quarta-feira, 18 de abril de 2012

ONDE VIVEM OS NOSSOS MONSTROS


A 2ª Guerra Mundial teve como consequência o extermínio de mais de três milhões de judeus. Hitler e a sociedade alemã da época acreditavam piamente que os judeus, negros, portadores de deficiências e homossexuais eram inferiores, uma "peste" a ser extinta da humanidade até restar somente a “raça pura”. Quando assistimos aos filmes que tratam dos horrores cometidos pelos ditos cidadãos civilizados da Alemanha, sentimos ojeriza diante de tanta crueldade e insensatez para com a vida do outro, do que foi escolhido como diferente e construído como inferior e indesejável. “O Menino do Pijama Listrado”, “A Lista de Schindler”, entre tantos filmes já feitos sobre esse drama humano, retratam essa realidade dantesca e assustadora, diante dos monstros que residem em nosso âmago.

Eu até já assisti um filme sobre isso. Era um filme de ficção. Mais ou menos assim: Uma nave pousa num planeta superdesenvolvido, que havia sido povoado por seres muito mais inteligentes que nós, os humanos. Nesse planeta, um cientista e sua filha (humanos cuja nave quebrou) são assistidos pelo pessoal que vai resgatá-los. O pai da moça demonstra ter uma inteligência incomum, bem acima da média da inteligência mais avançada da terra. Os tripulantes da nave de resgate notam que as construções desse planeta são muito mais avançadas. Nesse planeta há prédios de 700 andares, por exemplo. No decorrer da estadia a moça apaixona-se pelo capitão da nave de resgate e um romance se instaura entre eles, mas começa a surgir um monstro de energia, mais ou menos invisível, que começa a matar os tripulantes. Nenhuma arma, por mais avançada que seja, consegue deter o monstro, que some de repente, para reaparecer em outra oportunidade noturna.

Aos poucos, os tripulantes vão sendo mortos pelo monstro, que vai avançando inexoravelmente em direção ao capitão e à moça. Restam poucos, quando um dos tripulantes descobre uma máquina que aumenta repentina e sobremaneira a capacidade intelectual do ser humano. Esse tripulante “não aguenta a pressão” desenvolvida no processo e morre, não sem antes avisar ao capitão e aos demais colegas sobre a consequência desastrosa daquele aumento surpreendente que a máquina provocava no desenvolvimento das capacidades intelectuais superiores do ser humano: o monstro do inconsciente. Então eles concluem que foram os monstros gerados pelo inconsciente dos habitantes daquele planeta que pôs fim à sua civilização, já que o que os intrigava era a falta de indícios outros que provocaram o desaparecimento repentino de uma civilização tão inteligente. Sendo tão inteligentes, porque não se prepararam para a possível ameaça de aniquilação total?

Logo, eles chegam à conclusão de que o monstro que os está eliminando é um desses monstros gerados pelo inconsciente de algum deles. E depressa descobrem que é o cientista, pai da moça o autor inconsciente do monstro. No fundo de sua alma ele não aceitava a relação amorosa da filha com o capitão da nave, embora no plano consciente não fizesse objeções. E essa não aceitação inconsciente vinha à tona em forma de monstro. Eles, juntos com o cientista, entraram num cubículo de proteção, como um bunker. Embora a porta de aço fosse muito reforçada, o monstro do doutor foi rompendo-a e penetrou na pequena fortaleza. O cientista, para não ver a filha morta, atira-se na frente do monstro e morre com ele, pondo um fim à ameaça.

Talvez o holocausto seja ainda mais dantesco e assustador porque, embora historicamente se refira ao nazismo e à sua ideologia, aponta para os monstros que engendramos em nós mesmos, e que vivem dentro de nós, como potência e como ato. Em outro texto falei de lobisomens, e frankestein’s e esses temas me perseguem, exigindo pronúncia, embora nunca fiquem satisfeitos com o jeito como eu me pronuncio e com o conteúdo que eu aprecio no plano consciente. Esses monstros criam guerras permanentes entre nós. No campo educacional, por exemplo, os professores da educação fundamental lutam contra os professores do ensino médio; os professores da educação básica guerream contra os professores da educação universitária; os professores das escolas públicas contra os professores das escolas particulares; os professores de uma mesma unidade de ensino lutam entre si, e os professores e professoras contra os funcionários, uns acusando os outros pelos monstros que uns percebem nos outros, mas nunca em si mesmos.

Talvez se olhássemos no espelho, além da imagem que vemos todos os dias, veríamos também, no fundo das imagens que nos compõem, passando sorrateiramente e zombeteiramente entre elas, o monstro, a deformação de nosso ser, perambulando e manipulando as máscaras que usamos para aceitar o mundo, as pessoas, as escolhas, as maneiras de ser e de viver dos outros. Temos todos os nossos monstros e muitas vezes deixamos eles escaparem sem ao menos tentar um diálogo com os mesmos. E, quando eles escapam, geralmente alguém é ferido ou morre. Crianças, homossexuais, nordestinos, curdos, judeus, mulheres, nortistas, negros, árabes, israelenses, islâmicos, feios, pobres, baixinhos, gordos, carecas, cabeludos, sertanejos, cristãos, favelados, mexicanos, latinos, indígenas, sem-terra, encarcerados, entre tantas outras vítimas dos nossos monstros. A única forma de nos proteger desses seres homicidas, dessas nossas feras que vêm à nossa superfície exigir sua cobrança diante do nosso processo civilizatório, é dialogar com esses monstros, porque não se pode destruí-los. É apaziguá-los, criar o espaço propício para que eles manifestem a sua ira, e possam uivar, mugir, berrar, relinchar, sibilar, rugir, roncar e, entre outros, bramir, sem ferir os indefesos. Vigie e ore. Tantos pelos seus monstros, quando pelos monstros dos outros. Quando a "bela" conversa com a "fera", pode ser que haja um grande encontro de sensibilidade entre eles e, quem sabe, podemos descobrir “onde vivem os monstros”, conforme propõe Maurice Sendak, para poder compreender de onde vem a nossa raiva e, sem a pretensão de eliminá-la, apaziguá-la, e poder conviver sem provocar sofrimentos e mortes por causa de nossa arrogância ególatra. Ainda bem que não somos muito inteligentes.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes, dos seus monstros e de Jesus, O Emanuel

2 comentários:

  1. Durante a leitura de todo o texto fui refletindo e visualizando comportamentos que alimentam os tão corrosivos insetos interiores. Eles estão por toda parte e em todas as esferas sociais: religião, educação, política (esta parece ser a célula-mãe) e se proliferam de forma desordenada... O seu magnífico post, professor, me fez estabelecer uma intertextualidade com a música "Insetos interiores", de O TEATRO MÁGICO, à qual reproduzo abaixo. Parabéns pela suas reflexões. Você é um verdadeiro analista da psicologia social.
    Abraço afetuoso,

    Mayre

    A futilidade encarrega-se de maestra-los.
    São inóspitos, nocivos, poluentes.
    Abusam da própria miséria intelectual,
    das mazelas vizinhas, do câncer e da raiva alheia.
    O veneno se refugia no espelho do armário.
    Antes do sono, o beijo de boa noite.
    Antes da insônia, a benção.

    Arriscam a partilha do tecido que nunca se dissipa.
    A família.
    São soníferos, chagas sem curas.
    Não reproduzem, são inférteis, infiéis, in(f)vertebrados.
    Arrancam as cabeças de suas fêmeas,
    Cortam os troncos,
    Urinam nos rios e nas somas dos desagravos, greves e desapegos.
    Esquecem-se de si.
    Pontuam-se

    A cria que se crie, a dona que se dane.
    Os insetos interiores proliferam-se assim:
    Na morte e na merda.

    Seus sintomas?
    Um calor gélido e ansiado na boca do estômago.
    Uma sensação de: o que é mesmo que se passa?
    Um certo estado de humilhação conformada o que parece bem vindo e quisto.
    É mais fácil aturar a tristeza generalizada
    Que romper com as correntes de preguiça e mal dizer.
    Silenciam-se no holocausto da subserviência
    O organismo não se anima mais.
    E assim, animais ou menos assim,
    Descompromissados com o próprio rumo.
    Desprovidos de caráter e coragem,
    Desatentos ao próprio tesouro...caem.
    Desacordam todos os dias,
    não mensuram suas perdas e imposturas.
    Não almejam, não alma, já não mais amor.
    Assim são os insetos interiores.

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  2. Muito bem vinda essa intertextualidade. Magnífica música e magnífica a memória do sujeito discursivo que a aciona.
    Um abraço afetuoso: Joselito

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joselitojoze@gmail.com