domingo, 31 de maio de 2020

OS BANDIDOS DO RACISMO E O RACISMO BANDIDO QUE INOCENTA OS CRIMINOSOS BRANCOS

Os brancos roubam o mundo. Eles são os grandes ladrões. Foram os brancos que roubaram a África, a Ásia, a América. Para roubar, eles ameaçam, prendem, matam centenas, milhares, milhões de seres humanos que habitam os territórios em que vivem. Além de ladrões, também são assassinos e, além disso, os brancos elegem elites que fazem o seu serviço sujo de prender, arrebentar e assassinar todos/as aqueles/as que se colocam contra a dominação colonialista. O que se chama de colonização é o projeto genocida dos brancos. É o grande assalto à humanidade alheia: indígenas, asiáticos/as, ciganos/as, negros/as, judeus, pessoas com deficiência, homossexuais, mulheres, transexuais etc. E, no entanto, os brancos se acham no direito de nos acusar pelo atraso na economia e por tudo de ruim que há no mundo.
Por algum tempo os maiores traficantes do mundo foram os brancos da Inglaterra e da França, o que levou à Guerra do Ópio.
Na verdade, não foi uma guerra, mas duas – ambas travadas no século 19 na China. Nesses conflitos, Grã-Bretanha e França se aliaram para obrigar a China a permitir em seu território a venda de ópio, uma droga anestésica extraída da papoula. Para britânicos e franceses, exportar ópio para a China era uma forma de compensar o prejuízo nas relações comerciais com os chineses, que vendiam aos ocidentais mercadorias muito mais valorizadas, como chá, porcelanas e sedas. Mas o governo de Pequim não via o troca-troca com bons olhos: a partir do século 18, o consumo da droga explodiu no país, causando graves problemas sociais – nem um decreto imperial de 1796 conseguiu deter a expansão do problema.

A coisa pegou fogo de vez em 1839, quando o governo chinês destruiu uma quantidade de ópio que estava na mão de mercadores britânicos equivalente ao consumo de um ano. O governo da Grã-Bretanha reagiu enviando ao Oriente navios de guerra e soldados, dando origem à primeira Guerra do Ópio. Mais bem equipada, a tropa britânica venceu os chineses em 1842, obrigando-os a assinar um tratado de abertura dos portos e de indenização

pelo ópio destruído – mas o comércio da droga continuava proibido.
O negócio complicou de novo em 1856, quando autoridades chinesas revistaram um barco britânico à procura de ópio contrabandeado. Era a desculpa que a Grã-Bretanha precisava para declarar a Segunda Guerra do Ópio, vencida novamente pelos ocidentais em 1857. Como preço pela derrota, a China teve de engolir a legalização da importação de ópio para o país por muito tempo: o uso e o comércio da droga em território chinês só foram banidos de vez após a tomada do poder pelos comunistas, em 1949.
Então, para você que tem nojo do tráfico de drogas, mas que personifica o traficante no jovem negro segurando um metralhadora portátil, saiba que dois Estados europeus lucraram fortunas com o tráfico de drogas na China, levando a duas guerras. E digo ainda mais: o narcotráfico sustenta e é sustentado por interesses que se cruzam entre altos dirigentes dos Estados e grandes narcotraficantes, todos brancos. Todos eles morando em mansões, bairros de alto luxo, considerados “nobres”.  
Os brancos roubam milhões, bilhões. Na casa de Geddel, num "bairro nobre", mais um político branco, tinham milhões recheando malas de corrupção. Quanto se juntam a esses nomes tantos outros brancos que ocupam, ocuparam e ocuparão lugares de destaque no aparelho do Estado, reservados especialmente para eles e elas através do racismo estrutural: desembargadores/as, juízes/as, procuradores/as, empresários, coronéis, capitães, tenentes, deputados/as, prefeitos/as, vereadores/as, pastores/as, bispos/as, etc., percebemos que os maiores bandidos do Brasil e do mundo são brancos.
Um exemplo, entre tantos outros, é o da compra, no Rio de Janeiro, de equipamentos hospitalares. Houve superfaturamento, as empresas que ganharam a licitação pública não tinham condições alguma sequer para participar da licitação. O resultado foram equipamentos que não prestavam, devolução, atraso na inauguração dos hospitais de campanha e, por conta disto, dezenas e centenas de mortes que não serão associadas pela maioria da população a tal crime hediondo praticado por homens brancos.  
Mas a sociedade insiste em matar o negro que rouba um ou outro e que vende
droga para um ou para outro branco.
Os milicianos que dominam as favelas cariocas são brancos. Foram brancos que se beneficiaram da morte de Marielle Franco. São os brancos que destroem a natureza. São os brancos que, através de suas empresas, criam porcarias para nos vender como se fossem necessárias e saudáveis. São eles que têm os dinheiros para pagar milicianos, pistoleiros que matam freiras, lideranças indígenas, Chicos Mendes, Chicos Bentos, Chicas da Silva. São os brancos os donos dos bancos, os que decidem os financiamentos da destruição da Mata Atlântica, da Amazônia. São os brancos que poluem os rios, que bebem todo o líquido precioso do planeta, que mastigam os animais e cospem fora seus ossos. São os brancos que desmatam as cidades para construir edifícios e rodovias.   
E agora mesmo um branco vocifera ditaduras, opressões e anuncia torturas. Foi um branco ex-juiz que elaborou um plano que continha uma lei para livrar policiais de assassinarem as pessoas, sob a denominação de “excludente de ilicitude”. Agora mesmo brancos cruéis, reapresentando suas antigas perversidades, desfilam de verde e amarelo pedindo o sangue dos seus oponentes sob o manto da ditadura. E eles e elas nos provocam. E nos incitam e nos convidam para a guerra. Ninguém sabe o que ocorrerá doravante, porque não dá para saber como a organização vai parir este conflito. A entropia é crescente e a energia não vai se dissipar através do controle que os brancos dominantes desejam. Talvez o pior esteja ainda por vir neste semeio dos brancos em nossa contemporânea paisagem política e econômica.
 Vou me permitir utilizar a música de Caetano Veloso (Podres Poderes) para fazer uma pequena, mas significativa mudança: “Enquanto os brancos exercem seus podres poderes...”
Joselito da Nair, do Zé, da Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

terça-feira, 19 de maio de 2020

"HÁ TEMPOS"


Quem me dera ao menos uma vez
Explicar o que ninguém consegue entender
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente
(Índios, Legião Urbana, 1986)

O tempo histórico, neste Brasil contemporâneo, sofreu um abalo tão forte vindo de um “asteroide” do campo político-ideológico, tomando forma de 2013 para cá, que terminou sendo atravessado por passados distantes, de tempos diferentes, disputando hegemonias para efetivar virtualidades históricas que não foram realizadas em nosso passado, prenunciando um futuro sombrio para o que denominamos de "civilização". Daí que “o que aconteceu ainda está por vir e o futuro não é mais como era antigamente". Há forças tentando intervir na rede histórica da humanidade, provocando oscilações nesta rede e, como numa ficção, deslocando o futuro, em seu passado não realizado, que “[...] não é mais como era antigamente”. 
E o que aconteceu que ainda pode estar por vir? Um fascismo que não chegou a adquirir contornos mais precisos e duradouros na primeira metade do século XX ainda pode se tornar nosso futuro, pois o percebemos readquirir contornos institucionais em nosso horizonte político e ideológico, de forte traço autoritário e ditatorial. Enquanto professores/as, intelectuais, artistas, pesquisadores/as e jornalistas entre outros e outras são perseguidos/as, ofendidos/as, agredidos/as, tendo os salários reduzidos e bolsas de pesquisa cortadas, pela ação do próprio Governo Bolsonaro, militares, paramilitares e milicianos são protegidos e enaltecidos, justificados por um discurso beligerante que enfatiza o ódio e a perseguição àqueles e àquelas que produzem ciência, conhecimento, arte, educação, saúde e informação.
Rejeição à vacinação, com o retorno virulento do sarampo; negação da escravidão no Brasil, inclusive afirmando que ela foi boa para os negros; desejo de submissão da mulher e enaltecimento de uma masculinidade tóxica; discurso armamentista da população; defesa do terraplanismo, entre outros absurdos demonstra o quanto pequena parte da humanidade deseja um futuro de muito, muito antigamente. “Quem me dera, ao menos uma vez, explicar o que ninguém consegue entender.”
E neste momento em que as fake news espalham a mentira por toda a cidade, todo o país, a verdade nunca me pareceu tão imprescindível. Precisamos recuperar a verdade! Precisamos. Para sair dessa política infantil, birrenta e odiosa. Precisamos tanto da verdade para superar esse tempo no qual
“[...] nem os santos têm ao certo
a medida da maldade
E há tempos são os jovens que adoecem
e há tempos o encanto está ausente
e há ferrugem nos sorrisos.
Só o acaso estende os braços
a quem procura abrigo e proteção.”
Quando se faz apologia ao nazismo; quando se compara um homem negro a um animal que pesaria em arrobas; no momento em que um torturador é homenageado em plena Casa da Democracia; no momento em que cristãos simbolizam armas com as mãos, em que se debocha da dor de milhares de pessoas mortas pela COVID 19, carregando um caixão e dançando, "nem os santos têm ao certo a medida da maldade". O encanto vai se perdendo, as utopias vão sendo esmagadas por um tempo presente que não oferece futuro algum, pois somente "o acaso estende os braços a quem procura abrigo e proteção". Esse movimento fascista que aflige o nosso país embrulha o tempo como um papel e o atira no lixo, causando enormes perturbações na história e inúmeros prejuízos ao desenvolvimento humano. Assim caminha a nossa desumanidade brasileira.
Silenciar a música, fechar os teatros, impedir a expressão, acabar com a pesquisa e a educação, asfixiando escolas e universidades públicas, atacar a democracia, ameaçar os indignados e as indignadas com armas, milícias, guerra civil, forças armadas, é um ato histórico que deseja nos levar de volta no tempo, nos reduzindo a analfabetos, escravos, servos de uma classe social branca, que nunca saiu da Casa Grande e quer sua senzala de volta. Quer o capitão-do-mato, legitimado numa farda militar, caçando e açoitando aqueles e aquelas que fugiram para as universidades, para os teatros, para os palcos de dança, para as gerências das empresas, para os cargos de comando, para os lugares de rebeldia no quais se tornaram referências. Nas passeatas pró Bolsonaro eu vejo o tronco erguido nas falas, nas vestes, nos automóveis, nas faixas, nas posturas. Já vejo jornalistas apanhando, profissionais da saúde – enfermeiras, médicas e médicos, auxiliares de enfermagem etc. – sendo ameaçados/as, agredido/as. Eu vejo os brancos comerciantes em seus carros de luxo, exigindo a volta ao trabalho dos seus/suas escravos/as atuais, sob pena de se arriscarem a morrer e a matar, transmitindo o vírus letal para seus familiares. E no entanto, somos “herdeiros da virtude que perdemos”.
Mas não perdemos a toa. Perdemos de forma dolorosa e agora entendemos a importância dela. Agora que tudo “é só tristeza”. Mais que nunca
Disciplina é liberdade
compaixão é fortaleza
ter bondade é ter coragem.
Agora podemos gritar para retomar o “tempo perdido” durante todo esse tempo perverso, feito com o sangue dos nossos ancestrais. “Temos o nosso próprio tempo” e com ele faremos esse tempo que nos faz tanta falta para viver com dignidade. O tempo da democracia, da alegria, da ciência, da paciência, da consciência. O tempo da decência, da verdade, do amor e da solidariedade. O tempo da arte, da poesia, da fartura, da natureza conosco numa profunda comunhão. Há tempos! Haverá sempre tempo para o amor, a justiça, a verdade e paz.
Agora, mais do que nunca, que
Dissestes que se tua voz
tivesse força igual
à imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
não só a tua casa
mas a vizinhança inteira

podemos gritar com ênfase: FORA BOLSONARO!!!!

Joselito da Nair, do Zé, da Ana Lúcia, do Legião Urbana, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

O SAL DA TERRA ENTRE A PRIVATIZAÇÃO DO PÚBLICO E A PUBLICIZAÇÃO DO PRIVADO


Anda, quero te dizer nenhum segredo
falo desse chão da nossa casa
vê que está na hora de arrumar
(Beto Guedes)

Há uma neoescravidão legalizada por uma reforma trabalhista seguida da reforma previdenciária, sustentadas por um discurso economicista neoliberal de redução do Estado nos setores fundamentais da sociedade, abrindo caminho para a iniciativa privada. Da educação à saúde e segurança, tudo vai sendo privatizado, num país no qual parte significativa da população encontra dificuldades para pagar pelo transporte público. Norberto Bobbio nos ensina que existem dois processos paralelos que são incompatíveis: a privatização do público e a publicização do privado.
Quem defende a legitimação da privatização do público se apoia na ideia de que, segundo Bobbio (2019):
Um dos eventos que melhor do que qualquer outro revela a persistência do primado do direito privado sobre o direito público é a resistência que o direito de propriedade opõe à ingerência do poder soberano, e portanto ao direito por parte do soberano de expropriar (por motivos de utilidade pública) os bens do súdito. (BOBBIO, 2019, p.28)
Mesmo o soberano, que representa o poder público – que pode ser atualizado para prefeito, governador e presidente, ou mesmo algum agente do poder judiciário – não poderia, nesta perspectiva, retirar umas famílias de uma moradia para que por ali passe uma obra de interesse público.  
A justificativa se amplia com a contribuição de outros intelectuais que criaram as condições teóricas para a legitimação do Estado liberal.
Através de Locke a inviolabilidade da propriedade, que compreende todos os outros direitos individuais naturais, como a liberdade e a vida, e indica a existência de uma esfera do indivíduo singular autônoma com respeito à esfera sobre a qual se estende o poder público, torna-se um dos eixos da concepção liberal do Estado, que nesse contexto pode então ser redefinida como a mais consciente, coerente e historicamente relevante teoria do primado do privado sobre o público.
Nesta concepção de Estado abre-se o caminho para a expansão da iniciativa privada como a melhor e mais coerente forma de estabelecer a justiça sobre a sociedade, reduzindo o Estado “senão a ponto de chegar à extinção [...], ao menos até a sua redução aos mínimos termos.” (Bobbio, 2019, p.29). Portanto, o discurso neoliberal encontra sua justificativa e legitimação de mudanças políticas profundas tais como a reforma da previdência e a reforma trabalhista, acima citadas.
Quem, por sua vez, defende o primado do público sobre o privado coloca o interesse coletivo como primordial diante do interesse privado. A elaboração de uma obra pública como uma ponte, um metrô, um hospital, uma via que vai aproximar dois pontos distantes entre si, como Paripe e Piatã, tem mais relevância que o direito individual de alguns moradores de um determinado lugar. Essa ideia se baseia num princípio amplo: “o todo vem antes das partes”.
Segundo ela [a ideia], a totalidade tem fins não reduzíveis à soma dos fins dos membros singulares que a compõem e o bem da totalidade, uma vez alcançado, transforma-se no bem das suas partes, ou, com outras palavras, o máximo bem dos sujeitos é o efeito não da busca, mediante o esforço pessoal e o antagonismo, do próprio bem por parte de cada um, mas sim da contribuição que cada um juntamente com os demais dá solidariamente ao bem comum segundo as regras que a comunidade toda, ou o grupo dirigente que a representa (por simulação ou na realidade), se impôs através de seus órgãos, sejam eles órgãos autocráticos, ou órgãos democráticos. (BOBBIO, 2019, p. 30)
A letra poética da música de Beto Guedes [https://www.letras.mus.br/beto-guedes/44544/] reflete essa ideia política no plano artístico:
Vamos precisar de todo mundo
Um mais um é sempre mais que dois
Pra melhor juntar as nossas forças
É só repartir melhor o pão
Recriar o paraíso agora
Para merecer quem vem depois
Na disputa entre o interesse individual de natureza privada e o interesse coletivo de natureza pública surgem os processos de privatização do público e publicização do privado. Bobbio (2019) nos explica que a distinção entre público e privado se duplica na distinção política e economia. A maior determinação da política sobre a economia corresponde à primazia do público sobre o privado. “Prova disso é que o processo de intervenção dos poderes públicos na regulação da economia – processo até agora surgido como irreversível – é também designado como processo de ‘publicização do privado’” (BOBBIO, 2019, p.31).  
Quando há maior liberdade da economia, nas quais as relações contratuais prevalecem definindo relações politicamente relevantes, ocorre a privatização do público. Neste caso, o Estado age, menos como um detentor do poder e mais como um mediador dessas relações.
Neste momento de nossa explicação surge uma pergunta crucial: como tomar partido de um dos processos de modo coerente e consciente? Como associar a lógica do mercado com a utopia da justiça social e da solidariedade humana? Talvez esse tempo de COVID 19 nos ajude a responder provisoriamente.   
Neste momento, qual o processo que pode salvar mais vidas? A privatização do público, motivando as energias individuais à produção de respiradores mais baratos para atender à necessidade crescente desse aparelho causada pelo vírus mortal? Ou o que estamos vendo é publicização do privado através de iniciativas de instituições públicas, como universidades federais e estaduais e outras instituições estatais na criação desses aparelhos, na contribuição que cada um indivíduo daquela instituição dá ao bem comum? O Sistema Único de Saúde (SUS), que vinha sendo alvo de interesse de planos privados de saúde, visando sua extinção, como um sistema público, tornou-se uma segurança para a coletividade ou os planos de saúde privados responderiam satisfatoriamente a tal desafio? A “recriação do paraíso agora, para merecer o que vem depois”, pode ser vislumbrada mais por um processo que visa o lucro ou por um processo que tem a solidariedade como fim primordial?  
Se conseguirmos responder de modo coerente e consciente estas perguntas talvez possamos cantar juntos, quando a COVID 19 nos deixar sair às ruas tranquilamente.
Vamos precisar de todo mundo
pra banir do mundo a opressão
Para construir a vida nova
vamos precisar de muito amor
A felicidade mora ao lado
e quem não é tolo pode ver

Joselito da Nair, do Zé, da Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
Com o apoio de:

GUEDES, Beto. O sal da terra. Disponível em https://www.letras.mus.br/beto-guedes/44544/ Acesso em 14 mai 2020.

BOBBIO, Norberto. Estado, governo sociedade. Fragmentos de um dicionário político. Tradução de Marco Aurélio Nogueira; posfácio Celso Lafer. 22. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

E DAÍ: É A MINHA OPINIÃO!?


Está na moda. Todo mundo tem opinião e muita gente acha que sua opinião é a mais verdadeira, mesmo quando contraria a lógica e o bom senso. Muita gente ignorante “está se achando” neste contexto de pandemia. E falam besteiras, e postam fake news, e seguem líderes inescrupulosos, tudo pelo seu “direito” de expressão, garantido pela Constituição Federal de 1988 que eles e elas querem rasgar. É o pandemônio da pandemia!
Para começar a responder a isso, temos de seguir as orientações deixadas há mais de 2020 anos atrás, por Platão. Ele diferencia a doxa, da episteme e da sofia. A primeira seria a opinião mais próxima ao senso comum, ao saber imediato da prática, da experiência. A segunda corresponderia a um tipo de saber atualmente relativo ao conhecimento científico, tendo uma sistematização teórica e um rigor metodológico. E a terceira, é o saber adquirido ao longo de toda uma vida, um saber da sabedoria, geralmente atribuída aos mais velhos. Todas as três formas de saberes são válidas. Há uma doxa que coincide com as verdades científicas, bem como com a sabedoria. Mas a opinião expressa sem o cuidado da sabedoria e sem a devida orientação da ciência termina causando inúmeros problemas para sociedade. E é isto que ocorre neste momento no Brasil.
Os/As ignorantes têm ódio mortal pelas pessoas que leem, que conseguem alguma ascensão intelectual e cultural. Cultivam a doxa na superficialidade de seus pensamentos rasteiros. Elas então se comprazem com a destruição que as universidades públicas estão sofrendo neste governo ignorante. Inventam um tal de comunismo, como se estivéssemos nas décadas de 50, 60 e 70 do século passado. Elas associam o rock, surgido a partir do canto da alma dos negros norte-americanos, com satanismo. Associam histórias infantis com incitação a abusos sexuais; tentam intimidar ensaiando uma peça esdrúxula de inspiração nazista. E quando esses/essas ignorantes se associam a pastores milionários, espertalhões da fé, e milicianos bem armados, aí o anúncio de um califado evangélico neopentecostal ditatorial começa a se desenhar em nosso horizonte político. Na Idade Média isso levou centenas de mulheres acusadas injustamente de "bruxaria") e “hereges” à “fogueira”. Agora, será ao paredão do fuzilamento, pela traição a deus, à pátria e à família. Professores e professoras certamente não escapariam. A não ser que assumissem o proselitismo e se tornassem “catequistas” e “obreiros”.
Quando o fanatismo religioso e político são os principais assessores da doxa, a sofia, pobre coitada, começa a ser ofendida nas praças onde protesta, agredida nos espaços aonde registra os fatos e produz as notícias. A episteme, por sua vez, é asfixiada pelo governo facista, que admira torturadores e que persegue professores, médicos, enfermeiros e jornalistas entre outros e outras. O pseudo-problema impera, orientando a compreensão sofrível de 30% da população como uma boiada em sua vida de gado, marcada com o símbolo da arminha de mão, tendo consequências nefastas em suas próprias vidas.
O fanatismo religioso confunde fé com magia, como se Deus fosse proteger alguém que não se protege, se jogando de cabeça do alto de sua falta de juízo e de humildade. Um sujeito de 57 anos morreu porque acreditou no pastor de sua religião, que lhe falou que Jesus iria curá-lo. Não procurou o hospital e terminou falecendo, conforme reportagem da Revista Veja: https://veja.abril.com.br/blog/veja-gente/homem-morre-coronavirus-postar-disse-deus-cura/. É sempre bom lembrar que, Jesus, quando tentado no deserto por Bolsonaro, digo, pelo satanás, não se atirou do alto, pois “também está escrito: Não tentarás o Senhor, teu Deus.” Se Jesus se jogasse do alto, seria mais pela sua vaidade do que pela sua fé. Ele trairia a própria divindade que há em Si, porque tentaria Deus num pseudoproblema, surgido de sua vaidade, por ser Filho. Por falar em filho, os zeros à esquerda são um exemplo perfeito de como a vaidade, a arrogância e a ignorância associadas geram pseudosproblemas que acabam com o país.
É bom saber que:
·         A sua opinião, sem o bom senso da sabedoria e o amparo da ciência é irrelevante. Então fique calado;
·         você não tem nada de especial. Deus não cuida primeiro de você, nem te acha o homem, ou a mulher, mais fiel e mais legal do Brasil, com um lugarzinho especial, de frente para mansão Dele no Céu;
·         fé não é artigo de exibição masculina. A COVID 19 não veio para que você prove sua fé, revelando sua virilidade fajuta de varão ungido pelo pastor, ao qual você paga para propagar barbaridades da fé;
·         não pense que teremos no Brasil um califado evangélico, que terá milicianos matando todos/as aqueles/as que não rezarem por suas cartilhas esdrúxulas;
·         Ah. Deus é um Deus de amor, de justiça, de partilha, de solidariedade, de perdão, de acolhimento de verdade e de vida. Se você quer guerra, siga o conselho do grande Riachão e “já morar com o diabo que é imortal!”

Ao expressar sua doxa o faça movido pela sabedoria, com o apoio da ciência, para não transformar a pandemia em pandemônio e, nesse redemoinho, ir com o demônio para o Hades, “onde os fracos não têm vez.”

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.

PROBLEMA E NECESSIDADE NA PANDEMIA [versão extendida]

Tudo está acontecendo no Brasil: a pandemia causada pelo corona vírus, as crises provocadas pelo Presidente da República, o reflexo negativo na economia, que mergulha em recessão e todos os desdobramentos desses acontecimentos. Isso gera um nevoeiro que não nos permite entender bem a realidade e nos impede de agir. Qual o problema principal do país neste momento? Uns dizem ser a pandemia; outras dizem ser a política. Outras dizem ser a economia e uns afirmam ser o avanço de um suposto comunismo no mundo. Existem outras opiniões que sustentam que o problema maior é a educação, outras, a segurança, e, ainda existem aquelas pessoas que dizem ser a falta de fé do povo brasileiro. Mas, qual o maior problema de ser do povo brasileiro neste momento?
Para começar a responder a isso, temos de seguir as orientações deixadas há mais de 2020 anos atrás, por Platão. Ele diferencia a doxa, da episteme e da sofia. A primeira seria a opinião mais próxima ao senso comum, ao saber imediato da prática, da experiência. A segunda corresponderia a um tipo de saber atualmente relativo ao conhecimento científico, tendo uma sistematização teórica e um rigor metodológico. E a terceira é o saber adquirido ao longo de toda uma vida, um saber da sabedoria, geralmente atribuída aos mais velhos. Todas as três formas de saberes são válidas. Há uma doxa que coincide com as verdades científicas, bem como com a sabedoria. Mas a opinião expressa sem o cuidado da sabedoria e sem a devida orientação da ciência termina causando inúmeros problemas para sociedade. E é isto que ocorre neste momento no Brasil. Por isso que não é desnecessário investigar o conceito de problema, para que nossa opinião, caso seja necessária, tenha uma orientação adequada em sua comunicação em redes sociais e em outros espaços de diálogo.
Para Saviani (2000, p.25-26), um problema é
[...] uma questão cuja resposta se desconhece e se necessita conhecer, eis aí um problema. Algo que eu não sei não é um problema; mas quando eu ignoro alguma coisa que eu preciso saber, eis-me, então, diante de um problema.
O conceito incorpora a necessidade de conhecimento em seu âmago. Saber é essencial ao problema. A ignorância não é problemática. Ela não sabe, não sente falta de saber e não sabe a falta que o saber faz. Por isso apela para a agressão, para a violência, e se torna massa de manobra de líderes que incorporam e corroboram ideias de apartheid, de prisão, de tortura, de flagelo dos seus semelhantes. Sem educação e sem cultura padecemos dos nossos instintos mais perversos, que, associados a um sistema político, produzem holocaustos, guerras e infernos, onde poderia haver diálogo, arte, educação, cultura, ciência, desenvolvimento humano.
Não nos damos conta de muitos problemas que afetam diretamente a nossa ação no mundo. Por isso, é preciso, segundo o mesmo autor, “recuperar a problematicidade do problema”, transitar do mundo da pseudo-concreticidade, “quando o homem considera as manifestações de sua própria existência como algo desligado dela, ou seja, como algo independente do processo que as produziu” (SAVIANI, 2000, p.25), para o mundo da concreticidade, em que a necessidade é a essência do problema.
A necessidade apresenta um aspecto subjetivo, tal como é sentido pelos indivíduos e outro objetivo, a situação conscientizadora da necessidade. Para que a necessidade não se perca em subjetivismos, que reclamam cada qual o seu sentido verdadeiro, é preciso delinear o aspecto objetivo que constitui a necessidade e a sua interpretação em contextos coletivos de relações interativas.
Cair na armadilha do pseudo-problema traz inúmeros prejuízos para as relações que estabelecemos com os outros, pois estaremos num campo de ilusões e artificialidades que só vão aumentar ainda mais o tamanho do problema que nos afeta. Por exemplo: para uma senhora cujo barraco onde morava desabou sob a chuva intensa que caia, a resposta dela à jornalista que a entrevistava foi: “- Deus quis assim, fazer o quê, né?” Para ela o problema estava em si mesma, objeto do castigo divino ou, por outro viés, dos misteriosos caminhos de Deus que, por aquele acontecimento, a levará a outra situação melhor, seja através de um aluguel momentâneo pago pela prefeitura, seja por outro jeito qualquer.
Na verdade, se problema é aquela necessidade que cada indivíduo sente, não teria sentido falar-se em “pseudo-problema”. O problema existiria toda vez que cada indivíduo o sentisse como tal, não importando as circunstâncias de manifestação do fenômeno. Sabemos, porém, que uma reflexão sobre as condições objetivas em que os homens produzem a própria existência nos permite detectar a ocorrência daquilo que está sendo denominado “pseudo-problema”. (SAVIANI, 2000, p.6-27)
Deixando Deus em paz por um breve instante, cabe, nesse sentido, perguntar: quais as condições objetivas que constituem o problema da senhora do desabamento acima? Ela é pobre, foi morar num barraco, “pendurado no morro, me pedindo socorro” a fim de evitar viver no perigo das ruas vivendo no perigo do desabamento a qualquer momento. Certamente tem filhos e filhas. Marido desempregado ou no subemprego. Pergunto: ela nasceu pobre ou foi tornada pobre? A pobreza é uma condição natural ou um impedimento de acesso à riqueza que nossa sociedade produz? Esta mulher teve acesso a uma escola pública gratuita e de qualidade, ou ela, como milhões de outras mulheres, sofreram a exclusão violenta em suas várias faces? Machismo, racismo, preconceito de classe, de gênero? A favela, e o barraco que a compõe, é expressão da vergonha do pobre ou da falta de vergonha dos ricos? A ausência de uma política habitacional nacional expressa falta de recursos do Estado ou destinação desses recursos para sustentar privilégios e políticas de exclusão? Mas, se foi “Deus que quis assim”, não há problema, tudo se resolve no âmbito da fé: a desnutrição, o analfabetismo, o desabrigo, a fome etc. Essas manifestações do problema são deixadas nas mãos de Deus, que proverá apenas os que têm “fé”, numa exclusão de ordem superior, ideia alimentada por falsos pastores.
Logo, embora cada pessoa sinta o problema enquanto tal, em sua subjetividade, o problema tem uma objetividade que atinge a todos. Mas o pseudo problema cria um imaginário que só deturpa a identificação do problema, nos afastando da solução mais eficaz. Em relação ao momento da pandemia, embora o coronavírus seja um problema objetivo, ele não é o problema principal. Na verdade, ele nos reapresenta o problema principal: o capitalismo. 1. O surgimento deste e de outros vírus ocorre em função do avanço da destruição da natureza, que vão aproximando cada vez mais a vida selvagem das cidades, gerando a disseminação desses vírus mortais para a humanidade. 2. O capitalismo, como sistema produtivo concentrador de riqueza, é o responsável pelo analfabetismo, pelas favelas, pela desnutrição de muitas crianças, pela fome de milhares de pessoas, pelas exclusões e marginalidades em sua maioria. O garimpo, aliado a grilagem de terras por fazendeiros que usam policiais como milicianos, desmata e queima a floresta Amazônica no exercício desse capitalismo que mata e desmata em nome do lucro selvagem.
Quando identificamos o problema, qual então a nossa necessidade maior? Ser alfabetizados? Não. Paulo Freire nos ensinou que antes da leitura da palavra existe a leitura do mundo. Matar a fome? Imediatamente sim. Com atitudes solidárias Betinho nos ensinou que com o pouco de todos podemos fazer muito pelos outros. Mas isso não atinge o problema; arranjar um lugar para acolher as desabrigadas e os desabrigados? Também. Mas do mesmo modo nem nos aproximamos do problema; A necessidade ampla e eficaz para combater tudo isso é o enfrentamento ao capitalismo e suas formas de exclusão. É a transformação do modo de produção global que pode gerar transformações movidas pelo respeito e preservação da natureza, pelo acolhimento do ser humano numa nova forma de solidariedade social e de justiça econômica, pelo rearranjo de uma nova geopolítica global, na qual todos os povos sejam bem vindos, na utopia que jamais cessa de produzir esperanças para um daqui a pouco em nossa história.


Joselito da Nair, do Zé, da Ana Lúcia, do Rafael, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel. Com o apoio de:

SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 13. ed., Campinas, SP: Autores Associados, 2002.