segunda-feira, 22 de abril de 2013

ATRASADOS


Depois de sair do trabalho árduo daquele dia, trabalho de todos os dias, ela dirigiu-se para o ponto de ônibus, como todos os outros que trabalhavam nas redondezas. Ela ficou pensando naquilo. Ficou pensando naquela rotina que a esmagava como mulher, uma doméstica como outra qualquer, que sofria todo dia aquela romaria sem fim de fim de tarde. O ônibus demorava a chegar, porque algum engarrafamento o impedia n’algum lugar do trajeto. Quando chegou, depois de longos minutos, estava lotado, como era de se esperar. Como era todos os dias. Cansada, foi apertada como uma sardinha na lata. De repente, tomou um susto com tantos pensamentos que lhe assaltavam de supetão. Pensou em sua vida de sardinha. Sentiu-se como todos os outros passageiros. Olhou em volta e viu a expressão de cansaço semelhante com um silêncio e uma atitude frustrante de todos.  - Somos sardinhas! Concluiu rapidamente. Somos sardinhas, pelo menos neste ônibus, nesta lata apertada e desconfortável. Somos sardinhas sem cabeça. Não pensamos mais os nossos sofrimentos de coletividade negada por um sistema negligente e cruel.

Dentro daquele ônibus cercado pelo engarrafamento aparentemente sem fim, o tempo parava. Os relógios continuavam circulando seus ponteiros, mas o tempo de todas as pessoas naquele ônibus estava tão aprisionado quanto elas. Todos e todas estavam envelhecendo ali, aprisionados em seus assentos ou em pé, segurando-se nas barras das poltronas. Uns dormiam, outros fingiam, outras olhavam distantes, outros, curiosos, procuravam a todos instante algum evento exterior que os salvassem do tédio e do massacre que aquelas horas desperdiçadas causavam em suas cabeças.  - Essas pessoas até que são muito saudáveis mentalmente. Já era para terem ficado loucas nesse tempo perdido nesta lotação do inferno. Pensou consigo. Pensou no tempo e ficou pensando.  - O tempo, dentro desse ônibus, não passa pra ninguém. O tempo nesse ônibus passa diferente. Faz a gente pensar no passado, não no futuro. Faz parte de uma engrenagem torturante que tritura o pobre. O tempo vive a nos matar aqui mesmo, nessa viagem pesadelo que parece que nunca vai chegar.

Ela começou a pensar sobre a vida e tudo o que ocorre na vida dela. Enquanto as luzes de centenas de automóveis, vans, caminhões e ônibus acenavam com o freio a lentidão pesadelo. Ela percebeu que havia algo que a todos assemelhava: eram trabalhadores pobres das periferias de Salvador.  - Os ônibus foram feitos para nós. Pensou consigo. - Eram latas de sardinha que arrastavam lentamente nossos sonhos com o cansaço tão grande que ameaçava reduzir a sono toda a esperança que resistia acordada naquele trajeto carcerário. Estavam presos e presa. Era uma presa fácil daquela condição. Não conhecia bem a história, devido à sua formação escolar precária. Mas sentia que havia naquela condição humana, muito mais desumanidade que a fizera pensar em Auschwitz. Talvez estivesse ficando louca, afinal, nenhum louco sabe que está louco. É sempre preciso que uma autoridade competente, formada em psiquiatria, identifique os traços da loucura e classifique o louco como tal. Mas ela desconfiava que, se houvesse loucura naqueles pensamentos, ela assim preferiria, pois sentia que agora fora atravessada pela percepção aguda de sua condição social, política, cultural e econômica.

Vivia, melhor, sobrevivia, numa pobreza política, pois tinha dificuldades em mudar sua condição por conta dos inúmeros empecilhos colocados no caminho emancipatório que sonhava.  - A educação pública? Uma mentira. A saúde pública? Ainda muito distante do ponto da qualidade.  A segurança pública? Uma quimera. O Brasil, na verdade, era aquele ônibus. Está preso no engarrafamento dele mesmo, sem planejamento, distante dos pontos basilares onde as necessidades de vida decente de seu povo são atendidas. Sentia-se dirigindo-se, todos os dias para campos de concentração, já que a democracia no Brasil, tal como os outros bens sociais, era apenas fachada, uma palavra vazia que conduzia a nada. E continuou: - O Brasil está parado no ponto onde não se pode falar, pois mesmo que fale, sua queixa não se transforma em ação. Não podia reclamar do trajeto, do trabalho, do salário, da insegurança, do acesso à saúde pública, da educação que mal permitia escrever um bilhete, muito menos elaborar um texto dissertativo que contivesse sua angústia vivida e revivida de segunda a sábado de toda semana, do ano inteiro. 

Então, começou a perceber que não era apenas naquele ônibus lotado que estava na condição de sardinha. Seu mundo inteiro era uma lata apertada que exigia a retirada de sua cabeça para ser uniformizada, tal como sua profissão de doméstica. Pior. Não era nem o fato de ser uniformizada. Ela notou que todos estavam em silêncio. Não um silêncio de não falar. Mas um silêncio pior: o de falar coisas que todos falavam. Era o silenciamento de outro jeito. Falar muitas coisas para que as coisas que devem ser faladas ficarem no silêncio. Falavam de Faustão, do Bahia e do Vitória; falavam da novela, de futebol e de pagode; falavam de crimes e de bandidos que os programas de Bocão e de Uziel Bueno tornavam ainda mais criminosos e cruéis. Ela refletiu: - Tem gente que é pior que urubu: transforma a morte em mercadoria e vende a carniça para outros comerem. Ela percebeu isso tudo. Não ouviu ninguém falar sobre o porquê daquela vida tão sardinha. Ninguém comentava o trajeto doloroso, a via crúcis até em casa. Ninguém reclamava mais do prefeito, do governador, dos canalhas de gravata e paletó que desfrutam dos mais altos privilégios em câmaras de vereadores, assembleias legislativas e Congresso Nacional. Estavam todos cansados e descrentes e havia muitas bocas cheias de dentes, esperando a morte chegar. Ela também estava nesse mesmo trecho da vida política brasileira e baiana que todos partilhavam.

Ela ficou pensando em todo o tempo que havia perdido naquele ou n’outro trajeto daquela cidade parada. Não queria ser mais sardinha. Mas, de fato, estava naquela lata quente, entupida de gente querendo chegar num futuro incerto, num tempo impreciso, na sua casa, seu lar. A quem recorreria? Ao Detran? À SET (Superintendência de Engenharia de Tráfego de Salvador)? À Polícia Rodoviária Estadual ou Federal? - Não havia ninguém. Ela sabia. - Não havia engenharia para aquele tráfego baseado no automóvel individual e individualista. Não havia autoridade sequer. A imprensa só podia divulgar seu sofrimento e mais nada. Mesmo assim sabia que sua angústia jamais seria publicada, porque ela, provavelmente, fosse tratada como sardinha, mesmo que provasse que era uma sardinha com cabeça. A fome chegou e ainda não era nem metade do caminho. Não havia mais estradas, só engarrafamentos emendados pela cidade inteira, num grande nó de pescador. Pensou na sede e na vontade de ir ao banheiro. Não podia saltar daquele ônibus. Estava presa, como sabia. Decidira chegar em casa, para matar a fome, saciar a sede, ir ao banheiro e resolver todas as suas necessidades num só lugar, seu lugar. Seu terreno sagrado. Todo o tempo naquele transporte coletivo ia adiando essa pequena felicidade, como uma luz no fim do túnel que vai se apagando lentamente. Estava presa naquela angústia que só passava da 1.ª para a 2.ª marcha e daí pro "ponto morto". 

- A Bahia e o Brasil era um "ponto morto", principalmente para o pobre, e mais ainda para o pobre que padecia de "pobreza política". Refletiu. Ela desejou ardentemente o ponto de casa, o ponto a partir do qual pode haver um ponto de mutação. Uma esperança que desviasse todo o trajeto para outro ponto de justiça, de alegria, de solidariedade, de ternura, de inteligência que serve aos mais pobres. Queria poder ter uma bota de sete léguas, queria ter asas, queria ter um helicóptero, como o governador, para estar em casa diante de todo aquele trajeto sofrido que lhe espremia completamente, corpomente. Seus pés doíam em pé. Seu sono refletia o peso do dia. O tempo parado ali dentro envelhecia a esperança entristecida de todos os passageiros. Todos eles atrasados para chegar em casa e na vida decente que mereciam fora da lata, longe da condição de sardinha que a propaganda mentirosa do governo prometia nos meios de comunicação social.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

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