente um custo psicológico ou emocional, na dimensão individual, mas principalmente na dimensão política da organização e ação coletiva. Agora eu entendo perfeitamente a proposta de Miguel Arroyo, quando eu era mais jovem, ainda estudante da Universidade Católica do Salvador, quando este pesquisador, afirmava que a escola devia derrubar os seus muros e ser educada pelo movimento social. A escola, com seu currículo formal, faz desaparecer as classes sociais e invisibiliza a importante luta política dos movimentos sociais. No sentido de educação política dos educandos, há na verdade, uma “deseducação”, que “des-ensina” que o estudo é que a mola propulsora para a ascensão social, ou seja: uma mentira deslavada em se tratando da coletividade organizada em classes e movimentos sociais. Não sou contra as pessoas estudarem, alcançarem posições outras na sociedade, afinal, como diria um grande profeta, uma luz não é para ficar embaixo de uma cama, mas no centro da sala, iluminando o ambiente inteiro. Contudo, todas as pessoas são luzes, pelos menos quando nascem. Mas o capitalismo, unido ao racismo, ao machismo, à homofobia e à luta de classes no Brasil, apaga muitas luzes de mulheres, negros, homossexuais e pobres, por exemplo, para que somente as luzes dos brancos, heteros e machos apareçam no palco social.

O resultado ideológico disso é fatal para a compreensão política de uma transformação social, não apenas individual, da realidade capitalista hegemônica. Muitos de nós, inclusive eu, até ontem, acredita que utilizando a nossa inteligência individual alcançaremos uma colocação melhor no mercado de trabalho e, como desdobramento, uma melhor condição econômica, social e cultural, como eu alcancei. Mas não estou feliz. Não me sinto realizado. Estou na mesma situação que Raul Seixas estava outrora, refletindo sobre seu “ouro de tolo”:
Eu devia estar contente
porque eu tenho um emprego
sou um dito cidadão respeitável
e ganho quatro mil cruzeiros
por mês
Eu devia agradecer ao Senhor
por ter tido sucesso
na vida como artista
eu devia estar feliz
porque consegui comprar
um Corcel 73
 
Eu devia estar alegre
e satisfeito
por morar em Ipanema
depois de ter passado fome
por dois anos
aqui na Cidade Maravilhosa
Ah!
eu devia estar sorrindo
e orgulhoso
por ter finalmente vencido na vida
mas eu acho isso uma grande piada
e um tanto quanto perigosa
Eu devia estar contente
por ter conseguido
tudo o que eu quis
mas confesso abestalhado
que eu estou decepcionado
[...] Ah!
Mas que sujeito chato sou eu
que não acha nada engraçado
macaco, praia, carro
jornal, tobogã
eu acho tudo isso um saco
É você olhar no espelho
se sentir
um grandessíssimo idiota
saber que é humano
ridículo, limitado
que só usa dez por cento
de sua cabeça animal
e você ainda acredita
que é um doutor
padre ou policial
que está contribuindo
com sua parte
para o nosso belo
quadro social

 
O “nosso belo quadro social” só será transformado quando percebemos que nossa ascensão individual é irrelevante do ponto de vista de uma ascensão social. O mundo está um merda, e o Brasil está uma bosta. E eu estou nessa bosta de oito milhões de metros quadrados, que exala seu odor nos inúmeros assassinatos de milhares de pessoas, todos os anos, principalmente as de pele negra; eu estou nesse bosta de educação pública que leva centenas de semianalfabetos para a universidade; eu estou nessa bosta de administração pública que gesta a corrupção governos afora. Há centenas de campos de concentração nesse país! Milhares de espaços dominados pelo tráfico que se retroalimenta do interesse das elites brancas que nos governam. E assim vamos perecendo como povo, como nação.

O custo político disso é gravíssimo. Vamos nos dividindo, cada vez mais, torcendo para um pai, seja Getúlio em outros tempos, seja Lula em nosso tempo, deixando de ser um povo altivo e lutador e nos transformando num mero grupo imenso de pedintes, de mendigos do poder, unidos pela pobreza econômica e política que nos condiciona, estendendo nosso voto, sem entender o nosso ato. Penso que, na Bahia e no Brasil, já passou muito da hora do homem/mulher simples deixar de ser simplório e tornar-se sofisticado, principalmente os mais pobres. Uma das primeiras tarefas nessa direção é começar a unir educação e trabalho, de modo tal, que desenvolva sua inteligência política, sua sagacidade discursiva, sua criatividade crítica a tal ponto que enfrente toda a enxurrada de banalidades que os bombardeiam nesse mundo da imagem superficial, que os tratam como uma reles marionete no joguete político que agora se apresenta. Precisamos ser bons técnicos, mas técnicos filósofos, que identifiquem as manobras ideológicas concebidas com o intuito de nos separar, de fazer com que acreditemos na balela de que a concorrência de mercado é que vai nos tornar mais aptos para sermos inseridos na “sociedade”.

Vamos deixar de ser simplistas e simplórios, agradecer a Deus por tudo, resignados. Temos de ser como Jó, e demonstrar que estamos insatisfeitos com esse país de bosta. Precisamos acordar desse pesadelo que a ideologia dominante nos faz sonhar. Precisamos querer mais e mais, ir cantando com os Titãs, como Titãs, afinal, é isso que o povo unido é: um titã!

Bebida é água!

comida é pasto!

Você tem sede de que?

Você tem fome de que?...
 

 A gente não quer só comida

a gente quer comida

diversão e arte
 

A gente não quer só comida,

a gente quer saída

para qualquer parte...

 A gente não quer só comida
a gente quer bebida

diversão, balé

A gente não quer só comida

a gente quer a vida

como a vida quer...

Bebida é água!

comida é pasto!

Você tem sede de que?

Você tem fome de que?...


Nós queremos alegria, nós queremos educação de alta qualidade, nós queremos estradas pavimentadas sem pedágios, nós queremos seriedade e agilidade dos governantes, nós queremos corruptos na cadeia sem regalias, nós queremos uma cidade que respeite a todos (as) e uma polícia que proteja a todos (as); nós não queremos copa do mundo, nem queremos “salvar a seleção”. Queremos que a seleção, com seus milionários jogadores, se lasque! Queremos uma educação que nos ensine a perceber as contradições sociais e a estabelecer posicionamentos sociais e políticos diante da negação da maioria da humanidade brasileira. E você? Quer o quê?
Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
Com o auxílio de

DEMO, Pedro. Pobreza política: a pobreza mais intensa da pobreza brasileira. Campinas, SP: Armazém do Ipê (Autores Associados), 2006.
DUARTE, Newton. Sociedade do conhecimento ou sociedade das ilusões?: quatro ensaios crítico-dialéticos em filosofia da educação. Campinas, SP: Autores Associados, 2003.
FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. 5. ed., São Paulo: Cortez, 2003.
Raul Seixas e Titãs.
  

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