terça-feira, 12 de agosto de 2014

“POR QUE SIM”? POR QUE NÃO?


A filosofia nos coloca perguntas que muitas vezes, a maioria delas, não sabemos responder satisfatoriamente. E é nesse ponto que reside sua força de saber que não se conforma com o óbvio, rejeitando-o e exigindo respostas cada vez mais profundas e sofisticadas. E essa possibilidade formativa foi tirada da juventude. Desde o período mais cruel da ditadura no Brasil, apoiada pelo governo norte americano, a filosofia e a sociologia foram retiradas do currículo escolar, prejudicando severamente o desenvolvimento do pensamento critico naquele período pós 64. Formar trabalhadores servis, inseridos no quadro profissional e social daquele período e obedientes às determinações emanadas de cima, prejudicou o surgimento de um povo que iria construir uma nação.

Em minha juventude, parte da Igreja Católica desempenhou um importante papel em minha formação humana, recuperando elementos críticos oferecidos pelo universo da Teologia da Libertação e das organizações em Comunidades Eclesiais de Base, que criaram espaços abertos para a juventude expressar sua força, suas contradições e seus processos de construção cultural e social. A Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), desempenhou um papel importantíssimo no desenvolvimento de minha inteligência e de minha percepção critica diante do mundo que se descortinava na esperança de sua transformação a favor dos oprimidos, dos lascados das periferias do mundo. Havia muita filosofia na forma como nossas lideranças – William, ValdirMarina, Rita, Maria José, Robson, Marta, Fátima, Irmã Elena, Irmã Amparo, Padre Renzo Rossi, os ex-padres Lorenzo e Rodolfo, Padre Justino, Jailton, Padre Carlos, Marquinhos, Moisés e tantos (as) outros (as) – abordavam a realidade: o mundo e o Reino de Deus. Nós acreditamos num Deus vivo, que deseja que seus filhos cresçam, com capacidade de enfrentar as injustiças e identificar as origens das estruturas que a sustentam, com reflexão crítica.

Lideranças que trabalhavam com o povo, com lavadeiras, pescadores (as), desempregados (as), subempregados (as), pintores, padeiros, poetas populares, garis, sindicalistas, etc., partilhavam saberes da luta e organização política recolhido da vivência com essas pessoas, com seus sonhos, suas sabedorias, suas esperanças. Partilhavam reflexões fecundas sobre o ser humano e seus direitos fundamentais, bem como identificavam as contradições que levavam essas pessoas à margem da sociedade, deixando-as na condição de, como gostávamos de definir, e nos definir, “lascadas”. Então, nosso canto e nossa oração nos conduzia à luta organizada, e, dialeticamente, a luta exigia uma compreensão fecunda de nossa fé no enfrentamento às contradições que se apresentavam, seja nos outros, seja em nós mesmos. O Pai Nosso, tinha uma conotação encarnada historicamente
PAI NOSSO,
DOS POBRES MARGINALIZADOS
PAI NOSSO
DOS MÁRTIRES, DOS TORTURADOS
Assim cantávamos na fé de Jesus Cristo encarnado no meio do povo, sofrendo com ele, libertando-nos com ele, caindo e levantando-nos com o povo brasileiro crucificado por políticas de estado de negação do ser humano.

Toda essa rica vivência exigia de nós um pensamento mais longínquo, além da miopia de um horizonte imediato que a história do momento nos concebia. O Reino de Deus ultrapassava essa história imediata e nos apontava para a emancipação humana num mais além que não nos deixava aquietar com mesquinharias do estado brasileiro. Nosso horizonte era mais amplo.

Mas, com a ascensão de João Paulo II ao poder central da Igreja em Roma e com a vinda de D. Lucas Moreira Neves como cardeal primaz para a Bahia, tivemos um retrocesso enorme nos quadros da instituição eclesial e fomos abandonados à própria sorte. A Igreja, com seu poder e sua tradição europeia, deu um basta no crescimento de um novo modo de ser igreja na América Latina, de onde os gritos dos lascados clamavam por justiça e por igualdade. Grupos de jovens foram extintos, principalmente aqueles que apresentavam um pensamento crítico sobre a formação social baiana e brasileira. O conservadorismo da igreja preferiu abandonar a juventude.

Agora esta juventude morre aos milhares, principalmente se for negra e indígena e morar nas periferias de Salvador, da Bahia, do Brasil e da América Latina. Todos os anos são entregues ao tráfico de drogas desumanizante. Outras igrejas surgiram, fazendo “lavagem cerebral”, transformando homens e mulheres jovens em súditos subservientes, servos cegos de uma religião que se torna, a cada dia, mais poderosa e mais perigosa. A ponto de tentar criar leis que controlam os corpos e a sexualidade. A estrutura dessas religiões funciona para os numerosos que se mantêm em silenciamento, não em silêncio. A atitude filosófica foi varrida do processo formativo, que gera pessoas extremamente seguras de suas crenças, utilizando-as para enviar os demais para um inferno bem articulado no seio ideológico de falsos pastores que são eleitos por palavras fáceis de serem ditas, mas que suas obras só apontam para seus enriquecimentos pessoais. Os jovens são educados para a aceitação resignada de sua má-sorte, na medida em que compreendem que não são as estruturas injustas do mundo que os marginalizam, mas a sua fé que, ainda, é pouca.

Uma propaganda atual de cerveja serve de exemplo. Ensina-nos a não problematizar o mundo na frase óbvia e paupérrima “Porque sim”. Esse “porque sim” não precisa de explicação, nem de problematização, pois o mundo, as atitudes e os comportamentos, segundo tal propaganda, são assim mesmo, não precisam passar pela mediação crítica que leva aos questionamentos profundos do modo das coisas e das pessoas serem. A resignação é o resultado de humanos paridos por esse ventre imundo que conduz à perdição do próprio ser humano brasileiro.

E desconfio que todos os podres poderes se beneficiam com isso. O poder político vê milhões de jovens sem o domínio da percepção crítica das estruturas de poder que marginalizam, torturam e matam, além de eleitores aparentemente fáceis para suas promessas impossíveis. Certamente que esses jovens não incomodarão as estruturas políticas, sociais, econômicas, jurídicas, educativas, etc., com suas reclamações, organização e luta. O fato é que sem a filosofia ocorre a naturalização da injustiça, da discriminação, do cinismo trágico que empobrece a juventude, assassinando a sua subjetividade rebelde. Da mesma forma, as igrejas e seus padres, freiras, pastores, obreiros e diáconos ficam felizes em terem ovelhas resignadas com seu destino infeliz agradecendo a deus pelo lobo que purificará sua alma do “pecado”. Os grandes traficantes também ficam gratos com a rebeldia que escapa ao religioso “canto da sereia”, tendo à sua disposição gerações de soldados do tráfico a seu dispor, bem como usuários certos para suas drogas. Para os policiais psicopatas não faltam alvos para as suas balas satisfazerem seus perversos instintos assassinos. Para os demais policiais, sem entender a estrutura econômica, cultural e social produtora da formação do marginal, ficam entrincheirados, com receio de serem surpreendidos pela morte que o marginal traz em seus instintos de vingança. Os políticos, em tempo de eleições, acreditam em todos os deuses, de todas as religiões, beneficiando-se do voto “porque sim”.

E assim, matamos e morremos, todos os dias, naturalizando a morte entre jovens, na ilusão religiosa de que o deus de sua religião vá salvá-lo contra as estruturas funestas que tais religiões celebram, cada vez mais, como motivação para o crescimento do número de seus fiéis, pois, conforme um clássico clichê, “quem não vem pelo amor, certamente vem pela dor.” Para quem você vem? Para Deus? Para o pastor ou para o padre que fica doido para te guiar pelo “caminho” que ele definiu como "correto"? Nunca vi um tipo pra gostar tanto de ovelha como pastor (a)! E que deus é esse que é associado a conquistas financeiras e econômicas pessoais como forma de representação de sua fé? Acredito que precisamos de um antigo espírito crítico luterano contra esse modo contemporâneo de ser dessas religiões, cheias de falsos pastores que enriquecem às custas da cegueira de seus fiéis. Fico com minha "pastora" Rita Lee:

Levava uma vida sossegada
Gostava de sombra
E água fresca
Meu Deus!
Quanto tempo eu passei
Sem saber!
Han!! Han!...

Foi quando meu pai
Me disse:
"Filha, você é a Ovelha Negra
Da família"
Agora é hora de você assumir
Uh! Uh! E sumir!..
.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.

2 comentários:

  1. Muito bom professor!!!
    Acho até que vou usar alguns trechos do seu texto nas minhas aulas de sociologia.
    ADOREI...

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  2. De um texto a outro vamos pronunciando o mundo e tecendo fios para enredar-se nele com esperança e ação política querida Lucicleide.

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joselitojoze@gmail.com