Eu morava na areia...
Sereia!!!
me mudei para o sertão...
Sereia!!!
aprendi a namorar...
Sereia
com um aperto de mão.
Ô Sereia!
Era
esta, entre outras cantigas que cantávamos quando éramos crianças. No Calafate,
pessoas de muitas cidades do interior da Bahia vieram morar e, nessa mudança,
do sertão para a areia – pois, parafraseando Maomé entrecruzado com
Conselheiro, se o mar não vir à sertão, o sertão vai vir à mar – trouxeram em
si mesmos, cantigas e histórias, crenças, valores e memórias afetivas tecidas
em outros lugares, construídas em interações sociais e culturais em contextos
singulares que se fizeram textos perenes sobre esta aventura humana em seu
contexto de gestação sóciocultural. Produziram, como afirma Bourdieu (2005),
citado por minha amiga Claúdia P. Vasconcelos (2011), a existência daquilo que
enunciavam. O sertão foi enunciado à beira mar e, nessa beirada, passou a reexistir
e a resistir ao canto metropolitano da sereia, com seu forró, com seu xaxado,
com seus achados e também – porque não? – com o seu clássico, com o seu samba,
com o seu pagode e o seu Axé. Os sertanejos foram ocupando todos os lugares e
muitas “ocupações”, denominadas de “favelas”, foram se constituindo em
comunidades singulares, em função da ressignificação de suas heranças culturais
que não cessam de serem constituídas e constituírem subjetividades. Por isso,
elas não estacionam na areia ou no morro, na fronteira maldita da
hierarquização e da exclusão. Alteram e são alteradas pelas marés, pois,
parafraseando o velho e bom Heráclito de Éfeso, o sertanejo não se banha duas
vezes num mesmo mar.
Quando
o ser humano mora na areia e, de repente,
muda pro sertão, este ser humano se vê envolvido numa mudança importante de
cenário geográfico, cultural, econômico e político e, ele (a) mesmo (a), é
obrigado a se adaptar a este novo cenário, construindo conhecimento e
transformando a si mesmo (a) nesse processo. Na verdade, houve e ainda há uma
mudança do sertão para a areia no Brasil. E o ser tão, chega com seu ser
apresentando seus tantos, lamentos, esperanças, utopias, decepções, alegrias,
crenças e toda a demasia que um ser tão pode apresentar. Parido de um lugar
tão, um ser tão deve surgir como possibilidade perene de ir sendo no mundo em
transformação. E, novamente, ao invés do sertão virar mar, como previu
Conselheiro, foi o mar que virou sertão. Mas o que vem a ser mesmo o sertão?
“Sertão nada mais é que um longe perto, que pode estar em toda parte, ser o
mundo todo e, ao mesmo tempo, estar dentro da gente...” Afirma Cláudia Pereira
Vasconcelos (2011), amparada nos magníficos Patativa do Assaré e Guimarães
Rosa. Aliás, o livro de Cláudia Vasconcelos, “SER-TÃO BAIANO: O lugar da sertanidade na configuração da identidade
baiana” é uma excelente reflexão sistemática sobre a construção social e
histórica do Sertão e do seu papel na construção da chamada
"baianidade", tendo como arcabouço teórico as contribuições de Homi
Bhabha e Pierre Bourdieu, autores que vão auxiliá-la a interpretar criticamente
a construção da identidade sertaneja e a própria fronteira do significado de
sertão e de seus sentidos a partir da hierarquização da diferença pela
constituição da identidade sertaneja em contraposição ao "homem
ideal", "civilizado", "moderno" imposto pelo discurso
hegemônico.
Mas
o curioso é que o Sertão veio morar e namorar na areia. Um namoro começando
“com um aperto de mão”. Contudo, esse aperto de mão entre os discursos
estruturantes da identidade sertaneja, ora é um aperto tipo lutador de luta
livre, ora é um ritual de acordo entre a vontade do homem ideal de sobrepujar o
sertanejo e do sertanejo em constituir sua identidade em condições de igual
para igual, no reconhecimento da diferença não como inferioridade, mas em pé de
igualdade com qualquer processo de tecimento de qualquer outro tipo humano. O
discurso tem uma força, como afirma nossa bela, inteligente e sensível
Vasconcelos (2011).
Desta forma, uma enunciação que parte de um
lugar de poder instituído é capaz de produzir efeitos tão ou mais eficazes que
outras formas de poder. A ideia anunciada concretiza-se através de um discurso
que se afirma pela força da palavra de quem tem o direito à voz. (VASCONCELOS,
2011, p.36)
O
sujeito que vem do sertão, que “[...] o senhor querendo procurar nunca
encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem.”
(GUIMARÃES ROSA apud VASCONCELOS, p.69) precisa pronunciá-lo para continuar
existindo. O sertão vem com o sertanejo, mas se ele se cala, como na música do
admirável ser-tentão Gilberto Gil, o sertão fica escondido num quarto como um
enfermo, emudecido, deslocado, longe do sol e da chuva, sentido, contrariado.
Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do
mato
Da caatinga e do
roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho
amigo
Eu quase que não
consigo
Ficar na cidade sem
viver contrariado
O
sertão não pode ficar assim: escondido "lá no interior do mato". Com Luiz
Gonzaga ele se apresentou ao público brasileiro de outro modo: contando causo,
cantando a vida, sorrindo simpático, mostrando que o sertanejo, além de ser
forte sabe dançar, refletir profundamente a sua condição e o seu destino, adora
um chamego, trabalha muito, comemora bastante a fartura e a sorte. O que o
sertão não pode é "dar uma de coitadinho" e ficar nessa onda, melhor,
nessa areia de que, "por ser de lá"...
Eu quase não falo
Eu quase não sei de
nada
Sou como rês
desgarrada
Nessa multidão, boiada
caminhando à esmo
E
ele, o sertanejo, chega e começa a ser transformado por um discurso
homogeneizante em “favelado”, em problema urbano e social, em migrante
indesejado em São Paulo e no Rio de Janeiro, entre outras metrópoles
brasileiras, para ficar sempre "lá", no lugar que delimitaram para
si. Muito embora o discurso instituído saiba que lá é sempre aqui, em todo
lugar, na areia e no morro também. E recomeçam outras batalhas simbólicas pela
afirmação de sua subjetividade em contextos de negação. O sertão vem com muita
força na saudade, na poesia de Patativa do Assaré, no baião de Luiz Gonzaga, na
travessia de Guimarães Rosa, na "palavra certa pra doutor não
reclamar" de Zé Ramalho. Esse sertão constitui, ele mesmo, uma fonte viva
de significação, de construção de sentidos, do colorido e da dor, da superação,
da reflexão profunda e da celebração que se segue. Será que o sertão ficará
perdido, enterrado na areia? Será invadido pelo mar, devorado pelas
consequências marítimas do efeito estufa? E a sereia? Será que o seu canto vai
enfeitiçar o sertanejo e afogá-lo em meio à práticas discursivas de
invisibilização ou baseadas em estereótipos negativos de sua identidade?
Não acredito. De qualquer forma, eu aposto na dinâmica do processo, onde "pode
acontecer tudo, inclusive nada" (Flávio José), por isso não podemos nos
avexar. Há uma boa opção: ficar com Cláudia Vasconcelos tecendo sertanidades em
nós, para ver se elas vêm.
Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, da Ana Lúcia, de
Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel com o auxílio luxuoso de
VASCONCELOS, Cláudia Pereira. Ser-tão
baiano: o lugar da sertanidade na configuração da identidade baiana. Salvador:
EDUFBA, 2011.
Patativa do Assaré
Flávio José
Gilberto Gil
Luiz Gonzaga e...
Guimarães Rosa