Tudo está
acontecendo no Brasil: a pandemia causada pelo corona vírus, as crises
provocadas pelo Presidente da República, o reflexo negativo na economia, que
mergulha em recessão e todos os desdobramentos desses acontecimentos. Isso gera
um nevoeiro que não nos permite entender bem a realidade e nos impede de agir.
Qual o problema principal do país neste momento? Uns dizem ser a pandemia;
outras dizem ser a política. Outras dizem ser a economia e uns afirmam ser o
avanço de um suposto comunismo no mundo. Existem outras opiniões que sustentam
que o problema maior é a educação, outras, a segurança, e, ainda existem
aquelas pessoas que dizem ser a falta de fé do povo brasileiro. Mas, qual o
maior problema de ser do povo brasileiro neste momento?
Para começar a
responder a isso, temos de seguir as orientações deixadas há mais de 2020 anos
atrás, por Platão. Ele diferencia a doxa, da episteme e da sofia.
A primeira seria a opinião mais próxima ao senso comum, ao saber imediato da
prática, da experiência. A segunda corresponderia a um tipo de saber atualmente
relativo ao conhecimento científico, tendo uma sistematização teórica e um
rigor metodológico. E a terceira é o saber adquirido ao longo de toda uma vida,
um saber da sabedoria, geralmente atribuída aos mais velhos. Todas as três
formas de saberes são válidas. Há uma doxa que coincide com as verdades
científicas, bem como com a sabedoria. Mas a opinião expressa sem o cuidado da
sabedoria e sem a devida orientação da ciência termina causando inúmeros
problemas para sociedade. E é isto que ocorre neste momento no Brasil. Por isso
que não é desnecessário investigar o conceito de problema, para que nossa
opinião, caso seja necessária, tenha uma orientação adequada em sua comunicação
em redes sociais e em outros espaços de diálogo.
Para Saviani
(2000, p.25-26), um problema é
[...]
uma questão cuja resposta se desconhece e se necessita conhecer, eis aí um
problema. Algo que eu não sei não é um problema; mas quando eu ignoro alguma
coisa que eu preciso saber, eis-me, então, diante de um problema.
O conceito incorpora a necessidade de
conhecimento em seu âmago. Saber é essencial ao problema. A ignorância não é
problemática. Ela não sabe, não sente falta de saber e não sabe a falta que o
saber faz. Por isso apela para a agressão, para a violência, e se torna massa
de manobra de líderes que incorporam e corroboram ideias de apartheid,
de prisão, de tortura, de flagelo dos seus semelhantes. Sem educação e sem
cultura padecemos dos nossos instintos mais perversos, que, associados a um
sistema político, produzem holocaustos, guerras e infernos, onde poderia haver
diálogo, arte, educação, cultura, ciência, desenvolvimento humano.
Não nos damos
conta de muitos problemas que afetam diretamente a nossa ação no mundo. Por
isso, é preciso, segundo o mesmo autor, “recuperar a problematicidade do
problema”, transitar do mundo da pseudo-concreticidade, “quando o homem
considera as manifestações de sua própria existência como algo desligado dela,
ou seja, como algo independente do processo que as produziu” (SAVIANI, 2000,
p.25), para o mundo da concreticidade, em que a necessidade é a essência
do problema.
A necessidade
apresenta um aspecto subjetivo, tal como é sentido pelos indivíduos e outro
objetivo, a situação conscientizadora da necessidade. Para que a necessidade
não se perca em subjetivismos, que reclamam cada qual o seu sentido verdadeiro,
é preciso delinear o aspecto objetivo que constitui a necessidade e a sua
interpretação em contextos coletivos de relações interativas.
Cair na
armadilha do pseudo-problema traz inúmeros prejuízos para as relações
que estabelecemos com os outros, pois estaremos num campo de ilusões e
artificialidades que só vão aumentar ainda mais o tamanho do problema que nos
afeta. Por exemplo: para uma senhora cujo barraco onde morava desabou sob a
chuva intensa que caia, a resposta dela à jornalista que a entrevistava foi: “-
Deus quis assim, fazer o quê, né?” Para ela o problema estava em si mesma,
objeto do castigo divino ou, por outro viés, dos misteriosos caminhos de Deus
que, por aquele acontecimento, a levará a outra situação melhor, seja através
de um aluguel momentâneo pago pela prefeitura, seja por outro jeito qualquer.
Na verdade, se problema é aquela necessidade
que cada indivíduo sente, não teria sentido falar-se em “pseudo-problema”. O
problema existiria toda vez que cada indivíduo o sentisse como tal, não
importando as circunstâncias de manifestação do fenômeno. Sabemos, porém, que
uma reflexão sobre as condições objetivas em que os homens produzem a própria
existência nos permite detectar a ocorrência daquilo que está sendo denominado
“pseudo-problema”. (SAVIANI, 2000, p.6-27)
Deixando Deus
em paz por um breve instante, cabe, nesse sentido, perguntar: quais as
condições objetivas que constituem o problema da senhora do desabamento acima?
Ela é pobre, foi morar num barraco, “pendurado no morro, me pedindo socorro” a
fim de evitar viver no perigo das ruas vivendo no perigo do desabamento a
qualquer momento. Certamente tem filhos e filhas. Marido desempregado ou no
subemprego. Pergunto: ela nasceu pobre ou foi tornada pobre? A pobreza é uma
condição natural ou um impedimento de acesso à riqueza que nossa sociedade
produz? Esta mulher teve acesso a uma escola pública gratuita e de qualidade,
ou ela, como milhões de outras mulheres, sofreram a exclusão violenta em suas
várias faces? Machismo, racismo, preconceito de classe, de gênero? A favela, e
o barraco que a compõe, é expressão da vergonha do pobre ou da falta de
vergonha dos ricos? A ausência de uma política habitacional nacional expressa
falta de recursos do Estado ou destinação desses recursos para sustentar
privilégios e políticas de exclusão? Mas, se foi “Deus que quis assim”, não há
problema, tudo se resolve no âmbito da fé: a desnutrição, o analfabetismo, o
desabrigo, a fome etc. Essas manifestações do problema são deixadas nas mãos de
Deus, que proverá apenas os que têm “fé”, numa exclusão de ordem superior,
ideia alimentada por falsos pastores.
Logo, embora
cada pessoa sinta o problema enquanto tal, em sua subjetividade, o problema tem
uma objetividade que atinge a todos. Mas o pseudo problema cria um imaginário
que só deturpa a identificação do problema, nos afastando da solução mais
eficaz. Em relação ao momento da pandemia, embora o coronavírus seja um
problema objetivo, ele não é o problema principal. Na verdade, ele nos
reapresenta o problema principal: o capitalismo. 1. O surgimento deste e de
outros vírus ocorre em função do avanço da destruição da natureza, que vão
aproximando cada vez mais a vida selvagem das cidades, gerando a disseminação
desses vírus mortais para a humanidade. 2. O capitalismo, como sistema
produtivo concentrador de riqueza, é o responsável pelo analfabetismo, pelas
favelas, pela desnutrição de muitas crianças, pela fome de milhares de pessoas,
pelas exclusões e marginalidades em sua maioria. O garimpo, aliado a grilagem
de terras por fazendeiros que usam policiais como milicianos, desmata e queima
a floresta Amazônica no exercício desse capitalismo que mata e desmata em nome
do lucro selvagem.
Quando
identificamos o problema, qual então a nossa necessidade maior? Ser
alfabetizados? Não. Paulo Freire nos ensinou que antes da leitura da palavra existe
a leitura do mundo. Matar a fome? Imediatamente sim. Com atitudes solidárias
Betinho nos ensinou que com o pouco de todos podemos fazer muito pelos outros.
Mas isso não atinge o problema; arranjar um lugar para acolher as desabrigadas
e os desabrigados? Também. Mas do mesmo modo nem nos aproximamos do problema; A
necessidade ampla e eficaz para combater tudo isso é o enfrentamento ao
capitalismo e suas formas de exclusão. É a transformação do modo de produção
global que pode gerar transformações movidas pelo respeito e preservação da
natureza, pelo acolhimento do ser humano numa nova forma de solidariedade
social e de justiça econômica, pelo rearranjo de uma nova geopolítica global,
na qual todos os povos sejam bem vindos, na utopia que jamais cessa de produzir
esperanças para um daqui a pouco em nossa história.
Joselito da Nair, do Zé, da Ana
Lúcia, do Rafael, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel. Com o apoio de:
SAVIANI,
Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 13. ed.,
Campinas, SP: Autores Associados, 2002.
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