quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

A POSSE

Estava fazendo algo completamente alheio ao que escrevo agora. Acontece que a maioria dos textos que escrevo não são pensados antecipadamente. Eles vêm. Como que amalgamados em meu ser, lá no profundo silêncio que recolhe as percepções indizíveis, os sentidos vão viajando em fluxos socioculturais que os direcionam para a expressão verbal. Os fluxos socioculturais são dinâmicas constituídas no estoque social de signos disponível e na competência linguística, que é também extralinguística, que caracteriza minhas expressões verbais. E é dessa complexidade que os sentidos se expressam em pensamentos que, por sua vez, expressam sentidos outros que se filiam nessa corrente discursiva, colocando em discussão o alcance da autoria dos “meus” textos.
Eu não sou o primeiro ser humano dizendo as primeiras palavras, embora ache isso quando falo. Nem os sentidos partem de mim, embora também eu acredite nisso quando me expresso. Ao aceitar essas duas ilusões, penso que produzo as ideias. Mas, na verdade, as ideias me produzem. Ou seja: eu não sou o sujeito de minha expressão verbal, pois os sentidos não partem de mim, eu apenas os retomo em minha prática discursiva. Eu entro na discursividade e, nesse movimento, não sou o sujeito de onde parte o sentido. Há, como diria Althusser, um assujeitamento, pois, ao retomar sentidos já ditos e esquecidos que se encontram na memória discursiva, sou atingido pela ideologia que foi se sedimentando no processo histórico, independente se no plano racional concordo ou discordo da ideologia que produz seus efeitos de sentido e, por isso, não interessa o sentido real do que digo, mas o real do sentido, onde seus efeitos tomam forma.
E foi o tema da posse que veio no fluxo que me atingiu há pouco. Eu percebo o quanto gostamos de ser “donos” de algo. Ter a posse parece nos proporcionar uma satisfação momentânea significativa. Quando temos, geralmente queremos mostrar, exibir. A posse parece induzir um significado que a cola a algo ou a alguém à nossa pessoa, nos dando prestígio. Ao tirarmos fotografia com uma pessoa “famosa” acreditamos, muitas vezes através do inconsciente coletivo, que compartilhamos um pouco do prestígio dessa pessoa, mesmo que de modo muito fugaz. Ao brincarmos tirando fotografia ao lado de um carro sofisticado, como se o tivéssemos abrindo sua porta para dirigi-lo, também expressamos através desse gesto, essa ideia coletiva. Da mesma forma, ao passearmos com uma mulher considerada bonita e gostosa, ou com um homem assim concebido em nosso contexto estético, exibindo-os discretamente ou não, também gozamos dessa admiração pelo olhar e avaliação alheias. Este que vos escreve, quantas e tantas vezes não caiu nessa armadilha da posse? Várias! Várias vezes e ainda caio.
Não somos donos de nada, nem mesmo de nossa existência. Vivemos míseros anos. A maioria esmagadora de nós nem consegue chegar ao centenário. E não somos donos nem das palavras que pensamos escolher ao falar? Se levamos em consideração que somente a razão é que impera, então não. Mas se o inconsciente é reconhecido como constituinte dos sentidos ideológicos que se materializam na ligação entre a língua e o inconsciente, então sim, podemos reivindicar autoria, ainda que precária do ponto de vista de sua posse individual, ou de sua elaboração primordial. A tentativa de colar o suposto prestígio à nossa pessoa denota o quanto ainda carecemos da compreensão de que a posse é um fluxo ideológico que afeta a nossa existência de modo prejudicial à nossa emancipação individual e coletiva. Indica também o quanto necessitamos nos apossar de algo ou de alguém para poder ser alguém. O quanto vazio estamos de nós mesmos, em nossa decadência espiritual. 

Quando não tiver mais nada
nem chão, nem escada
escudo ou espada
O seu coração… Acordará

Quando estiver com tudo
lã, cetim, veludo
espada e escudo
Sua consciência… Adormecerá

E acordará no mesmo lugar
do ar até o arterial
no mesmo lar, no mesmo quintal
da alma ao corpo material
Não ter a mim, como senhor, como dono, pode abrir a possibilidade do reconhecimento de que temos a nós mesmos. Podemos ter a comunidade em seus gestos de solidariedade, reterritorializando espaços fechados por dinâmicas individualistas e reconstruindo possibilidades emancipatórias em nosso cotidiano. Tenho a mim porque muitos me têm. É pelo outro que me constituo enquanto eu. Parece grande novidade. E é! Alguns/mas já disseram isso, mas poucos de nós vivenciamos.
O porquê eu preciso ser dono num mundo capitalista reducionista até se explica. Mas o sentimento de poder e realização de “ser dono” se expande das coisas às pessoas, porque muitos/as de nós acreditamos que podemos comprar tudo à nossa volta: fidelidade, admiração, respeito, submissão, e até amor! Que se compra juízes, deputados, senadores, prefeitos, governadores e até presidentes, disso não tenho dúvida, principalmente nesse Brasil decadente de agora. Mas, comprar amor? Ser dono exclusivo do coração de alguém? Huuum. Tenho certeza que não é possível essa aquisição no mercado. Lerei nestas férias um livro de Jacques Cazotte, O diabo enamorado, no qual este, para ter a posse da alma de um homem, transforma-se numa mulher - Biondetta - para seduzi-lo e, surpreendentemente, termina se apaixonando por este. Nessa bela ficção o amor vence as artimanhas do diabo, traindo-o a si próprio. Bela ficção. O "Cão" queria a posse da alma do outro, mas terminou sendo traindo pelo sentimento que tinha certeza de não possuir. Réréré.  
Eu não quero ser dono da alegria, nem do prazer, nem perdão. Não quero ser senhor da emoção que brota nos momentos mais sublimes, quando as pessoas esquecem de suas posses e vaidades e se entregam à vivência feliz do compartilhamento de um grande momento comum.  A posse não me faz feliz. A posse não me torna melhor. Algumas vezes a posse me torna mais triste e vazio. Se tudo isso passar por mim, a alegria, a sabedoria, o prazer, o perdão, as emoções, a posse da terra, dos rios, dos dinheiros, das fábricas, das universidades e escolas e penetrarem os/as outros/as, num ciclo vivo de humanidade que se compraz na alegria alheia, aí sim, eu realizarei todos os meus sonhos abrindo mão de controlar, sob o meu domínio exclusivo, o que foi permitido a qualquer um/a. Quem sabe assim meu coração e minha consciência não acordarão? 


Joselito da Nair, do Zé, de Ana Lúcia, do Rafael, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

CORRUPÇÃO EM TODOS OS DESENCANTOS

Ao nascer de forma muito simples, Jesus nos deu o exemplo de cuidar desse valor. Jesus não quis a riqueza, pois a riqueza, como nos ensinou Karl Marx, só existe pela pobreza que ela provoca. A riqueza é expressão legalizada do seu contrário, a pobreza. Jesus, como filho da cultura judaica, via abundância, e não a riqueza, como sinal de benção. E como é bom quando a abundância nos chega! Usufruímos alegremente. Mas não é disso que desejo falar.

Eu sou contra essa institucionalização de Jesus através, inicialmente durante muito tempo, da igreja católica e, atualmente, desta e das igrejas neopentecostais. Toda religião que ganha muito poder, no afã de fazer com que todos e todas sigam suas interpretações particulares de Jesus, termina se corrompendo, inevitavelmente. Nós, brasileiros e brasileiras, estamos sendo bombardeados/as pelas cargas nocivas da corrupção alastrada em nosso país. Contudo, ao se olhar para a Igreja Católica percebemos que não há muita diferença em relação a isso. A misteriosa e suspeita morte do Papa Paulo I, que estava investigando os negócios escusos entre o Banco Ambrosiano e o Banco do Vaticano, é apenas um exemplo, além dos casos antigos e recentes de pedofilia. Papas tinham mulheres e filhos, lutavam para permanecer no poder e viviam no luxo que aquele poder proporcionava. Como a gente viu nas últimas notícias relacionadas a isso, cardeais do alto escalão também tinham, ou têm, mansões e nelas faziam reformas milionárias com o dinheiro da igreja. A chegada do Papa Francisco tenta colocar um freio nisso, investigando também a corrupção no Banco do Vaticano.

Da mesma forma, as religiões neopentecostais também estão envolvidas com corrupção. Ninguém conduz coercitivamente um homem poderoso como Silas Malafaia sem algum indício sério de seu envolvimento em lavagem de dinheiro sujo. Da mesma forma, os líderes dessas religiões enriquecem a olhos vistos com o dinheiro de milhões de tolos/as que pensam que podem pagar Deus para obter benefícios pessoais. Malafaia, R. R. Soares, Edir Macedo, Valdemiro Santiago, “Bispa” Sônia, entre outros e outras, são todos/as hipócritas e envolvidos com dinheiro alheio. Não são “abençoados/as”, são canalhas! Eu sempre fiquei incomodado quando melhorei minha vida econômica e meus colegas de infância, agora evangélicos, começaram a me chamar de “abençoado”. Se essa era a principal associação para assim me denominarem, então essas pessoas pensam errado. Eu sou “abençoado” como você que lê este texto agora também o é. Não acredito que Deus me abençoou e deixou de abençoar outra pessoa até melhor que eu do ponto de vista espiritual.

Acho essa ideia ridícula a de tentar converter o mundo inteiro para sua religião. Não quero que ninguém venha tentar me converter. Por trás de quase todo processo de tentativa de conversão há geralmente a imposição de interpretações que legitimam a injustiça social, o controle político das elites e a resignação dos pobres diante das injustiças. Ao tentar pregar a verdade para o outro, na tentativa de aumentar o número de fiéis a serem “salvos”, estamos apenas contribuindo para o massacre de culturas, o silenciamento da crítica e a impossibilidade da denúncia de nossos crimes, ou melhor, “pecados”. Malafaia foi recebido pelos “seus fiéis” como um injustiçado, não como um possível criminoso ralé que participa de esquemas ilícitos de desvio e lavagem do dinheiro público.

Diante disso tudo, eu vejo o caminho da diversidade religiosa como princípio fundamental de convivência salutar entre nós. Embora não seja de nenhuma delas, eu sou do candomblé, sou do espiritismo, sou budista e sou cristão, não sou e sou de todas as religiões. Não desejo converter nem salvar a ninguém, senão a mim mesmo, não como uma busca por uma recompensa pós-morte, mas como uma vivência de fé, resguardando os valores que acredito com convicção, assegurando-me na força divina que a todos/a acolhe em sua misericórdia. Assim como a riqueza é a consequência da pobreza e vice-versa, assim também uma religião única é sinal de repressão a outras formas de crer e de manifestar suas relações com Deus. Uma só religião é a denúncia de que seus/as líderes massacraram outros povos em nome de Deus, afinal Josué e Moisés “passaram ao fio da espada” muitos povos que se encontravam em seu caminho rumo à terra de onde emana “leite e mel”, sem discriminação de mulheres e crianças. Muitos/as sofreram naquela passagem. Hebreus e, principalmente, não-hebreus. Os judeus até hoje ressentem do fato de que Jesus não veio exclusivamente para eles, como esperavam. Jesus não veio numa carruagem ornada a ouro, acompanhado de um imenso exército que destruiria os "infiéis" e daria a "salvação" somente para eles. Veio pobre no meio dos pobres, simples, humilde e amoroso. O perdão e a misericórdia em Jesus, valem mais que a vingança e o castigo. E por isso é Natal para todos e todas!   

A fé que não se pensa gera o fundamentalismo que produz a corrupção, o sofrimento e a morte.

Joselito (Zé Pequeno) Manoel de Jesus

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

AMOR-NATAL

O amor é a coisa mais alegre
O amor é a coisa mais triste
O amor é a coisa que eu mais quero.
Adélia Prado

Fiquei imaginando que o amor é como um círculo. Cada vez mais minha ignorância me ensina que o amor é a realização plena do nosso ser, num retorno eterno aos mesmos lugares. É porque, depois de tantos erros causados pela própria ignorância cega de minha tola vaidade, a gente vai entendendo o quanto faltou de amor e o quanto nos desviamos de nossa realização plena rumo a Deus.

No amor, sempre passamos pelos mesmos pontos, mas, de forma inexplicável, parece que estamos chegando pela primeira vez àquele lugar. Não há saída fora do amor. Somente a maldade, a corrupção e a guerra respondem aos desvios de nossa humanidade pra longe de Deus e, desse modo, perecemos distantes do caminho maravilhoso que nos conduziria à plenitude de nosso ser no encontro com Aquele Que É.

Mas o amor é tão difícil! É tão difícil apaziguar o nosso ser diante de um contexto que nos convida à violência, ao consumo, à falsa realização baseada na obtenção de tantas coisas inúteis, ao apego desesperado a um ego mal tecido na alienação de nossa realização legítima em Deus. É tão complicado agir com a sabedoria que nos leva à superação do conflito rumo ao perdão e à reconciliação. É preciso um exercício permanente através de atitudes firmes, baseadas em convicções fortalecidas por nossa fé. E constantemente nos pegamos nos desviando do caminho do amor. Porque não é fácil amar. Porque somos crianças birrentas ainda, com atitudes tolas que não conseguem mergulhar profundo em si, porque, caso assim o fizéssemos, descobriríamos a originalidade insubstituível de nossa existência a serviço do amor, amando a cada gesto, tornando-nos  “deuses” com Deus, por causa do amor vivido.

E eu, que aqui escrevo, ainda tolo sem saber amar, talvez somente em fugidios momentos de milagre, em que abro mão de “ser mais-não-sei-o-quê” para servir a mais o ser outro que me aponta o destino da humanidade no seu ciclo espiritual no planeta terra.

E somente amando é que eu me encontro. Não um amor piegas, instituído por uma ideologia rasteira. Mas o amor profundo que me faz encontrar no outro a mim mesmo e a Deus.

Feliz Natal, Feliz Amor Nascendo no coração de Todas e de Todos. O Amor Menino em sua plenitude divina.


Joselito Manoel de Jesus, O Emanuel.