domingo, 11 de abril de 2010

Oitenta Anos (Continuação)

Aquele velho não aceitava as mudanças daquele tempo estranho que vivia. Um dia imaginou ficar cego aos 70 anos. Não queria, a partir daquele instante, brigar mais com a memória ou sofrer o atropelo dos costumes, valores e crenças. Queria, a partir daqueles setenta, enxergar apenas com a saudade. Só. Deixar a memória fazer o seu trabalho de acalanto. Não aceitava aquele modo de viver que aquele tempo aprofundava. Automóveis com sons ensurdecedores e músicas de péssima qualidade invadindo ruas, sossegos e silêncios, desrespeitando direitos e debochando da lei. Os policiais eram os primeiros a agirem assim, demonstrando o quanto aquele tempo estava apodrecendo diante dos seus olhos. Padres, outrora tão respeitados, agora representavam ameaças para crianças e adolescentes. Professores, perderam a vontade de ensinar. Sua autoridade era ameaçada por alunos agressivos e marginalizados. Tudo estava sendo invadido pelos bárbaros, conforme Dennis Arcand apontara em seu filme: "As Invasões Bárbaras". As drogas ameaçavam a própria família e seu filho, e suas amizades, era acompanhado de perto, pelo medo da contaminação. As ruas do centro foram invadidas por zumbis do crack e os governantes continuavam roubando e mentindo como nunca. Aquele novo tempo estava matando o velho e ele, debilmente agarrava-se à memória a fim de proteger-se psicologicamente do tecido da morte, a mortalha vermelha que cobria a sociedade de sangue e vergonha.

Com o tempo foi parando de falar e, na inversa proporção, foi escrevendo crônicas, memórias e poemas. Foi gostando de ficar invisível. Aliás, percebeu que os anciãos sempre ficam invisíveis com o tempo. A suspeita de esclerose ajudava muito, pois não é a memória dos anciãos que vai apagando. É a memória da sociedade que vai deixando de lembrar dos seus membros da 3.ª idade. Isso o fazia acreditar que a memória é um dos desdobramentos do modo da sociedade conceber as pessoas e suas condições específicas. Num mundo de atropelos, lembrar era perda de tempo. Ficou pensando na outra extremidade: como as crianças são esquecidas. Crianças, numa sociedade consumista, só são lembradas como unidades de lucro. Crianças pobres, amarelas, negras, moradoras das periferias, não compunham a memória social. Constatava isto durante suas caminhadas, dialogando com sua memória. Percebia tristemente a ausência de parques públicos infantis nos bairros e regiões mais pobres da cidade. Não havia mais lazer público, nem espaços onde realizar o brinquedo e o jogo sem pagar um centavo, como era quando ele era menino. Quando a sede vinha, água corria nas grotas, vindo de alguma nascente, ou algum vizinho nos dava uns copos d'água gratuitamente. Mas até a água havia sido engarrafada e vendida. Os campinhos de várzea, onde bola, chuva, sol, lama, poeira e meninos se misturavam, foram desaparecendo. Os cenários magníficos, os fantásticos gol's, alegrias, gritarias efusivas, abraços festivos entre a molecada, foram devorados pelo crescimento econômico, apoiado pelo Estado. Lembrou-se da Praça em frente à Igreja de Santana, na Pituba. Um praça com um parque público muito bonito e aprazível... Feita para ninguém! Praça e parque que deveria ser construído na periferia, onde crianças paupérrimas poderiam desfrutar de seus equipamentos. Mas ela fora construída para inveja dos despossuídos. Estava lá, sendo vigiada por um sujeito da periferia para que os pobres da periferia não a frequentassem, pois pode ser que os brancos donos de tudo não gostassem, por causa da "feiúria" e da "má educação" dos pobres de longe. Porque os pobres não pertencem apenas a outra cidade, eles pertencem a outro mundo, a um outra lógica. Lembrou-se de um livro de ângelo Serppa, no qual este geógrafo evidenciara o processo de construção desigual de equipamentos públicos, somente para o deleite dos que vivem nos denominados "centros". Assim como a água, tudo estava sendo engarrafado naquele tempo. Quase tudo tinha um rótulo e tinha um preço. Até os campinhos estavam sendo engarrafados, denominados de campos de "futebol society".  A mercadoria tornou-se a referência do seu tempo e substituiu a solidariedade, o esforço coletivo. Talvez refletindo nossa dificuldade em ser um povo de verdade. Éramos apenas uma massa dispersa, um monte de indivíduos perambulando por espaços restritos da cidade, sem capacidade para formar uma comunidade de fato. Até a Igreja Católica, abandonara o seu projeto do Concílio Vaticano II, Medellin e Puebla. A Comunidade Eclesial de Base fora esvaziada por interesses maiores dos "homens que exercem seus podres poderes".  

Memória perigosa, era isso que ele era agora. Oitenta anos cronológicos, uns setenta de memórias, lembranças. Tudo bem e mal passado, até as dores, sem futuro. Ele já não tinha futuro antes, quando tinha 40 anos, imagine agora, em 2049. Recebeu os abraços da esposa, do filho, dos poucos presentes, soprou as velas, comeu um pedaço pequeno de torta e ficou ali, lembrando.

Autoria: Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.

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