O filósofo Adolfo Sánchez
Vázquez (2007)[1] estabelece a diferença entre atividade,
atividade humana e práxis. A
formiga faz atividade, embora não pense a ação antes de fazê-la. O fígado, o
pulmão, o coração realizam atividades sem as quais o organismo não poderia
continuar vivo. Mas, acredito, esses órgãos também não pensam a ação antes de
fazê-la. Eles realizam a atividade e pronto. A formiga, a aranha, a abelha
realizam atividades que não planejam, pois esses seres cumprem o que está
determinado pela filogênese, ou seja, realizam o que sua espécie determina
geneticamente ao longo do seu desenvolvimento natural num longo processo de
adaptação. Segundo Vázquez (2007, p.219) Por
atividade em geral entendemos o ato ou conjunto de atos em virtude dos quais um
sujeito (agente) modifica uma matéria-prima dada, [...] produzindo um produto.
Assim, nesse entendimento, todo ser vivo, todo órgão, toda máquina, realiza uma
atividade. Vázquez esclarece que, para
ser atividade, para ter esse
conceito de atividade, é preciso que os atos singulares se articulem ou
estruturem, como elementos de um todo, ou de um processo total, que desemboca
na modificação de uma matéria-prima. Uma teia de aranha é o produto da
atividade da aranha que é, por sua vez, um conjunto de atos articulados entre
si. A colmeia de uma abelha e o formigueiro das formigas ou um ninho de um
pássaro são um todo, produtos de atividades onde há transformação de
matéria-prima para esses fins. Porém, são atividades meramente de caráter
biológico, natural.
A atividade humana é
também um conjunto de atos articulados entre si que transformam uma
matéria-prima tendo como resultado um produto. Mas, segundo Vázquez
A atividade
propriamente humana apenas se
verifica quando os atos dirigidos a um objeto para transformá-lo se iniciam com
um resultado ideal, ou fim, e terminam com um resultado ou produto efetivo,
real. Nesse caso, os atos não só são determinados causalmente [não confundir com
“casualmente”, que vem de “acaso”, “causalmente” vem de “causa”] por um estado
anterior que se verificou efetivamente – determinação do passado pelo presente
–, como também por algo que ainda não tem uma existência efetiva e que, no
entanto, determina e regula os diferentes atos antes de desembocar em um
resultado real; ou seja, a determinação não vem do passado, mas sim do futuro.
Esse modo de articulação e determinação dos diferentes atos do processo ativo
distingue radicalmente a atividade especificamente humana de qualquer outra que
se encontre em um nível meramente natural. (VÁZQUEZ, 2007, p.220-221)
Ou seja: a atividade sai do nível biológico e
entra no nível social e histórico, tornando-se atividade humana. O ser humano pensa a ação antes de fazê-la, ele
planeja, antecipa no presente o futuro que ele deseja em forma de plano, que
vai “determinar e
regular os diferentes atos antes de desembocar em um resultado real.”
Não entenderam ainda?
Pensem então na construção de um prédio. Antes dele existia um terreno cheio de
mato e, no caso da Bahia, de lixo. Algum investidor passa e avalia o terreno: o
passado do terreno é determinado pela constatação do presente, da avaliação do
potencial de construção feita sobre ele. Logo, imagina o futuro: um prédio de
tantos andares – que para ele, vai gerar muita grana – com dois, três ou quatro
apartamentos por andar de três e quatro quartos etc., etc., etc. Uma empresa de
engenharia é contratada, faz o levantamento da resistência do solo, limpa o
terreno, elabora o projeto, em forma de plantas – plantas baixas, plantas
transversais, plantas das fachadas, plantas elétricas, plantas hidráulicas,
entre outras. Embora o prédio ainda não exista de fato, só idealmente, na
cabeça das pessoas que o planejam nos projetos. As plantas representam o
futuro que ainda não existe, mas que determina e regula as atividades presentes
de profissionais diversos como pedreiros, serventes, encanadores, eletricistas,
ladrilheiros, ferreiros, engenheiros, marceneiros, entre tantos outros
envolvidos naquela obra. Assim, o futuro – o edifício ainda inexistente –
determina e regula as atividades humanas, no presente, de todos os envolvidos
naquele empreendimento em processo de construção. Entenderam agora? E é assim
com a agricultura, a pesca, a pecuária, a educação, enfim com todas as
atividades humanas. O trabalho é uma atividade humana privilegiada porque,
antes de qualquer outro ato histórico, o ser humano, como dizia Marx na
Ideologia Alemã, precisa produzir a sua existência e, para isso, ele pensa a
ação antes de executá-la, nenhum animal faz isso, pelo menos até agora.
Essa prefiguração ideal do resultado real diferencia radicalmente
a atividade do homem de qualquer outra atividade animal que, externamente,
pudesse se assemelhar a ela. “Uma aranha – diz Marx – executa operações que se
assemelham às manipulações do tecelão, e a construção das colmeias pelas
abelhas poderia envergonhar, por sua perfeição, a mais de um mestre-de-obras.
Mas há algo em que o pior mestre-de-obras leva vantagem, de imediato, em
relação à melhor abelha, e é o fato de que, antes de executar a construção,
projeta-a em seu cérebro. (VÁZQUEZ, 2007, p.223)
Vamos
percebendo claramente que não podemos comparar a atividade animal à atividade
humana pelo seu resultado, produto (exterior). A consciência humana que produz
fins, que adequa e elabora a tecnologia necessária, que elabora conceitos,
teorias, objetivos, finalidades, princípios, hipóteses e leis, faz toda a
diferença. É preciso que nós entendamos de vez que, no produto, está tanto a
transformação objetiva da matéria-prima em produto, quanto à transformação subjetiva
do ser humano que o produz. Na atividade humana a exterioridade (produto) e a
interioridade (subjetividade humana – inteligência, perspicácia, criatividade,
persistência e demais potencialidades pessoais e coletivas) se encontram, num
processo permanente de transformação.
Vázquez (2007) afirma que toda práxis é atividade humana,
mas nem toda atividade humana é práxis. Práxis, professor? Por que o
autor acima ainda faz essa diferenciação entre atividade humana e práxis? Não está complicando demais?
Não. Respondo eu.
Muitas atividades humanas
não são práxis. Por que
Joselito? Porque, segundo Vázquez (2007) a atividade
humana tem duas dimensões: uma é a atividade cognoscitiva, a outra é a atividade teleológica. A atividade
cognoscitiva se refere a uma realidade passada ou presente, que se pretende
conhecer sistematicamente através do metódico exame teórico. A teleológica
refere-se a uma realidade futura, ainda inexistente, que se pretende
concretizar através da ação prática de transformação da realidade presente que
negamos porque nos nega. “Por outro lado, a atividade cognoscitiva em si não
implica uma exigência de realização, em virtude da qual se tende a fazer do fim
uma causa da ação real.” (p.223). De fato, a consciência de uma situação e o
conhecimento de uma realidade e de seus desdobramentos não nos leva a agir.
Podemos até rejeitar um futuro que previmos através de nossa atividade teórica,
que é também uma atividade humana.
Quer se trate da
formulação de fins ou da produção de conhecimentos, a consciência não
ultrapassa seu próprio âmbito; isto é, sua atividade não se objetiva ou
materializa. Por essa razão, tanto uma como outra são atividades; não são, de
modo algum, atividade objetiva, real, isto é práxis.
(VÁZQUEZ, 2007, p. 225)
Somente
quando a atividade cognoscitiva e a teleológica se encontram na transformação
real, prática, de um objeto, de uma realidade é que a práxis
acontece. Entenderam? Não é o blábláblá,
como diria Paulo Freire no seu Pedagogia do Oprimido. Nem a atividade por si
mesma - o ativismo - destituída de reflexão, de atividade cognoscitiva, mas a
união dialética entre teoria e prática visando e agindo na transformação da
realidade é que constituem a práxis.
“Em consequência, [na práxis] as atividades
cognoscitiva e teleológica da consciência se encontram em uma unidade
indissolúvel.” (VÁZQUEZ, 2007, p. 225)
Portanto,
a experiência, destituída de reflexão crítica, não é parâmetro para o
conhecimento da realidade, no sentido de seu conhecimento teórico e de sua
transformação prática, prática esta dirigida pelos fins que a teoria propiciou.
Entenderam gente? Isso não significa que uma pessoa analfabeta, envolvida num
grupo, movimento ou instituição social, não seja capaz de transformação da
realidade. Olha o caso dos sem terra. Mas fiquem sabendo que os sem-terra
estudam em grupo, refletem teoricamente a sua realidade, identificam os
princípios e as conexões que os mantêm na condição de “sem-terra” e agem,
dirigidos por suas lideranças, no sentido da transformação de tais princípios e
conexões que dirigem a realidade política, social, econômica e cultural que os
negam enquanto sujeitos de direitos. O objetivo dos sem-terra é maior do que o
simples objetivo de passarem a estar "com-terra". Não é um objetivo
de poder com restrita finalidade econômica, mas com uma finalidade
político-filosófica mais ampla: a de que a terra não tenha dono, que seja de
todos e todas. Para isso, não basta "ter a terra", é preciso mudar
inteiramente o sistema baseado no princípio geral da propriedade privada.
Joselito da Nair, do Zé, do
Rafael, de Ana Lúcia, TENTANDO ESTAR
NA PRÁXIS,
de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
[1] VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia
da práxis. 1. ed. Buenos Aires: Consejo Latino Americano de Ciencias
Sociales – CLACSO; São Paulo: Expresso Popular, Brasil, 2007.
Sensacional!
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