quarta-feira, 6 de maio de 2020

PROBLEMA E NECESSIDADE NA PANDEMIA [versão extendida]

Tudo está acontecendo no Brasil: a pandemia causada pelo corona vírus, as crises provocadas pelo Presidente da República, o reflexo negativo na economia, que mergulha em recessão e todos os desdobramentos desses acontecimentos. Isso gera um nevoeiro que não nos permite entender bem a realidade e nos impede de agir. Qual o problema principal do país neste momento? Uns dizem ser a pandemia; outras dizem ser a política. Outras dizem ser a economia e uns afirmam ser o avanço de um suposto comunismo no mundo. Existem outras opiniões que sustentam que o problema maior é a educação, outras, a segurança, e, ainda existem aquelas pessoas que dizem ser a falta de fé do povo brasileiro. Mas, qual o maior problema de ser do povo brasileiro neste momento?
Para começar a responder a isso, temos de seguir as orientações deixadas há mais de 2020 anos atrás, por Platão. Ele diferencia a doxa, da episteme e da sofia. A primeira seria a opinião mais próxima ao senso comum, ao saber imediato da prática, da experiência. A segunda corresponderia a um tipo de saber atualmente relativo ao conhecimento científico, tendo uma sistematização teórica e um rigor metodológico. E a terceira é o saber adquirido ao longo de toda uma vida, um saber da sabedoria, geralmente atribuída aos mais velhos. Todas as três formas de saberes são válidas. Há uma doxa que coincide com as verdades científicas, bem como com a sabedoria. Mas a opinião expressa sem o cuidado da sabedoria e sem a devida orientação da ciência termina causando inúmeros problemas para sociedade. E é isto que ocorre neste momento no Brasil. Por isso que não é desnecessário investigar o conceito de problema, para que nossa opinião, caso seja necessária, tenha uma orientação adequada em sua comunicação em redes sociais e em outros espaços de diálogo.
Para Saviani (2000, p.25-26), um problema é
[...] uma questão cuja resposta se desconhece e se necessita conhecer, eis aí um problema. Algo que eu não sei não é um problema; mas quando eu ignoro alguma coisa que eu preciso saber, eis-me, então, diante de um problema.
O conceito incorpora a necessidade de conhecimento em seu âmago. Saber é essencial ao problema. A ignorância não é problemática. Ela não sabe, não sente falta de saber e não sabe a falta que o saber faz. Por isso apela para a agressão, para a violência, e se torna massa de manobra de líderes que incorporam e corroboram ideias de apartheid, de prisão, de tortura, de flagelo dos seus semelhantes. Sem educação e sem cultura padecemos dos nossos instintos mais perversos, que, associados a um sistema político, produzem holocaustos, guerras e infernos, onde poderia haver diálogo, arte, educação, cultura, ciência, desenvolvimento humano.
Não nos damos conta de muitos problemas que afetam diretamente a nossa ação no mundo. Por isso, é preciso, segundo o mesmo autor, “recuperar a problematicidade do problema”, transitar do mundo da pseudo-concreticidade, “quando o homem considera as manifestações de sua própria existência como algo desligado dela, ou seja, como algo independente do processo que as produziu” (SAVIANI, 2000, p.25), para o mundo da concreticidade, em que a necessidade é a essência do problema.
A necessidade apresenta um aspecto subjetivo, tal como é sentido pelos indivíduos e outro objetivo, a situação conscientizadora da necessidade. Para que a necessidade não se perca em subjetivismos, que reclamam cada qual o seu sentido verdadeiro, é preciso delinear o aspecto objetivo que constitui a necessidade e a sua interpretação em contextos coletivos de relações interativas.
Cair na armadilha do pseudo-problema traz inúmeros prejuízos para as relações que estabelecemos com os outros, pois estaremos num campo de ilusões e artificialidades que só vão aumentar ainda mais o tamanho do problema que nos afeta. Por exemplo: para uma senhora cujo barraco onde morava desabou sob a chuva intensa que caia, a resposta dela à jornalista que a entrevistava foi: “- Deus quis assim, fazer o quê, né?” Para ela o problema estava em si mesma, objeto do castigo divino ou, por outro viés, dos misteriosos caminhos de Deus que, por aquele acontecimento, a levará a outra situação melhor, seja através de um aluguel momentâneo pago pela prefeitura, seja por outro jeito qualquer.
Na verdade, se problema é aquela necessidade que cada indivíduo sente, não teria sentido falar-se em “pseudo-problema”. O problema existiria toda vez que cada indivíduo o sentisse como tal, não importando as circunstâncias de manifestação do fenômeno. Sabemos, porém, que uma reflexão sobre as condições objetivas em que os homens produzem a própria existência nos permite detectar a ocorrência daquilo que está sendo denominado “pseudo-problema”. (SAVIANI, 2000, p.6-27)
Deixando Deus em paz por um breve instante, cabe, nesse sentido, perguntar: quais as condições objetivas que constituem o problema da senhora do desabamento acima? Ela é pobre, foi morar num barraco, “pendurado no morro, me pedindo socorro” a fim de evitar viver no perigo das ruas vivendo no perigo do desabamento a qualquer momento. Certamente tem filhos e filhas. Marido desempregado ou no subemprego. Pergunto: ela nasceu pobre ou foi tornada pobre? A pobreza é uma condição natural ou um impedimento de acesso à riqueza que nossa sociedade produz? Esta mulher teve acesso a uma escola pública gratuita e de qualidade, ou ela, como milhões de outras mulheres, sofreram a exclusão violenta em suas várias faces? Machismo, racismo, preconceito de classe, de gênero? A favela, e o barraco que a compõe, é expressão da vergonha do pobre ou da falta de vergonha dos ricos? A ausência de uma política habitacional nacional expressa falta de recursos do Estado ou destinação desses recursos para sustentar privilégios e políticas de exclusão? Mas, se foi “Deus que quis assim”, não há problema, tudo se resolve no âmbito da fé: a desnutrição, o analfabetismo, o desabrigo, a fome etc. Essas manifestações do problema são deixadas nas mãos de Deus, que proverá apenas os que têm “fé”, numa exclusão de ordem superior, ideia alimentada por falsos pastores.
Logo, embora cada pessoa sinta o problema enquanto tal, em sua subjetividade, o problema tem uma objetividade que atinge a todos. Mas o pseudo problema cria um imaginário que só deturpa a identificação do problema, nos afastando da solução mais eficaz. Em relação ao momento da pandemia, embora o coronavírus seja um problema objetivo, ele não é o problema principal. Na verdade, ele nos reapresenta o problema principal: o capitalismo. 1. O surgimento deste e de outros vírus ocorre em função do avanço da destruição da natureza, que vão aproximando cada vez mais a vida selvagem das cidades, gerando a disseminação desses vírus mortais para a humanidade. 2. O capitalismo, como sistema produtivo concentrador de riqueza, é o responsável pelo analfabetismo, pelas favelas, pela desnutrição de muitas crianças, pela fome de milhares de pessoas, pelas exclusões e marginalidades em sua maioria. O garimpo, aliado a grilagem de terras por fazendeiros que usam policiais como milicianos, desmata e queima a floresta Amazônica no exercício desse capitalismo que mata e desmata em nome do lucro selvagem.
Quando identificamos o problema, qual então a nossa necessidade maior? Ser alfabetizados? Não. Paulo Freire nos ensinou que antes da leitura da palavra existe a leitura do mundo. Matar a fome? Imediatamente sim. Com atitudes solidárias Betinho nos ensinou que com o pouco de todos podemos fazer muito pelos outros. Mas isso não atinge o problema; arranjar um lugar para acolher as desabrigadas e os desabrigados? Também. Mas do mesmo modo nem nos aproximamos do problema; A necessidade ampla e eficaz para combater tudo isso é o enfrentamento ao capitalismo e suas formas de exclusão. É a transformação do modo de produção global que pode gerar transformações movidas pelo respeito e preservação da natureza, pelo acolhimento do ser humano numa nova forma de solidariedade social e de justiça econômica, pelo rearranjo de uma nova geopolítica global, na qual todos os povos sejam bem vindos, na utopia que jamais cessa de produzir esperanças para um daqui a pouco em nossa história.


Joselito da Nair, do Zé, da Ana Lúcia, do Rafael, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel. Com o apoio de:

SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 13. ed., Campinas, SP: Autores Associados, 2002.

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