segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O Consumismo numa Sala de Reboco

O tempo e o espaço são construídos de forma totalitária e, ao mesmo tempo e muitas vezes paradoxalmente, singular. O capitalismo elege e determina seu tempo e a tudo vai submetendo, retirando de tudo o seu próprio tempo e contexto e ainda descaracterizando o sentido fundador do fenômeno. É assim com o natal, com o ano novo, com o dia das crianças, com a quaresma, o carnaval, o dia de finados, das mães, dos namorados e do mês das noivas entre outras datas festivas. Todas as datas vão sendo consumidas pelo sentido mesquinho que o capitalismo imprime a tudo que toca. Mas, ao mesmo tempo, tudo o que o capitalismo toca vai perdendo sua data e seu lugar e, inevitavelmente, vai perdendo seu sentido último e seu significado histórico e ontológico. Perdendo seu valor social, todo objeto, todo fenômeno, vai perdendo seu valor histórico que fecunda os seres humanos na produção de sentidos que lhes inspiram suas identidades socioculturais. O toque de Midas vai tornando tudo ouro, contudo, esse ouro vai tornando-se “ouro de tolo”. Muita gente começa a comprar o “ouro”. Muita gente começa a usar o tal ouro e, fatalmente, por estabelecer uma relação esvaziada de simbolismo, e por surgir outros objetos e símbolos descartáveis, o outrora “ouro” vira pó. Há gente, porém, que evita o brilho que o mercado oferece, que não enche os olhos com as vantagens falaciosas e com os simulacros criados para vender produtos e serviços que, geralmente, não correspondem ao que oferecem. Produtos multicolores em embalagens convidativas e, neste contexto do simulacro, mentirosas. Há singularidades que se negam a comprar sem necessidade e é por esse caminho de gente que outro mundo pode ser tecido para além do capitalismo e de sua sanha destruidora.

“Todo tempo quanto houver pra mim é pouco
pra dançar com meu benzinho numa sala de reboco”

O mestre Gonzagão não queria desgrudar de sua amada, e o cenário em que se dava o encontro: a sala de reboco, na qual ecoava o forró “enquanto o fole tá fungando tá gemendo”, constituía o sentimento que se eternizava naquele momento único e irrepetível de amor. O fole, no abre e fecha da produção do som, "funga e geme", constitui-se numa extensão do próprio Gonzaga, que devia estar fungando e gemendo solto e amarrado naquela mulher que lhe tirava o juízo, erotizando toda a sala e potencializando desejos impronunciáveis, que vão até a beira do dizível. A sala de reboco tem uma voz para aquele homem em seu tempo e em seu lugar. Fala do forró, da vontade de continuar o prazer grudado nela. Fala da fala, da conversa “ao pé de ouvido”, da quentura dos corpos roçando o viço, do calor produzido por aquele bate-coxa que vai aumentando a chama que acende os corpos e, pelo menos naquele instante eterno, funde mulher e homem, numa sala de reboco. Fico imaginando o preço disso tudo. “- é 5mi reis..é 5mi reis..é 5mi reis..” (Karolina com K) Sala de reboco, sanfoneiro, tamboretes e mesas para sentar e conversar, milho assado, pinga, amendoim torrado e cozido, ele e ela e as demais pessoas, cujas histórias não foram registradas. Muita riqueza simbólica, pouca necessidade de financiamento. “- é 5mi reis..é 5mi reis..é 5mi reis..” Quando eu ouço Gonzagão sou tomado por uma alegria inexplicável. Tenho uma identidade muito forte de sertão, por causa de meu pai, um caboclo forjado lá pras bandas de Remanso, a cidade que foi coberta pela barragem. Essa identidade cultural que me toca, como diz uma propaganda, “não tem preço.” Minha mãe que me perdoe, mas é que o sertão de Zezinho – meu pai criança da memória compartilhada pelas histórias contadas – me fala mais longe e sua “fala” invade tempo e espaço e me alcança nesse fim de mundo que é o mundo contemporâneo.

Alguém pode alegar que tem preço, sim! Há um indivíduo (eu), exercendo livremente sua liberdade de ouvir o que bem quer, tendo, para isso, que pagar a luz, adquirir o meio material, ou melhor, a mercadoria, e escrever esse texto num netbook para, daqui a pouco, publicar em meu blog e divulgar no facebook, pagando o serviço de internet para que isso tudo aconteça e esse texto chegue até você, que também deve estar pagando, de alguma forma, para ler. Bem, não discordo dessa concretude que me apanha em meio ao que escrevo, pois não pensei nisso antes de estar escrevendo. Mas já escrevi muito em folhas de caderno - Fátima Leiro que o diga - e, na ausência de internet, facebook e outros serviços e meios materiais, participava de concursos de poesias, pois era neles que divulgava, a um preço muito baixo, meus pensamentos errantes. Quando eu morava numa casa de reboco, confesso que sofri. Mas não pela casa de reboco. Quando eu morava numa casa de reboco, confesso que vivi, que sorri, na casa de reboco, cenário de minhas memórias que ficaram eternas porque amaram.

Ainda tem sertão e isso meu deixa muito esperançoso. Mesmo assim o capitalismo está consumindo a caatinga e invadindo o sertão. A indústria cultural vem estilizando o forró, retirando sua marca ontológica e desperdiçando seu potencial emancipador. Teve um momento de um forró tão feio, que me dava dor da prisão que emissoras de rádio impunham ao cidadão comum. O mesmo mercado que tanto fala em opção, é o mesmo que impõe o estilo único de música, tocando nos quatro cantos o mesmo desencanto. Mas ainda tem sertão, embora muita coisa esteja morrendo. A ecologia cultural também sofre o desmatamento de suas produções culturais. A ecologia cultural também vai sendo extinta pelo mercado, que deseja nada mais que o lucro fácil e rápido e, por isso mesmo, exercendo livremente, sem vigilância e ponderação alguma, suas potencialidades destrutivas, vai extinguindo memórias, histórias, sentidos, estilos e notas, musicais. Ainda tem sertanejos e tomara que sempre haja um pouco de sertão que sirva de ventre para a gestação da ontologia cultural, social e material de novos sertanejos, um pouco de sertão para que os velhos sertanejos descansem a sua memória e prossigam a sua história, na paz e na guerra do fim do mundo. 

Por falar nisso, já comprei minhas camisas para o verão na Kasa Andrade, por coincidência também com “K”. Com uma velha calça jeans ou uma bermuda branca e uma sandália simples, caem bem para todo o verão de Salvador. Termino com um trecho da reflexão poética da senhora Colasanti


A gente se acostuma a pagar por tudo que deseja e o que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer fila para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro, para ter com que
pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes.
A abrir revistas e ver anúncios.
A ligar televisão e assistir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado e lançado na infindável
catarata dos produtos.

Martina Colasanti. “Eu sei mas não devia”. 

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
Com o auxílio de Luiz Gonzaga, Marina Colasanti, meu pai, Glauber Rocha, Euclides da Cunha e tantas gentes!!!

2 comentários:

  1. Muito legal esse texto e obrigada pela lembrança." a gente se acostuma a pagar por tudo que deseja e o que necessita"... me lembrei de um momento que passei na minha vida que esta bem dentro do que vc escreveu.

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  2. Ah, Fátima,
    O último trecho que está centralizado é de Marina Colasanti. É isso mesmo: ela nos acorda de um transe que essa vida nos impõe, como uma doença que se espalha de pessoa a pessoa, de família a família, de grupo a grupo, de sociedade em sociedade. Eu tenho até demais, muito mais do que preciso, mas fico sempre com a estranha e paradoxa sensação de que está me faltando alguma coisa...

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joselitojoze@gmail.com