O
fato das classes populares procurarem a educação sistemática nas escolas,
cursos técnicos privados, como é o caso do SENAI e do SENAC e universidades,
para inserirem-se no mercado de trabalho, a fim de garantir a sua existência
primária gera, a meu ver, um sério distúrbio na formação política dos
indivíduos que pertencem a tais classes sociais e culturais, levando-os à
distinção prejudicial entre a educação para o trabalho e a educação para a
formação filosófica e política tal como a ditadura e os Estados Unidos sempre quiseram.
A
divisão social do trabalho no perverso regime capitalista brasileiro gerou,
inevitavelmente, a divisão social da educação. As classes médias e as elites
intelectuais sempre encontraram na universidade pública o espaço da realização
de seus interesses e de solução de suas necessidades, enquanto as classes
populares sempre procuraram as escolas da educação básica e as escolas técnicas
como caminho para o acesso ao emprego e na esperança de uma ascensão social que
o capitalismo prometia em suas propagandas ilusórias. Daí que as mobilizações
sociais e as lutas políticas no campo educacional, consequentemente, refletiram
essa realidade. Os desdobramentos desse fenômeno são visíveis na realidade
educacional brasileira.
Para a grande maioria da
população, o acesso à educação e à formação profissional é uma forma de
garantir a sobrevivência e mesmo a ascensão social. E isso, obviamente, não é
em si errado. O que está certamente errado é que os jovens procurem uma
profissão não em virtude de suas aptidões, mas dos movimentos no mercado de
trabalho, e às vezes entrem numa carreira contra suas próprias aptidões e
preferências. Para essas pessoas, o custo psicológico ou emocional pode não ser
pequeno com o passar dos anos. (DUTRA, 2000, p.12-13)
Não
somente um custo psicológico ou emocional, na dimensão individual, mas principalmente na
dimensão política da organização e ação coletiva. Agora eu entendo
perfeitamente a proposta de Miguel Arroyo, quando eu era mais jovem, ainda
estudante da Universidade Católica do Salvador, quando este pesquisador,
afirmava que a escola devia derrubar os seus muros e ser educada pelo movimento
social. A escola, com seu currículo formal, faz desaparecer as classes sociais
e invisibiliza a importante luta política dos movimentos sociais. No sentido de
educação política dos educandos, há na verdade, uma “deseducação”, que “des-ensina”
que o estudo é que a mola propulsora para a ascensão social, ou seja: uma mentira
deslavada em se tratando da coletividade organizada em classes e movimentos sociais.
Não sou contra as pessoas estudarem, alcançarem posições outras na sociedade,
afinal, como diria um grande profeta, uma luz não é para ficar embaixo de uma
cama, mas no centro da sala, iluminando o ambiente inteiro. Contudo, todas as
pessoas são luzes, pelos menos quando nascem. Mas o capitalismo, unido ao racismo, ao machismo, à homofobia e à luta de classes no Brasil, apaga muitas luzes de
mulheres, negros, homossexuais e pobres, por exemplo, para que somente as luzes
dos brancos, heteros e machos apareçam no palco social.
O
resultado ideológico disso é fatal para a compreensão política de uma
transformação social, não apenas individual, da realidade capitalista
hegemônica. Muitos de nós, inclusive eu, até ontem, acredita que utilizando a
nossa inteligência individual alcançaremos uma colocação melhor no mercado de
trabalho e, como desdobramento, uma melhor condição econômica, social e
cultural, como eu alcancei. Mas não estou feliz. Não me sinto realizado. Estou
na mesma situação que Raul Seixas estava outrora, refletindo sobre seu “ouro de
tolo”:
Eu
devia estar contente
porque
eu tenho um emprego
sou
um dito cidadão respeitável
e ganho quatro mil cruzeiros
por
mês
Eu
devia agradecer ao Senhor
por
ter tido sucesso
na
vida como artista
eu
devia estar feliz
porque
consegui comprar
um
Corcel 73
Eu
devia estar alegre
e satisfeito
por
morar em Ipanema
depois
de ter passado fome
por
dois anos
aqui
na Cidade Maravilhosa
Ah!
eu
devia estar sorrindo
e orgulhoso
por
ter finalmente vencido na vida
mas
eu acho isso uma grande piada
e um tanto quanto perigosa
Eu
devia estar contente
por
ter conseguido
tudo
o que eu quis
mas
confesso abestalhado
que
eu estou decepcionado
[...]
Ah!
Mas
que sujeito chato sou eu
que
não acha nada engraçado
macaco,
praia, carro
jornal,
tobogã
eu
acho tudo isso um saco
É
você olhar no espelho
se
sentir
um
grandessíssimo idiota
saber
que é humano
ridículo,
limitado
que
só usa dez por cento
de
sua cabeça animal
e você ainda acredita
que
é um doutor
padre
ou policial
que
está contribuindo
com
sua parte
para
o nosso belo
quadro
social
O “nosso
belo quadro social” só será transformado quando percebemos que nossa ascensão
individual é irrelevante do ponto de vista de uma ascensão social. O mundo está
um merda, e o Brasil está uma bosta. E eu estou nessa bosta de oito milhões de
metros quadrados, que exala seu odor nos inúmeros assassinatos de milhares de
pessoas, todos os anos, principalmente as de pele negra; eu estou nesse bosta
de educação pública que leva centenas de semianalfabetos para a universidade; eu
estou nessa bosta de administração pública que gesta a corrupção governos
afora. Há centenas de campos de concentração nesse país! Milhares de espaços
dominados pelo tráfico que se retroalimenta do interesse das elites brancas que
nos governam. E assim vamos perecendo como povo, como nação.
O custo político disso é gravíssimo. Vamos nos dividindo, cada vez mais, torcendo para um pai, seja Getúlio em outros tempos, seja Lula em nosso tempo, deixando de ser um povo altivo e lutador e nos transformando num mero grupo imenso de pedintes, de mendigos do poder, unidos pela pobreza econômica e política que nos condiciona, estendendo nosso voto, sem entender o nosso ato. Penso que, na Bahia e no Brasil, já passou muito da hora do homem/mulher simples deixar de ser simplório e tornar-se sofisticado, principalmente os mais pobres. Uma das primeiras tarefas nessa direção é começar a unir educação e trabalho, de modo tal, que desenvolva sua inteligência política, sua sagacidade discursiva, sua criatividade crítica a tal ponto que enfrente toda a enxurrada de banalidades que os bombardeiam nesse mundo da imagem superficial, que os tratam como uma reles marionete no joguete político que agora se apresenta. Precisamos ser bons técnicos, mas técnicos filósofos, que identifiquem as manobras ideológicas concebidas com o intuito de nos separar, de fazer com que acreditemos na balela de que a concorrência de mercado é que vai nos tornar mais aptos para sermos inseridos na “sociedade”.
O custo político disso é gravíssimo. Vamos nos dividindo, cada vez mais, torcendo para um pai, seja Getúlio em outros tempos, seja Lula em nosso tempo, deixando de ser um povo altivo e lutador e nos transformando num mero grupo imenso de pedintes, de mendigos do poder, unidos pela pobreza econômica e política que nos condiciona, estendendo nosso voto, sem entender o nosso ato. Penso que, na Bahia e no Brasil, já passou muito da hora do homem/mulher simples deixar de ser simplório e tornar-se sofisticado, principalmente os mais pobres. Uma das primeiras tarefas nessa direção é começar a unir educação e trabalho, de modo tal, que desenvolva sua inteligência política, sua sagacidade discursiva, sua criatividade crítica a tal ponto que enfrente toda a enxurrada de banalidades que os bombardeiam nesse mundo da imagem superficial, que os tratam como uma reles marionete no joguete político que agora se apresenta. Precisamos ser bons técnicos, mas técnicos filósofos, que identifiquem as manobras ideológicas concebidas com o intuito de nos separar, de fazer com que acreditemos na balela de que a concorrência de mercado é que vai nos tornar mais aptos para sermos inseridos na “sociedade”.
Vamos
deixar de ser simplistas e simplórios, agradecer a Deus por tudo, resignados. Temos de ser como Jó, e demonstrar que estamos insatisfeitos com esse país de bosta. Precisamos acordar desse pesadelo que a
ideologia dominante nos faz sonhar. Precisamos querer mais e mais, ir cantando
com os Titãs, como Titãs, afinal, é isso que o povo unido é: um titã!
Bebida é água!
comida é pasto!
Você tem sede de que?
Você tem fome de que?...
a gente quer comida
diversão e arte
A gente não quer só comida,
a gente quer saída
para qualquer parte...
a gente quer bebida
diversão, balé
A gente não quer só comida
a gente quer a vida
como a vida quer...
Bebida é água!
comida é pasto!
Você tem sede de que?
Você tem fome de que?...
Nós
queremos alegria, nós queremos educação de alta qualidade, nós queremos estradas
pavimentadas sem pedágios, nós queremos seriedade e agilidade dos governantes, nós queremos
corruptos na cadeia sem regalias, nós queremos uma cidade que respeite a todos (as) e uma polícia que proteja a todos (as); nós não queremos copa do mundo, nem queremos “salvar
a seleção”. Queremos que a seleção, com seus milionários jogadores, se lasque! Queremos uma educação que nos ensine a perceber as contradições sociais e a estabelecer posicionamentos sociais e políticos diante da negação da maioria da humanidade brasileira. E você? Quer o quê?
Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de
Jesus, O EmanuelCom o auxílio de
DEMO, Pedro. Pobreza política: a pobreza mais intensa da pobreza brasileira. Campinas, SP: Armazém do Ipê (Autores Associados), 2006.
Raul Seixas e Titãs.
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