Estava fazendo algo completamente alheio ao que escrevo
agora. Acontece que a maioria dos textos que escrevo não são pensados
antecipadamente. Eles vêm. Como que amalgamados em meu ser, lá no profundo
silêncio que recolhe as percepções indizíveis, os sentidos vão viajando em
fluxos socioculturais que os direcionam para a expressão verbal. Os fluxos socioculturais
são dinâmicas constituídas no estoque social de signos disponível e na
competência linguística, que é também extralinguística, que caracteriza minhas
expressões verbais. E é dessa complexidade que os sentidos se expressam em
pensamentos que, por sua vez, expressam sentidos outros que se filiam nessa
corrente discursiva, colocando em discussão o alcance da autoria dos “meus”
textos.
Eu não sou o primeiro ser humano dizendo as primeiras
palavras, embora ache isso quando falo. Nem os sentidos partem de mim, embora
também eu acredite nisso quando me expresso. Ao aceitar essas duas ilusões,
penso que produzo as ideias. Mas, na verdade, as ideias me produzem. Ou seja:
eu não sou o sujeito de minha expressão verbal, pois os sentidos não partem de
mim, eu apenas os retomo em minha prática discursiva. Eu entro na
discursividade e, nesse movimento, não sou o sujeito de onde parte o sentido.
Há, como diria Althusser, um assujeitamento, pois, ao retomar sentidos já ditos
e esquecidos que se encontram na memória discursiva, sou atingido pela
ideologia que foi se sedimentando no processo histórico, independente se no
plano racional concordo ou discordo da ideologia que produz seus efeitos de
sentido e, por isso, não interessa o sentido real do que digo, mas o real do
sentido, onde seus efeitos tomam forma.
E foi o tema da posse que veio no fluxo que me atingiu há
pouco. Eu percebo o quanto gostamos de ser “donos” de algo. Ter a posse parece
nos proporcionar uma satisfação momentânea significativa. Quando temos,
geralmente queremos mostrar, exibir. A posse parece induzir um significado que a
cola a algo ou a alguém à nossa pessoa, nos dando prestígio. Ao tirarmos
fotografia com uma pessoa “famosa” acreditamos, muitas vezes através do
inconsciente coletivo, que compartilhamos um pouco do prestígio dessa pessoa,
mesmo que de modo muito fugaz. Ao brincarmos tirando fotografia ao lado de um
carro sofisticado, como se o tivéssemos abrindo sua porta para dirigi-lo,
também expressamos através desse gesto, essa ideia coletiva. Da mesma forma, ao
passearmos com uma mulher considerada bonita e gostosa, ou com um homem assim
concebido em nosso contexto estético, exibindo-os discretamente ou não, também
gozamos dessa admiração pelo olhar e avaliação alheias. Este que vos escreve,
quantas e tantas vezes não caiu nessa armadilha da posse? Várias! Várias vezes
e ainda caio.
Não somos donos de nada, nem mesmo de nossa existência.
Vivemos míseros anos. A maioria esmagadora de nós nem consegue chegar ao
centenário. E não somos donos nem das palavras que pensamos escolher ao falar? Se
levamos em consideração que somente a razão é que impera, então não. Mas se o
inconsciente é reconhecido como constituinte dos sentidos ideológicos que se
materializam na ligação entre a língua e o inconsciente, então sim, podemos
reivindicar autoria, ainda que precária do ponto de vista de sua posse
individual, ou de sua elaboração primordial. A tentativa de colar o suposto
prestígio à nossa pessoa denota o quanto ainda carecemos da compreensão de que
a posse é um fluxo ideológico que afeta a nossa existência de modo prejudicial
à nossa emancipação individual e coletiva. Indica também o quanto necessitamos nos apossar de algo ou de alguém para poder ser alguém. O quanto vazio estamos de nós mesmos, em nossa decadência espiritual.
Quando não tiver mais nada
nem chão, nem escada
escudo ou espada
O seu coração… Acordará
Quando estiver com tudo
lã, cetim, veludo
espada e escudo
Sua consciência… Adormecerá
E acordará no mesmo lugar
do ar até o arterial
no mesmo lar, no mesmo quintal
da alma ao corpo material
Não ter a mim, como senhor, como dono, pode abrir a
possibilidade do reconhecimento de que temos a nós mesmos. Podemos ter a
comunidade em seus gestos de solidariedade, reterritorializando espaços fechados
por dinâmicas individualistas e reconstruindo possibilidades emancipatórias em
nosso cotidiano. Tenho a mim porque muitos me têm. É pelo outro que me
constituo enquanto eu. Parece grande novidade. E é! Alguns/mas já disseram isso,
mas poucos de nós vivenciamos.
O porquê eu preciso ser dono num mundo capitalista reducionista até se
explica. Mas o sentimento de poder e realização de “ser dono” se expande das
coisas às pessoas, porque muitos/as de nós acreditamos que podemos comprar tudo
à nossa volta: fidelidade, admiração, respeito, submissão, e até amor! Que se
compra juízes, deputados, senadores, prefeitos, governadores e até presidentes,
disso não tenho dúvida, principalmente nesse Brasil decadente de agora. Mas, comprar amor? Ser dono exclusivo do coração de
alguém? Huuum. Tenho certeza que não é possível essa aquisição no mercado. Lerei nestas férias um livro de Jacques Cazotte, O diabo enamorado, no qual este, para ter a posse da alma de um homem, transforma-se numa mulher - Biondetta - para seduzi-lo e, surpreendentemente, termina se apaixonando por este. Nessa bela ficção o amor vence as artimanhas do diabo, traindo-o a si próprio. Bela ficção. O "Cão" queria a posse da alma do outro, mas terminou sendo traindo pelo sentimento que tinha certeza de não possuir. Réréré.
Eu não quero ser dono da alegria, nem do prazer, nem perdão.
Não quero ser senhor da emoção que brota nos momentos mais sublimes, quando as
pessoas esquecem de suas posses e vaidades e se entregam à vivência feliz do
compartilhamento de um grande momento comum. A posse não me faz feliz. A posse não me torna melhor. Algumas vezes a posse me torna mais triste e vazio. Se tudo isso passar por mim, a
alegria, a sabedoria, o prazer, o perdão, as emoções, a posse da terra, dos rios, dos dinheiros, das fábricas, das universidades e escolas e penetrarem os/as
outros/as, num ciclo vivo de humanidade que se compraz na alegria alheia, aí
sim, eu realizarei todos os meus sonhos abrindo mão de controlar, sob o meu domínio
exclusivo, o que foi permitido a qualquer um/a. Quem sabe assim meu coração e minha consciência não acordarão?
Joselito da Nair, do Zé, de Ana Lúcia, do Rafael, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel