sexta-feira, 17 de agosto de 2012

SEREIA, SERTÃO E AREIA

Eu morava na areia...
Sereia!!!
me mudei para o sertão...
Sereia!!!
aprendi a namorar...
Sereia
com um aperto de mão.
Ô Sereia!
Era esta, entre outras cantigas que cantávamos quando éramos crianças. No Calafate, pessoas de muitas cidades do interior da Bahia vieram morar e, nessa mudança, do sertão para a areia – pois, parafraseando Maomé entrecruzado com Conselheiro, se o mar não vir à sertão, o sertão vai vir à mar – trouxeram em si mesmos, cantigas e histórias, crenças, valores e memórias afetivas tecidas em outros lugares, construídas em interações sociais e culturais em contextos singulares que se fizeram textos perenes sobre esta aventura humana em seu contexto de gestação sóciocultural. Produziram, como afirma Bourdieu (2005), citado por minha amiga Claúdia P. Vasconcelos (2011), a existência daquilo que enunciavam. O sertão foi enunciado à beira mar e, nessa beirada, passou a reexistir e a resistir ao canto metropolitano da sereia, com seu forró, com seu xaxado, com seus achados e também – porque não? – com o seu clássico, com o seu samba, com o seu pagode e o seu Axé. Os sertanejos foram ocupando todos os lugares e muitas “ocupações”, denominadas de “favelas”, foram se constituindo em comunidades singulares, em função da ressignificação de suas heranças culturais que não cessam de serem constituídas e constituírem subjetividades. Por isso, elas não estacionam na areia ou no morro, na fronteira maldita da hierarquização e da exclusão. Alteram e são alteradas pelas marés, pois, parafraseando o velho e bom Heráclito de Éfeso, o sertanejo não se banha duas vezes num mesmo mar.

Quando o ser humano mora na areia e, de repente, muda pro sertão, este ser humano se vê envolvido numa mudança importante de cenário geográfico, cultural, econômico e político e, ele (a) mesmo (a), é obrigado a se adaptar a este novo cenário, construindo conhecimento e transformando a si mesmo (a) nesse processo. Na verdade, houve e ainda há uma mudança do sertão para a areia no Brasil. E o ser tão, chega com seu ser apresentando seus tantos, lamentos, esperanças, utopias, decepções, alegrias, crenças e toda a demasia que um ser tão pode apresentar. Parido de um lugar tão, um ser tão deve surgir como possibilidade perene de ir sendo no mundo em transformação. E, novamente, ao invés do sertão virar mar, como previu Conselheiro, foi o mar que virou sertão. Mas o que vem a ser mesmo o sertão? “Sertão nada mais é que um longe perto, que pode estar em toda parte, ser o mundo todo e, ao mesmo tempo, estar dentro da gente...” Afirma Cláudia Pereira Vasconcelos (2011), amparada nos magníficos Patativa do Assaré e Guimarães Rosa. Aliás, o livro de Cláudia Vasconcelos, “SER-TÃO BAIANO: O lugar da sertanidade na configuração da identidade baiana” é uma excelente reflexão sistemática sobre a construção social e histórica do Sertão e do seu papel na construção da  chamada "baianidade", tendo como arcabouço teórico as contribuições de Homi Bhabha e Pierre Bourdieu, autores que vão auxiliá-la a interpretar criticamente a construção da identidade sertaneja e a própria fronteira do significado de sertão e de seus sentidos a partir da hierarquização da diferença pela constituição da identidade sertaneja em contraposição ao "homem ideal", "civilizado", "moderno" imposto pelo discurso hegemônico. 

Mas o curioso é que o Sertão veio morar e namorar na areia. Um namoro começando “com um aperto de mão”. Contudo, esse aperto de mão entre os discursos estruturantes da identidade sertaneja, ora é um aperto tipo lutador de luta livre, ora é um ritual de acordo entre a vontade do homem ideal de sobrepujar o sertanejo e do sertanejo em constituir sua identidade em condições de igual para igual, no reconhecimento da diferença não como inferioridade, mas em pé de igualdade com qualquer processo de tecimento de qualquer outro tipo humano. O discurso tem uma força, como afirma nossa bela, inteligente e sensível Vasconcelos (2011).

Desta forma, uma enunciação que parte de um lugar de poder instituído é capaz de produzir efeitos tão ou mais eficazes que outras formas de poder. A ideia anunciada concretiza-se através de um discurso que se afirma pela força da palavra de quem tem o direito à voz. (VASCONCELOS, 2011, p.36)

O sujeito que vem do sertão, que “[...] o senhor querendo procurar nunca encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem.” (GUIMARÃES ROSA apud VASCONCELOS, p.69) precisa pronunciá-lo para continuar existindo. O sertão vem com o sertanejo, mas se ele se cala, como na música do admirável ser-tentão Gilberto Gil, o sertão fica escondido num quarto como um enfermo, emudecido, deslocado, longe do sol e da chuva, sentido, contrariado.

Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga e do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigo
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado

O sertão não pode ficar assim: escondido "lá no interior do mato". Com Luiz Gonzaga ele se apresentou ao público brasileiro de outro modo: contando causo, cantando a vida, sorrindo simpático, mostrando que o sertanejo, além de ser forte sabe dançar, refletir profundamente a sua condição e o seu destino, adora um chamego, trabalha muito, comemora bastante a fartura e a sorte. O que o sertão não pode é "dar uma de coitadinho" e ficar nessa onda, melhor, nessa areia de que, "por ser de lá"...

Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão, boiada caminhando à esmo

E ele, o sertanejo, chega e começa a ser transformado por um discurso homogeneizante em “favelado”, em problema urbano e social, em migrante indesejado em São Paulo e no Rio de Janeiro, entre outras metrópoles brasileiras, para ficar sempre "lá", no lugar que delimitaram para si. Muito embora o discurso instituído saiba que lá é sempre aqui, em todo lugar, na areia e no morro também. E recomeçam outras batalhas simbólicas pela afirmação de sua subjetividade em contextos de negação. O sertão vem com muita força na saudade, na poesia de Patativa do Assaré, no baião de Luiz Gonzaga, na travessia de Guimarães Rosa, na "palavra certa pra doutor não reclamar" de Zé Ramalho. Esse sertão constitui, ele mesmo, uma fonte viva de significação, de construção de sentidos, do colorido e da dor, da superação, da reflexão profunda e da celebração que se segue. Será que o sertão ficará perdido, enterrado na areia? Será invadido pelo mar, devorado pelas consequências marítimas do efeito estufa? E a sereia? Será que o seu canto vai enfeitiçar o sertanejo e afogá-lo em meio à práticas discursivas de invisibilização ou  baseadas em estereótipos negativos de sua identidade? Não acredito. De qualquer forma, eu aposto na dinâmica do processo, onde "pode acontecer tudo, inclusive nada" (Flávio José), por isso não podemos nos avexar. Há uma boa opção: ficar com Cláudia Vasconcelos tecendo sertanidades em nós, para ver se elas vêm.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, da Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel com o auxílio luxuoso de
VASCONCELOS, Cláudia Pereira. Ser-tão baiano: o lugar da sertanidade na configuração da identidade baiana. Salvador: EDUFBA, 2011. 
Patativa do Assaré
Flávio José
Gilberto Gil
Luiz Gonzaga e...
Guimarães Rosa

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