Vocês,
de fato, concordam, em parte, com o que Iglésias nos ensina sobre as características
principais do pensamento filosófico, texto disponibilizado no AVA da disciplina
que eu sei que vocês ainda não leram. Iglésias (1992) afirma que:
O saber filosófico: 1) é um saber “de todas as coisas”, um saber
universal; num certo sentido, nada está fora do campo da filosofia; 2) é um
saber pelo saber: um saber livre, e não um saber que se constitui para resolver
uma dificuldade de ordem prática; 3) é um saber pelas causas; o que Aristóteles
entende por causa não é exatamente o que nós chamamos por esse nome; de
qualquer forma, saber pelas causas envolve o exercício da razão, e esta envolve
a crítica: o saber filosófico é, pois, um saber crítico. (IGLÉSIAS, 1992, p.
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Logo, em relação ao pensamento crítico, vocês
concordam com a autora, o que já é meio caminho andando. Mas, o que vem a ser
crítico? Qual o sentido filosófico para tal expressão? Crítico, não é, como já
falei e escrevi, uma pessoa chata, que vê o mundo e a humanidade apenas como
degradação, com ceticismo. Uma pessoa dotada de criticidade desconfia dos
arranjos sociais dados, tidos como permanentes e inevitáveis. Desconfia das
concepções apressadas de ser humano de determinado lugar, colocando-lhe
estereótipos que o identificam socialmente, tal como os judeus – que segundo a ideologia
são todos uns mesquinhos -; os baianos – que segundo essas concepções
ideológicas são todos uns preguiçosos -, ou que o baiano é lento e preguiçoso
por causa de suas raízes africanas, etc. Então, ser crítico é trabalhar na
desconstrução dessas ideias esdrúxulas sobre o outro e sobre o mundo,
fundamentando a crítica em dados sobre trabalho, emprego, participação do negro
no mercado de trabalho, a mulher negra na sociedade contemporânea, enfim, pesquisas
realizadas a fim de desconstruir tais falsas ideias sobre um povo, ou sobre
qualquer coisa. Vou dar um pequeno exemplo com a música de Chico César,
Beradêro:
Os olhos tristes da fita
rodando no gravador
uma moça cosendo roupa
com a linha do Equador
e a voz da Santa dizendo
O que é que eu tô fazendo
cá em cima desse andor
A tinta pinta o asfalto
Enfeita a alma motorista
É
a cor na cor da cidade
Batom
no lábio nortista
O
olhar vê tons tão sudestes
E
o beijo que vós me nordestes
Arranha
céu da boca paulista
“É a cor na cor da cidade, batom no lábio
nortista. O olhar vê tons tão sudestes e o beijo que vós me nordestes
arranha-céu da boca paulista...” Olhem só que criação fantástica da
inteligência humana expressa na poesia concreta de Chico César! Que crítica
inteligente! Quer dizer: enquanto as pessoas de São Paulo, Rio (sudeste) ficam
deslumbradas com os edifícios altos, com as mega construções que se apresentam
diante dos seus olhares, como se isso expressasse a condição superior de “lá
eles e elas” diante de nós, os “inferiores nordestinos e nortistas”, Chico César
chama a atenção para o fato de que quem construiu isso tudo no braço, no
cansaço, no suor, foram os nordestinos e os nortistas, muitos deles rejeitados
pelos que se denominam “paulistas legítimos”, “sulistas de origem alemã, ou europeia
de modo geral”. Tem idiotas que adoram referendar suas origens na Europa, como se isso lhes desse algum status por empréstimo, quando, de fato, só demonstra o quanto são guiados por ideologias superficiais que nos aproximam do neonazismo e nos distanciam da solidariedade. Temos nossas raízes europeias, sim. Que bom. Mas não devemos negar nem submeter nossas raízes africanas e indígenas a tal hierarquia fantasiosa e maléfica para o ser humano brasileiro.
Relendo o texto estava percebendo um erro por mim cometido no mesmo. Refiro-me de modo generalista e superficial aos sudestinos e sulistas. De fato, só refiro-me àqueles e àquelas que nos tratam com escárnio e desprezo, sustentados pelo preconceito irracional. Muitos nordestinos e nortistas são bem recebidos e acolhidos em São Paulo, Rio de Janeiro e no Sul do país. Há muitas pessoas solidárias que reconhecem o valor de nossas culturas e os valores que delas emanam. Nesse sentido, minha reflexão acima é pobre e infeliz, embora não deixe de identificar problemas advindos de preconceitos históricos construídos contra os nossos modos de ser, de falar, de viver, de sentir, de produzir a existência.
Então, Chico César denuncia essa situação, mostrando que nossa nação deve enxergar para além da aparência que os tons sudestes e, acrescento eu, sulistas, oferecem em sua nociva prática discursiva, percebendo a importância histórica dos nordestinos e nortistas na luta pela sobrevivência. Essas visões são “arranhadas” pelo beijo
nordestino que vem sendo dado historicamente na construção desse Brasil.
Essa foi a bela forma de expressão usada pelo brilhante Chico César para
expressar seu pensamento crítico. Logo, o papel da arte é importantíssimo na
percepção crítica do mundo. Assim como na poesia e na música tem também no
quadros de Salvador Dali, de Pablo Picasso, de Cândido Portinari, no teatro, na fotografia, etc. A
arte, pelo menos uma parte de suas expressões, traz a crítica, ou a
possibilidade dela, denunciando situações de negação humana e também
enaltecendo situações de liberdade plena, de lucidez emancipatória, de criação fértil,
do gozo pleno da paz e da alegria.
Gente, vocês não podem aceitar ficarem na condição
de pessoas que pensam pouco, ao contrário, devem sofisticar o seu pensamento e
desenvolver essa capacidade imensa de pensar criticamente o mundo, a religião,
os discursos, as propagandas, as concepções sobre o povo, a história, o futuro,
tudo, como é da ordem do pensamento filosófico. Eu desejo o conhecimento e a educação como um remédio filosófico para a nossa alma brasileira.
Em tempo
Mas o que quero comentar é sobre o tempo. Ora
vocês hipervalorizam o futuro e desvalorizam o presente, ora desvalorizam o
futuro e se agarram ao presente “deixando a vida vos levar”. As vezes “o
agora”, o imediato, é importante. Embora eu tenha entendido o sentido a que vocês
se referem, como as pessoas que querem curtir o mundo adoidado sem planejar o
futuro, preparando-se para ele. É a teoria psicanalítica “do homem sem gravidade”. O ser humano sem
gravidade é aquele que não é preso a nada, a valores, a obrigações e
responsabilidades, a respeito, nada. Aquele que liga o som do seu carro ou de
sua casa nas alturas sem se preocupar com seu vizinho, com as demais pessoas; aquele
(a) que fuma ou cheira sua droga ou ingere seu álcool e vai dirigir. Ou aquele
(a) que transa sem camisinha sem preocupar-se com as consequências do seu ato
imprudente. Esse homem sem gravidade
é o ser humano do nosso tempo. E não está apenas em Pintadas, Capela do Alto
Alegre, Ipirá ou Pé de Serra. Está em todo o mundo. O “homem sem gravidade” é
um fenômeno mundial, segundo Charles Melmann, psicanalista, seguidor de Lacan. Nesse
sentido entendi a crítica de vocês sobre as pessoas pouco se importarem com o
agora.
Contudo, podemos viver o agora de uma forma que
não passemos nossa vida e nossa realização pessoal e coletiva projetada num
futuro que nunca chega. Tem gente que projeta sua “felicidade” no futuro,
quando o Bahêa ou o Vitória for campeão; quando o filho ou a filha nascer;
quando ganhar na loteria; quando passar no vestibular ou quando sair da
faculdade com o diploma na mão, ou mesmo quando aquela pessoa disser sim para o
nosso amor. Ter esperança é bom, ter ilusão é péssimo. Eu penso com Osvaldo
Montenegro
quando canta alto que “quer ser feliz agora”...
Se alguém disser pra você não
cantar
deixar teu sonho ali pr'uma
outra hora
que a segurança exige medo
que quem tem medo Deus adora
Se alguém disser pra você não
dançar
que nessa festa você tá de fora
que você volte pro rebanho.
Não acredite, grite, sem
demora...
Eu quero ser feliz Agora!
O medo é importante. Ele nos salva de muitas
tragédias. Mas existe uma tênue diferença entre medo e covardia. O medo pode
nos trazer prudência, mas não pode nos paralisar, como afirmava o mestre Paulo
Freire. Nossos políticos brasileiros fizeram uma festa e deixaram seu povo de
fora. A Copa do Mundo é de um mundinho bem restrito, esta festa não é nossa. E
o que fazer? Fingir que isto não acontece e torcer pela vitória de uma, como o
próprio nome diz, “seleção”? Torcer para nossos jogadores multiplicarem suas
riquezas através da venda de sua valorizada força de trabalho enquanto o torcedor se contorce para viver? Nããããão! É preciso sair às ruas e gritar: NÓS QUEREMOS SER RESPEITADOS AGORA! NÓS QUEREMOS SAÚDE, EDUCAÇÃO, SEGURANÇA, HABITAÇÃO, TRANSPORTE, PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA AGORA! Nesta “festa
pobre que os homens armaram pra nos convencer” só entra quem paga muito caro. Os castelos-fortalezas (estádios) foram
erguidos com empréstimos generosos do BNDES para que os homens fortes da FIFA fossem
agraciados em seus desejos, caprichos e exigências. Foi transferência de patrimônio público para enriquecimento privado, como foi feito na ditadura. Por isso ninguém está nem aí para o preço desses castelos medievais. Não se trata de uma questão técnica, mas de uma questão mais ampla das determinações do capitalismo mundial para o Brasil. Quem já procurou agradar os brasileiros em suas exigências e necessidades? Trouxeram a Copa, mas não trouxeram o
mundo. Não trouxeram o respeito e dignidade ao nosso mundo. O que trouxeram foi a imposição de um modelo imundo de mundo para o nosso mundo. Tal como os
portugueses em 1500, trouxeram propagandas, bugigangas, ilusões para nós comprarmos e torcermos,
como índios à beira-mar. Nos espelhos que nos dão, olhamos e, tal como os índios de abril de 1500, talvez nos espantemos com a imagem que é projetada. Devemos decidir ativamente que tipo de povo nós queremos ser, que tipo de povo estamos sendo: uma pátria de chuteiras, ou povos unidos num imenso território a serviço da diversidade, da solidariedade, da produção democrática da nação que respeita e trata dignamente sua gente.
Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel