terça-feira, 13 de maio de 2014

PRÁXIS


O filósofo Adolfo Sánchez Vázquez (2007)[1] estabelece a diferença entre atividade, atividade humana e práxis. A formiga faz atividade, embora não pense a ação antes de fazê-la. O fígado, o pulmão, o coração realizam atividades sem as quais o organismo não poderia continuar vivo. Mas, acredito, esses órgãos também não pensam a ação antes de fazê-la. Eles realizam a atividade e pronto. A formiga, a aranha, a abelha realizam atividades que não planejam, pois esses seres cumprem o que está determinado pela filogênese, ou seja, realizam o que sua espécie determina geneticamente ao longo do seu desenvolvimento natural num longo processo de adaptação. Segundo Vázquez (2007, p.219) Por atividade em geral entendemos o ato ou conjunto de atos em virtude dos quais um sujeito (agente) modifica uma matéria-prima dada, [...] produzindo um produto. Assim, nesse entendimento, todo ser vivo, todo órgão, toda máquina, realiza uma atividade. Vázquez esclarece que, para ser atividade, para ter esse conceito de atividade, é preciso que os atos singulares se articulem ou estruturem, como elementos de um todo, ou de um processo total, que desemboca na modificação de uma matéria-prima. Uma teia de aranha é o produto da atividade da aranha que é, por sua vez, um conjunto de atos articulados entre si. A colmeia de uma abelha e o formigueiro das formigas ou um ninho de um pássaro são um todo, produtos de atividades onde há transformação de matéria-prima para esses fins. Porém, são atividades meramente de caráter biológico, natural.
A atividade humana é também um conjunto de atos articulados entre si que transformam uma matéria-prima tendo como resultado um produto. Mas, segundo Vázquez

A atividade propriamente humana apenas se verifica quando os atos dirigidos a um objeto para transformá-lo se iniciam com um resultado ideal, ou fim, e terminam com um resultado ou produto efetivo, real. Nesse caso, os atos não só são determinados causalmente [não confundir com “casualmente”, que vem de “acaso”, “causalmente” vem de “causa”] por um estado anterior que se verificou efetivamente – determinação do passado pelo presente –, como também por algo que ainda não tem uma existência efetiva e que, no entanto, determina e regula os diferentes atos antes de desembocar em um resultado real; ou seja, a determinação não vem do passado, mas sim do futuro. Esse modo de articulação e determinação dos diferentes atos do processo ativo distingue radicalmente a atividade especificamente humana de qualquer outra que se encontre em um nível meramente natural. (VÁZQUEZ, 2007, p.220-221)
Ou seja: a atividade sai do nível biológico e entra no nível social e histórico, tornando-se atividade humana. O ser humano pensa a ação antes de fazê-la, ele planeja, antecipa no presente o futuro que ele deseja em forma de plano, que vai “determinar e regular os diferentes atos antes de desembocar em um resultado real.”
Não entenderam ainda? Pensem então na construção de um prédio. Antes dele existia um terreno cheio de mato e, no caso da Bahia, de lixo. Algum investidor passa e avalia o terreno: o passado do terreno é determinado pela constatação do presente, da avaliação do potencial de construção feita sobre ele. Logo, imagina o futuro: um prédio de tantos andares – que para ele, vai gerar muita grana – com dois, três ou quatro apartamentos por andar de três e quatro quartos etc., etc., etc. Uma empresa de engenharia é contratada, faz o levantamento da resistência do solo, limpa o terreno, elabora o projeto, em forma de plantas – plantas baixas, plantas transversais, plantas das fachadas, plantas elétricas, plantas hidráulicas, entre outras. Embora o prédio ainda não exista de fato, só idealmente, na cabeça das pessoas que o planejam nos projetos. As plantas representam o futuro que ainda não existe, mas que determina e regula as atividades presentes de profissionais diversos como pedreiros, serventes, encanadores, eletricistas, ladrilheiros, ferreiros, engenheiros, marceneiros, entre tantos outros envolvidos naquela obra. Assim, o futuro – o edifício ainda inexistente – determina e regula as atividades humanas, no presente, de todos os envolvidos naquele empreendimento em processo de construção. Entenderam agora? E é assim com a agricultura, a pesca, a pecuária, a educação, enfim com todas as atividades humanas. O trabalho é uma atividade humana privilegiada porque, antes de qualquer outro ato histórico, o ser humano, como dizia Marx na Ideologia Alemã, precisa produzir a sua existência e, para isso, ele pensa a ação antes de executá-la, nenhum animal faz isso, pelo menos até agora.

Essa prefiguração ideal do resultado real diferencia radicalmente a atividade do homem de qualquer outra atividade animal que, externamente, pudesse se assemelhar a ela. “Uma aranha – diz Marx – executa operações que se assemelham às manipulações do tecelão, e a construção das colmeias pelas abelhas poderia envergonhar, por sua perfeição, a mais de um mestre-de-obras. Mas há algo em que o pior mestre-de-obras leva vantagem, de imediato, em relação à melhor abelha, e é o fato de que, antes de executar a construção, projeta-a em seu cérebro. (VÁZQUEZ, 2007, p.223)
Vamos percebendo claramente que não podemos comparar a atividade animal à atividade humana pelo seu resultado, produto (exterior). A consciência humana que produz fins, que adequa e elabora a tecnologia necessária, que elabora conceitos, teorias, objetivos, finalidades, princípios, hipóteses e leis, faz toda a diferença. É preciso que nós entendamos de vez que, no produto, está tanto a transformação objetiva da matéria-prima em produto, quanto à transformação subjetiva do ser humano que o produz. Na atividade humana a exterioridade (produto) e a interioridade (subjetividade humana – inteligência, perspicácia, criatividade, persistência e demais potencialidades pessoais e coletivas) se encontram, num processo permanente de transformação.
Vázquez (2007) afirma que toda práxis é atividade humana, mas nem toda atividade humana é práxis. Práxis, professor? Por que o autor acima ainda faz essa diferenciação entre atividade humana e práxis? Não está complicando demais? Não. Respondo eu.
Muitas atividades humanas não são práxis. Por que Joselito? Porque, segundo Vázquez (2007) a atividade humana tem duas dimensões: uma é a atividade cognoscitiva, a outra é a atividade teleológica. A atividade cognoscitiva se refere a uma realidade passada ou presente, que se pretende conhecer sistematicamente através do metódico exame teórico. A teleológica refere-se a uma realidade futura, ainda inexistente, que se pretende concretizar através da ação prática de transformação da realidade presente que negamos porque nos nega. “Por outro lado, a atividade cognoscitiva em si não implica uma exigência de realização, em virtude da qual se tende a fazer do fim uma causa da ação real.” (p.223). De fato, a consciência de uma situação e o conhecimento de uma realidade e de seus desdobramentos não nos leva a agir. Podemos até rejeitar um futuro que previmos através de nossa atividade teórica, que é também uma atividade humana.

Quer se trate da formulação de fins ou da produção de conhecimentos, a consciência não ultrapassa seu próprio âmbito; isto é, sua atividade não se objetiva ou materializa. Por essa razão, tanto uma como outra são atividades; não são, de modo algum, atividade objetiva, real, isto é práxis. (VÁZQUEZ, 2007, p. 225)
Somente quando a atividade cognoscitiva e a teleológica se encontram na transformação real, prática, de um objeto, de uma realidade é que a práxis acontece. Entenderam? Não é o blábláblá, como diria Paulo Freire no seu Pedagogia do Oprimido. Nem a atividade por si mesma - o ativismo - destituída de reflexão, de atividade cognoscitiva, mas a união dialética entre teoria e prática visando e agindo na transformação da realidade é que constituem a práxis. “Em consequência, [na práxis] as atividades cognoscitiva e teleológica da consciência se encontram em uma unidade indissolúvel.” (VÁZQUEZ, 2007, p. 225)
Portanto, a experiência, destituída de reflexão crítica, não é parâmetro para o conhecimento da realidade, no sentido de seu conhecimento teórico e de sua transformação prática, prática esta dirigida pelos fins que a teoria propiciou. Entenderam gente? Isso não significa que uma pessoa analfabeta, envolvida num grupo, movimento ou instituição social, não seja capaz de transformação da realidade. Olha o caso dos sem terra. Mas fiquem sabendo que os sem-terra estudam em grupo, refletem teoricamente a sua realidade, identificam os princípios e as conexões que os mantêm na condição de “sem-terra” e agem, dirigidos por suas lideranças, no sentido da transformação de tais princípios e conexões que dirigem a realidade política, social, econômica e cultural que os negam enquanto sujeitos de direitos. O objetivo dos sem-terra é maior do que o simples objetivo de passarem a estar "com-terra". Não é um objetivo de poder com restrita finalidade econômica, mas com uma finalidade político-filosófica mais ampla: a de que a terra não tenha dono, que seja de todos e todas. Para isso, não basta "ter a terra", é preciso mudar inteiramente o sistema baseado no princípio geral da propriedade privada.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, TENTANDO ESTAR NA PRÁXIS, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel



[1] VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. 1. ed. Buenos Aires: Consejo Latino Americano de Ciencias Sociales – CLACSO; São Paulo: Expresso Popular, Brasil, 2007.

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