segunda-feira, 9 de abril de 2012

PELO ACOSTAMENTO


Numa época muito próxima, quase um ontem, nós, da juventude, admirávamos a rebeldia e todo gesto que se desviasse da normalidade imposta pelo que denominávamos sociedade conservadora. Representava renovação, sementes da revolução necessária que a sociedade tinha de viver para se tornar justa, solidária e misericordiosa. Na verdade, de forma assistemática sonhávamos com revoluções. Revoluções culturais, sociais, econômicas, religiosas, e, para garantir esse rumo, a revolução política, a tomada do poder de decisão geral pelo povo trabalhador, pelas classes populares, pelos trabalhadores unidos num partido. E assim vivíamos tecendo a nossa rede diária de pequenas ações que, de modo singular e pequeno, simbolizava o caminho da emancipação humana. A significação era engendrada todos os dias pelos jovens sonhadores que desejavam mudar o rumo do trilho, o vagão e o próprio trem da história. E ficávamos nos debatendo entre nossa pobreza econômica e nossa riqueza simbólica e política, fazendo o que entendíamos como pequenas, mas significativas revoluções, que iriam, como uma pequena luz num breu gigantesco, chamar a atenção da humanidade para o caminho da emancipação humana.

Hoje o mundo está muito diferente. Uma pequena frase de Renato Russo, que repito bastante, esclarece suficientemente a mudança com a qual me deparo e me assusto. Ele afirma em sua música, “Índios”, que “o futuro não é mais como era antigamente.” O tempo, nossa forma de senti-lo e percebê-lo mudou muito, muito mesmo. É cada vez mais raro perceber ou conseguir identificar as tais “pequenas revoluções” em gestos que rompem com a imposição social, política e cultural do mundo contemporâneo. A imposição agora é velada, porque naturalizada no consumo, na padronização de hábitos e atitudes que matam subjetividades rebeldes desde muito cedo, não permitindo o surgimento de possíveis humanos causadores de rupturas com o  que está posto. Os heróis do saudoso Cazuza morreram de overdose, enquanto os meus morreram de ganância, venderam-se e renderam-se por “trinta moedas de ouro”, recolhidas todos os dias do povo que produz a riqueza desse país. Iscariostes sem culpa, com crime e sem castigo, que nem a dignidade da forca tem em torno de seus pescoços. A traição, o crime, a incompetência e o cinismo estão plenamente justificados nesta republiqueta de bananas.

Antes, como disse, o desvio da norma era bem vindo, porque representava a ruptura com o que estava posto, com a ordem da exclusão, do silenciamento, do empobrecimento e da marginalização. Indicava utopias redentoras dos sofrimento humano da maioria do povo brasileiro. Mas agora, infelizmente, as rupturas representam o contrário. A lei, o respeito às convenções coletivas, à urbanidade e ao convívio respeitoso e salutar com o outro, com a outra, são incômodos ao apetite e à ganância avassaladora do indivíduo. E essa ideia, como um vírus, contagiou a todos nós. Antes, a criança não tinha direito algum na família, a não ser o de obedecer. Obediência cega era a palavra. E esta, não estava com a criança, mas com seu pai, o macho, adulto. Mas agora a criança tem todos os direitos e todas as vontades. Fomos de um extremo a outro. Agora a criança chega, pega o controle remoto da televisão e muda o canal sem pedir licença, exercendo sua pequena tirania individualista, realizando assim, seu desejo mesquinho em detrimento das demais pessoas. Ontem, voltando de Jacobina, encontrei um baita de um engarrafamento no entroncamento que fica entre a saída de Tanquinho e a continuação para Serrinha e outras cidades da Região. Foi então que, muitos indivíduos, exercendo livremente as suas potencialidades, começaram a, criativamente, criar uma nova via: o acostamento. Entre a primeira, a segunda e a terceira marcha, fui até a entrada da UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana), observando aquele desrespeito. Antes mesmo de chegar à entrada da UEFS, um Fiat Uno Mille, trafegando pelo acostamento, tinha se envolvido numa acidente. Não sei se houve atropelo, mas vi muitas frutas jogadas no acostamento, indicando que, no mínimo, o carro derrubou a banca de frutas que as pessoas que moram nos povoados que margeiam a estrada, colocam na tentativa de produzir suas existências.O acostamento é um convite sedutor. Quem passou por mim chegou mais cedo - saimos de Jacobina às 15:00 h e chegamos em casa às 23:00 h - descansou antes, realizou seu desejo. Adiantou alguns quilômetros à frente, enquanto o "otário", esperava pacientemente o tráfego congestionado dar uma trégua. Chegamos a um ponto que talvez esses motoristas nem se dêem conta do mal que fizeram. Foram mais espertos no darwinismo social que nos caracteriza e devoraram tudo que os impediam de passar à frente, sem consequências pessoais.

A paciência reflexiva não encontra eco no mundo de hoje, em sua corrente incessante. O que importa é utilizar, não as vias marginais, mas a marginalidade tornada natural pela sanha do individualismo que não consegue mais esperar o tempo propício pro avanço, mas invade como um bárbaro, o pouco de civilizatório que ainda pensamos ter. Não há nada de revolucionário nisso. Ao contrário, a burguesia conseguiu realizar a maior de suas ideologias: tornar a maioria das pessoas, independente da classe, movimento, associação ou religião a que pertença, um indivíduo liberal nato. Aquele que busca seu prazer imediato, utilizando suas potencialidades compradas em prestações infinitas, como o motor do seu carro de passeio, independente das consequências de seus atos. Sua moral católica, evangélica ou espírita vai pro beleléu quando o que está em jogo é, não a sua sobrevivência, mas a possibilidade de passar à frente do outro, da outra, seja pelo acostamento, seja por todas as brechas que a lei tem para não punir quem comete crimes.

Não dá para saber mais quem é o tirano, quem é a vítima. Essa rede viciosa é tecida todos os dias por cada um de nós que avançamos o sinal vermelho, que tiranizamos nossas relações em nossos lares, em todos os lugares. Não há possibilidade de sonhar utopias nesse contexto, de tecer novos textos em nossos atos, porque, algo nos diz que, se não mergulharmos crítica e profundamente em nosso próprio âmago, a fim de nos emanciparmos da tirania que nos habita em busca do prazer imediato e mesquinho, chegaremos atrasados à padaria e ouviremos solenemente do padeiro: -“o sonho acabou”.   

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.

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