O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É
preciso transver o mundo
Manoel de Barros
Hoje, 05/08/2012, acordei tarde, pois ontem corri 14 km como
preparação para a nova corrida próxima semana, 12/08, aqui em Salvador. Quando
acordo tarde, minha noite ainda permanece manhã adentro e eu fico pousando no sofá
da sala, na cadeira da cozinha e na cama do quarto, isso quando Ana não está,
pois ela não gosta quando fico pousando, por causa do barulho das minhas asas.
Ligo a tv e fico passeando a atenção do fogo que prepara o café para o programa
que esquenta a notícia, enquanto a divulga na chaleira de 32 polegadas. Foi
quando deixei os olhos um pouco de lado e fiquei de frente com meus ouvidos
atentos, porque escutei sobre um jornalista americano, Gay Talese, e seu modo diferente
de enxergar a notícia. Ele não se interessa por celebridades, mas pelo ser
humano comum, simples, invisível no cotidiano das lentes que buscam os que têm
fama. Talese, entrevistado por um repórter brasileiro, justificou sua escolha
afirmando que a celebridade nada tem a dizer. O que diz é ditado pelo seu
assessor de imprensa, e a verdade do que pensa passa bem longe do que diz. Enquanto
isso, frisa ele, há muitas coisas interessantes ditas pelas pessoas comuns, que
a gente precisa ouvir com atenção. Fiquei assistindo aquela entrevista inteira,
encantado com aquele velho sábio que me fez, como raros interlocutores do outro
lado da tv fazem, pensar e estar de acordo.
Gay Talese conta
histórias, boas histórias, de homens simples, principalmente a dos perdedores
e, por isso, escreveu sobre Frank Sinatra, sem nem entrevistá-lo, no momento em
que Sinatra encontrava-se em seu “fundo de poço”, na condição de perdedor. Lembrei-me
imediatamente de outro grande homem, justamente por interessar-se pelos homens
e pelas mulheres perdedoras e sem fama e prestígio social: o poeta Manoel de
Barros. Num de seus poemas que me encantou à primeira desrima, ele nos apresenta Passo-Triste. Passo-Triste é
um personagem que a maioria das pessoas poderia classificar como “mendigo” e louco.
Mas, para Manoel de Barros, Passo Triste
é meu pastor, ele me guiará. E Manoel de Barros toca o mundo com uma
mistura diferente de palavras, construindo uma inteligibilidade surpreendente
sobre os personagens simples e os eventos fantásticos que nossa limitação
cognitiva e pouco sensível percebe.
Depois de ter entrado para rã, para
árvore, para pedra
– meu avô começou a dar germínios.
Queria ter filhos com uma árvore.
Sonhava de pegar um casal de lobisomens
para ir
vender na cidade.
Meu avô ampliava a solidão.
No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos
fundos do
quintal: Meu filhos, o dia já envelheceu,
entrem pra
dentro.
Um lagarto atravessou meu olho e entrou
para o mato.
Se diz que o lagarto entrou nas folhas,
que folhou.
O avô, o lagarto, a
mãe, a imaginação, a tarde finda, a árvore, o quintal e as folhas, tudo encanta
na descrição poética de Barros. E é na simplicidade das coisas, nas coisas de
baixo, como ele mesmo diz, que o seu olho capta o encantamento do mundo. E uma das coisas mais interessantes na poesia de Manoel de Barros é o modo como olha e como vê. Seu olhar não vai atrás, armado de saberes preéstabelecidos, à procura do enquadramento do fenômeno. Muito pelo contrário: Seu olhar se deixa penetrar pelas coisas pequenas e fantásticas, praticamente furando-o, que se transformam em poesia sem muito pensar. Na poesia de Seu Manoel a perfeição das coisas não se submete à busca da perfeição do verbo. Por isso seu poema é grandioso, porque se deixa invadir pela imperfeição do verbo, transformado pela perfeição imperfeita de todas as pequenas e encantadoras coisas e acontecimentos do seu mundo. Em sua poesia é a imperfeição que é perfeita.
Na fotografia temos
Sebastião Salgado, que coloca em evidência aqueles e aquelas para os quais não
ousamos olhar face a face. Porque talvez vejamos o quanto estamos distantes do que podemos denominar de "civilização". A fotografia medeia esse medo e possibilita que
olhemos para os sobrantes, como
definiu Acácia Kuenzer. O ser humano simples é o que constrói esse país, e, para
isso, não precisa de elaborações teóricas sofisticadas, nem da linguagem
hermética que teorias tais acionam como forma de coibir a compreensão e de
reservar o status quo do falante, ao mesmo tempo em que legitima o discurso único,
muito embora esse discurso nada tenha a dizer para os milhões de homens e de
mulheres que, por isso mesmo, não o escutam, e tecem suas próprias práticas discursivas. José de Souza Martins afirma que
Nosso
enigma é hoje o enigma da captura desse homem comum pelos mecanismos de
estranhamento de uma cotidianidade que exacerba a mutilação de nosso
relacionamento com nossas possibilidades históricas e mutila a compreensão dos
limites que cada momento histórico no propõe.
Nosso
entendimento científico desses desencontros está distorcido e limitado por um
conceitualismo descabido, transplante de interpretações de realidades sociais
que são outras, distantes e diferentes, que nos torna estrangeiros em face do
que realmente somos e vivemos. Não podemos nos reconhecer e compreender no
espelho baço da cópia. Nesse país de bacharéis, falamos muito e imitamos muito.
(MARTINS, 20102, p.10)
Vivemos apagando o
ser humano simples da nossa vida. Nós mesmos, algumas vezes, queremos nos
tornar celebridade, sair do lugar comum para outro lugar, um lugar qualquer, ser destacados e reconhecidos em meio à multidão dos invisíveis. Ou
pior: queremos abandonar a nós mesmos, identificando nossa mediocridade e limitações
e esperando alcançar nossa milagrosa condição de MAIS. Um de-mais que nunca
seremos, porque não reconhecemos o nosso de-menos. Lembrei-me
de um livro de história infantil, que, ao invés de comprar para meu filho,
adquiri para meu deleite. O título é “O Homem que Roubava Horas”, de Daniel
Munduruku e ilustrado belissimamente por Janaína Tokitaka. E o personagem
principal é assim apresentado:
Ele
não tinha nome. Ao menos que se soubesse, é claro. Não tinha casa. Dizem que é
porque ele não queria. Morava na rua, como um mendigo, como um andarilho. [...]
Andava sempre só, apenas seguido por um monte de cachorros, tão esquálidos
quanto ele. [...] Vez ou outra aquele homem parava num jardim e todos os cães
se deitavam em sua volta como se fossem ouvir histórias. Dava até gosto de
ver...
É preciso sim, transver
o mundo, para ter gosto de ver as coisas simples e importantes, para ter a poesia no cotidiano, penetrando de sensibilidade o nosso olhar que não procura lentes estrangeiras para entender, mas se deixa penetrar pelo acontecimento fantástico das coisas pequenas e encantadoras. Só assim haverá transformação: Quando a gente transver e rever o
homem, a mulher simples fazendo a história sem ficarmos tomando teorias e prestígios emprestados dos outros para compreender os nossos tecelões da história
brasileira. Com o passo-triste e com o passo-alegre precisamos olhar para quem
pouco se olha, pouco se vê, e com quem pouco aprendemos a conviver uma vida
legítima, que não precisa ser transplantada de outras culturas ditas
civilizadas para que isso aconteça.
Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia,
de todos os demais homens simples, das mulheres comuns e de Jesus, Aquele que
lavou os pés desses homens e mulheres.
Inspirado em Gay Talese, Manoel de Barros e socorrido por José de Sousa Martins, Daniel Munduruku e Janaína Tokitaka.
Inspirado em Gay Talese, Manoel de Barros e socorrido por José de Sousa Martins, Daniel Munduruku e Janaína Tokitaka.
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