Quando eu participava da comunidade do Horto-Calafate, Igreja Católica, eu era católico, o que parece óbvio, mas não deveria. É que estava assistindo a reportagem sobre a guerra entre torcidas. Vascaínos e flamenguistas, palmeirenses e corintianos tentando matarem-se uns aos outros, cada qual com sua camisa e sua “paixão”. Do nariz o sangue escorria e o torcedor corria torcido pela torcida adversária. Era torcedor, não era um ser humano e, assim, estava explicada toda essa guerra entre seres que precisam, além do gol, além do sofrimento psíquico do torcedor do time que jogou contra o time dele, do sofrimento físico do “oponente”. O que poderia ser uma festa do esporte mais querido entre os brasileiros, torna-se uma arena onde gladiadores/torcedores vão disputar o poder de matar o outro.
E tudo isso começou, pelo menos aqui em Salvador, na Bahia, quando os torcedores – que antes sentavam juntos para ver seus times disputarem a bola e atingirem o objetivo maior: o gol – criaram a instituição da “torcida organizada”. Aí a família teve de se dividir. Maridos para um lado e mulheres, que torciam pelo outro time, pro outro. Pais e filhos, irmãos, tios, amigos, vizinhos, começaram a entrar no estádio de futebol por entradas diferentes, para não haver “choque entre torcidas”. A “Bamor” criou e alimentou um amor mesquinho pelo Bahia e, como tudo tem seu reverso, o ódio mortal pelos “Imbatíveis” do Vitória e vice versa. Já não bastava o grito, a paixão exercida pelo anseio do gol, pela decepção do gol adversário, a admiração e o espanto pelo lance supremo que o craque oferecia em forma de drible, de chute, de lançamento, de gol. A torcida se organizou, não para torcer, mas para ofender, humilhar, agredir, ferir, e até matar. O futebol ficou secundário nesse processo, tornou-se religião.
Torcer pelo time adversário, nesse processo, passou a ser a maior ofensa que um torcedor pode causar a outro. Quem torce pelo outro lado é “infiel”, traidor e, como tal, merece o sofrimento de ter escolhido o lado errado de torcer e de apaixonar-se. Deve ser banido para sempre dos estádios. Nesse lugar, o estádio, a subjetividade é reduzida para quase um nada de humano. O torcedor não pensa, apenas torce. Sua humanidade fica em outros lugares, muitas vezes até em frente ao Estádio. Ali ele não é pai, ela não é mãe, ele não é filho, ela não é irmã. A única coisa que os une é a camisa que veste, pois mesmo torcendo pelo time, sem a camisa com a qual possa identificá-la, a pessoa corre um risco relativo de se ver apontada como “bruxa” ou “bruxo” e vir a ser assassinada na “fogueira santa” que a purificará de toda torcida equivocada que cometeu durante a sua vida louca vida breve.
“E assim caminha a humanidade”. Criamos instituições que nos partem e esfacelam outras instituições, nos deixando em pedacinhos de gente, tão pequeninos, que mal dão uma ideia de humanidade naquele que torce, que se filia ao partido. E quase todas as instituições vão nos esfacelando e nos conduzindo, explicavelmente e irracionalmente, para a guerra. Quando eu fui católico caminhei com a minha imaturidade para a guerra, apesar de Padre Renzo Rossi nos alertar que deveríamos orar e vigiar por e nós, não para os outros. Éramos nós que precisávamos de salvação. Hoje eu entendo perfeitamente. Os evangélicos, das várias “agremiações”, torciam diferente da gente por um deus igual ao nosso. As pessoas que rejeitavam nossa pregação estavam muito certas de tudo. Escolhiam seu caminho e seu jeito de chegar ao “paraíso”, ou mesmo de rejeitar a ideia de paraíso. Os religiosos afrobaianos também escolhiam uma relação com a divindade bem diferente da nossa e quantas vezes me peguei torcendo contra eles e elas! Os deuses deles “jogavam em outro time”. As jogadas deles eram tidas como inaceitáveis, feias, e não conduziam ao gol, ao céu de quem torce do lado de cá da arena.
Qual o lado da arena em que me encontrava? Do lado de cá ou do lado de lá? Quem me via desse lado sabia perfeitamente que eu estava do lado errado da torcida. E o mesmo acontecia comigo. Eles estavam do lado de lá. Mas, como afirma mestre Caetano...
Quem já botou pra rachar
Aprendeu, que é do outro lado
Do lado de lá do lado
Que é lá do lado de lá
O sol é seu
O som é meu
Quero morrer
Quero morrer já
O som é seu
O sol é meu
Quero viver
Quero viver lá
“Do lado de lá do lado que é lá do lado de lá [...]”. É uma confusão! É carnaval, ou pelo menos era isso quando foi. O certo não é encontrar a medida exata, a fronteira certa, verdadeira, dada pela medida perfeita da divisão em lados. Prof. Dr. Eduardo Oliveira (UFBA), que participou, no último sábado, 03/12/2011, de uma mesa redonda, Filosofia: ensino, pesquisa e interculturalidade, como uma das atividades do I Colóquio Nacional de Filosofia: O que queremos com o filosofar na Educação Básica? Levou-me à reflexão quando colocou que os gregos sempre tiveram uma preocupação enorme em conhecer o certo e evitar o erro. Ele propõe, sem medo de errar, uma epistemologia “exúlica”, onde o erro seja também caminho de descoberta. E ai eu fiquei pensando, pois filosofia é pra isso mesmo, o quanto eu sou descartiano. O quanto é difícil para mim caminhar com o erro e o desacerto para a descoberta quase involuntária de coisas preciosas. O quanto é difícil a reinvenção do mundo se não encontro possibilidade de reinventar-me.
Como diria Violeta Parra, cantada eternamente pela diva Mercedes Sosa...
Lo que puede el sentimiento no lo ha podido el saber
Ni el más claro proceder, ni el más ancho pensamiento
Todo lo cambia al momento cual mago condescendiente
Nos aleja dulcemente de rencores y violências
Solo el amor con su ciencia nos vuelve tan inocentes.
O carnaval baiano popular e de rua, antes da industrialização cultural que oprime e exclui, rejeitava a medida certa de todas as coisas. O sol e o som ecoa em toda avenida e eles são seus e são meus. Quero morrer já nesse frissom dessa gente, sair desse lugar onde minha subjetividade se encontra escorada e viver lá, escancarado do outro lado “que é lá do lado de lá”. Na verdade não havia lado algum. O lado foi inventado pelo partido que tomei na formação de minha subjetividade. Eu acreditei na ideologia dos lados e configurei o meu comportamento em função disso. O lado de lá é do lado, ao meu lado. E toda essa confusão tem uma importância fundamental para mim: confundir. Ou melhor: fazer a gente desistir de calcular o lado e se perder no inteiro complexo do mundo onde tudo é seu e também é meu, sem medidas. Talvez a única medida seja o viver, a vida. A vida do planeta, a vida de cada um nele, sem lados criados para matar, para o inteiro mundo que cabia numa avenida de rua de Salvador quando o carnaval era popular. Morrer e viver lá, sim. Afastando-me de rancores e violências. Ser assassinado por ser localizado e classificado num lado que a ciência e a religião decretaram, não. Não posso ter lado porque tenho de viver inteiro. Como pai, irmão, filho, mãe, homem, mulher, índio, negro, branco, vermelho, amarelo, e todas as cores. Ontem, por exemplo, eu estava vermelho, na procissão de Santa Bárbara e Iansã. Estava inteiramente celebrando, não minha fé, mas a fé num mundo inteiro que a Bahia exprime perfeitamente nesses momentos de fé. Ao invés de propormos o lado da ciência contraposto ao lado da misericórdia e do amor, talvez seja preciso e inadiável propor um amor com sua ciência, esta última baseada numa “epistemologia exúlica" (de Exú), que nos vuelve tan inocentes na reconstrução de um mundo inteiro, inteiramente novo a partir de uma grande celebração da alegria que o carnaval nos proporcionava e pode voltar a nos proporcionar, se o reinvertarmos a partir de nós mesmos, sem lados.
Joselito da Nair, do José, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
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