segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A CASA DO CALAFATE

Sinto muita saudade. Saudade significa boas lembranças que retornam e vem nos visitar para dizer quem somos e de onde viemos. E somos seres andarilhos, somos aqueles que trilhamos um caminho e, paradoxalmente, o caminho vem conosco, o caminho nos constitui, o caminho somos nós. E minha saudade fala da presença de uma ausência. O sacramento de minha memória está no Calafate, em minha casa não tão antiga assim. Nós a vendemos, mas hoje eu me arrependo tanto! Vendemos nossa história, nossa constituição psíquica e física, nosso patrimônio simbólico, nosso tecimento no mundo, nossa alma. Ao escrever esse texto meu coração aperta, espremido por um sentimento claro, lúcido, perene. Esse sentimento me diz quem estou sendo, por quem fui e, de certa forma, quem serei sempre. Esse sentimento poderoso é a voz das vozes que me convida a assumir minha história. E é isto que passo a contar.

Minha família, muito pobre, foi morar num terreno abandonado. A semântica do poder hegemônico denominou isso de “invasão”. A semântica do poder contra hegemônico denominou isso de “ocupação”. E nós ocupamos aquele lugar. Muito precariamente fomos arrumando um barraco. Esse processo de ocupação foi uma festa para um garoto de seis anos. Ajudando a subir o morro com madeira, em meu caso gravetos, telhas, varas, arame, portas, capinando o mato, delimitando o terreno, erguendo os primeiros mastros, levantando as primeiras velas para navegar em paz no mundo, daquele mesmo lugar. Desse lugar é que navegamos o mundo inteiro e fomos vendo e, timidamente, participando dos acontecimentos de tudo o que ocorre no mundo. E, nesse processo, nosso lugar também foi transformando-se para poder continuar navegando no mundo em constante transformação. Outras tantas famílias também fizeram seus barcos e remaram conosco, a quem denominamos de “vizinhos”.

Penso que na terra ocorre a mesma coisa que no mar. Quando um barco está num lugar, ele sempre está, de certa forma, à deriva, pois as correntes e os ventos não cessam e o mapa do oceano não para de mudar. Uma casa no mundo parece com isso. Embora ela esteja sempre lá, o lugar muda com os ventos da sociedade e com as correntes da história, do acaso e do complexo e permanente processo sóciohistórico. O mapa está sempre mudando e a gente sempre nadando, sempre remando, sempre navegando no mundo que inventamos e reinventamos todos os dias. Para a minha antiga casa eu vou pela memória e a encontro. Mas nunca no mesmo lugar. A própria casa está mudando e, embora tenha a maioria dos traços de minha história, ela será transformada pelos seus novos habitantes, com seus olhares, seus gostos, seus sonhos e desejos e, finalmente, desaparecerá para sempre neste oceano que é o mundo. Embora eu navegue atualmente em um apartamento aparentemente mais confortável, era em minha casa antiga que eu navegava com os meus ancestrais, com as cantigas e as histórias, com as memórias de nosso caminhar singular inscritas em cada tijolo, em cada parede, em cada janela e no piso de cerâmica de segunda categoria. A casa simbolizava toda uma história e as emoções que ela trazia consigo. Quando eu a avistava de longe, já me sentia acolhido e, ao abrir a porta, mesmo após a morte de minha mãe, recebia a sua presença em minha memória que a casa reavivava.

Nossos vizinhos sempre respeitaram nossas fronteiras e seguiram conosco mundo adiante. Remamos contra ondas que atingiam nossa 2.ª Travessa do Calafate, assim posteriormente denominada pelo poder público. Fomos instalando “gatos”, pois o pobre para viver inventa, cria estratégias todo dia em busca de luz, de água, de comida, de asfalto, de escadas, de saneamento, de dignidade. Inventamos alegrias e festas. Alguns idiotas podem perguntar o motivo das festas, pois pobre não tem nada para comemorar. Nós comemoramos a nossa existência e o nosso enfrentamento cotidiano de um poder intelectual, político, econômico e religioso que nos nega. Uma onda gigantesca denominada “inflação” batia continuamente em nossas embarcações, que pareciam não poder resistir. E nós fomos inventando sobrevivências: em busca de proteína mais barata: “chupa-molho”; em busca de vestimentas: costureiro – meu pai fazia nossas roupas -; em busca de escadas, saneamento, corrimão, pontes, recuperação de casas de pessoas mais carentes que nós: inventamos o “mutirão”; em busca de parque infantil: reinventamos o “quintal”.

Do trampolim do meu quintal eu dava saltos no universo

Em meu caderno de chão eu rabiscava os meus versos
No caminho de formiguinhas que trilhavam setes anões
Eu namorava a Bruxa Má e aprendia algumas lições.
(Joselito)

E no quintal de lá de casa, vinha Cacau, Binho, Bertinho, Néia, entre outros e outras garotos e garotas brincarem. Brincávamos com formigas, tanajuras, borboletas, lagartixas, sementes, galhos, teias de aranhas, esgotos, passagens, declives, garrafas de Q’Boa, latas de sardinhas, sabugos de milho, patinetes e rolimãs (rolamentos), interagíamos com as disponibilidades naturais e artificiais do nosso tempo. Tudo aquilo compunha nosso mundo e nessa composição, criávamos com nossa imaginação suprema. E, realmente, dávamos saltos no universo dali mesmo, daquele quintal inesquecível que hoje me mata de saudades. Meu filho não tem mais quintal. Não vê formigas, nem vê aranhas, nem entende de teias. Acho isso grave: um sujeito não entender de teias. Sem teias resta apenas um vazio intenso, uma vertigem permanente que termina arrastando para o abismo que engole o ser humano e o envia aos âmbitos mais sinistros da loucura.

De certa forma é preciso ser homem e mulher aranha e tecer, de dentro de si mesmo, fios que o sustentem no mundo e o protejam do abismo colossal que nos arrastam para a queda, aparentemente sem fim. Uns denominaram tais fios de “religião”, segurando-se nas paredes dos céus para não sucumbirem aos infernos; outros denominaram os fios de humanismo, segurando-se no ser humano ético, humilde e filosoficamente dirigido, contra o abismo da barbárie. Meus fios eu teço enquanto escrevo, tentando conscientemente afastar-me das crenças hegemônicas que estão tornando-se banais. Eu me agarro nos fios das minhas palavras, que são constituídas por interlocutores que já falaram, pelos que falam e por tantos outros que falarão. Com Bakhtin eu me agarro e produzo discursos que, penso que são meus para poder pronunciá-los, e assim, vivo tecido, sobrevivo tecendo fios discursivos onde mantenho a minha existência simbólica.

Em nossa casa de taipa e candeeiro, tinha noites mágicas. Ao redor da cama de meu pai, e era cama somente dele naquele momento único e eterno, embora minha mãe estivesse ao seu lado pronunciando silêncios carregados de sentidos outros, com uma colcha de retalhos coloridos como palco, havia histórias fantásticas que estão guardadas sempre em mim como um segredo, um tesouro de família, que eu só conto a localização para quem se mostra digno de ouvi-lo: crianças. E tudo compunha aquelas noites. O candeeiro bruxuleaxa luzes que iam e vinham frente às sombras que brincavam conosco de “meter medo”. Uma brisa leve fazia a chama dançar como uma diva bailarina no palco da noite que a aplaudia em silêncio. Enquanto isso as histórias avançavam e meu pai tecia alegremente a trama dentro da trama, formando uma rede de sentidos onde a gente imaginava mundos e neles entrávamos como observadores ansiosos, continuando as histórias com nossa singular presença simbólica durante e após tal evento magnífico.

Navegamos, vivemos. Vencemos batalhas pela vida todos os dias de nossa casa nesse mar em movimento que é o mundo. Eu não sabia que estávamos navegando, pois só enxergava terra, com o mar um pouco à frente, em Boa Viagem, Salvador. A casa onde morei no Calafate não tem mais âncoras e as velas foram asteadas por outros marinheiros. Eu não sei até quando vou poder reencontrá-la para reencontrar alguns indícios significativos de quem sou eu, por quem vivi, por quem eu vivo, de onde vim, pra onde vou. Mas eu sei que embora o mapa mude constantemente, vou chegar ao meu lugar, pois nesse navegar reaprendo todos os dias os valores de um marujo. A nossa casa do Calafate ainda simboliza, como uma distante estrela que já não existe no lugar que explodiu, mas que continua lançando suas luzes nas distâncias dos confins do universo e ainda guiam os navegares de marinheiros perdidos.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

3 comentários:

  1. Olá Jô, vc nos presenteia com uma prosa poética encantadora e sensível, nos mostra nos não-ditos e interdiscursos que a "casa vendida" é apenas um fato mas tal fato não a deixa de existir simbolicamente carregada de sentidos e silêncios, de escutas e intertextualidades presentes nesta prosa viva e fecunda de construir discursos sobre si, sobre o mundo e lê-los tecendo a partir de interdiscursos que marcam a polifonia do seu dizer.
    Parabéns pelas reflexões aqui apontadas lançando 'luzes' e vozes que são ora visiblizadas,ora invisibilzadas no grande texto social.
    Bjos poéticos e discurssvos...
    Ana Lúcia

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  2. Belo texto!! Mais uma vez me identifiquei profundamente. Eu tb tive uma casa vendida, aliás duas, onde vivi minha infância e adolescência.Lá estão minhas vivências impregnadas em cada canto, minha história, minha identidade! Trago na lembrança a visão bem viva de cada espaço e dos acontecimentos que os marcaram. Mesmo que um dia sejam demolidas, estarão sempre erguidas em meus pensamentos!

    Abraço!

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joselitojoze@gmail.com