quarta-feira, 13 de maio de 2020

O SAL DA TERRA ENTRE A PRIVATIZAÇÃO DO PÚBLICO E A PUBLICIZAÇÃO DO PRIVADO


Anda, quero te dizer nenhum segredo
falo desse chão da nossa casa
vê que está na hora de arrumar
(Beto Guedes)

Há uma neoescravidão legalizada por uma reforma trabalhista seguida da reforma previdenciária, sustentadas por um discurso economicista neoliberal de redução do Estado nos setores fundamentais da sociedade, abrindo caminho para a iniciativa privada. Da educação à saúde e segurança, tudo vai sendo privatizado, num país no qual parte significativa da população encontra dificuldades para pagar pelo transporte público. Norberto Bobbio nos ensina que existem dois processos paralelos que são incompatíveis: a privatização do público e a publicização do privado.
Quem defende a legitimação da privatização do público se apoia na ideia de que, segundo Bobbio (2019):
Um dos eventos que melhor do que qualquer outro revela a persistência do primado do direito privado sobre o direito público é a resistência que o direito de propriedade opõe à ingerência do poder soberano, e portanto ao direito por parte do soberano de expropriar (por motivos de utilidade pública) os bens do súdito. (BOBBIO, 2019, p.28)
Mesmo o soberano, que representa o poder público – que pode ser atualizado para prefeito, governador e presidente, ou mesmo algum agente do poder judiciário – não poderia, nesta perspectiva, retirar umas famílias de uma moradia para que por ali passe uma obra de interesse público.  
A justificativa se amplia com a contribuição de outros intelectuais que criaram as condições teóricas para a legitimação do Estado liberal.
Através de Locke a inviolabilidade da propriedade, que compreende todos os outros direitos individuais naturais, como a liberdade e a vida, e indica a existência de uma esfera do indivíduo singular autônoma com respeito à esfera sobre a qual se estende o poder público, torna-se um dos eixos da concepção liberal do Estado, que nesse contexto pode então ser redefinida como a mais consciente, coerente e historicamente relevante teoria do primado do privado sobre o público.
Nesta concepção de Estado abre-se o caminho para a expansão da iniciativa privada como a melhor e mais coerente forma de estabelecer a justiça sobre a sociedade, reduzindo o Estado “senão a ponto de chegar à extinção [...], ao menos até a sua redução aos mínimos termos.” (Bobbio, 2019, p.29). Portanto, o discurso neoliberal encontra sua justificativa e legitimação de mudanças políticas profundas tais como a reforma da previdência e a reforma trabalhista, acima citadas.
Quem, por sua vez, defende o primado do público sobre o privado coloca o interesse coletivo como primordial diante do interesse privado. A elaboração de uma obra pública como uma ponte, um metrô, um hospital, uma via que vai aproximar dois pontos distantes entre si, como Paripe e Piatã, tem mais relevância que o direito individual de alguns moradores de um determinado lugar. Essa ideia se baseia num princípio amplo: “o todo vem antes das partes”.
Segundo ela [a ideia], a totalidade tem fins não reduzíveis à soma dos fins dos membros singulares que a compõem e o bem da totalidade, uma vez alcançado, transforma-se no bem das suas partes, ou, com outras palavras, o máximo bem dos sujeitos é o efeito não da busca, mediante o esforço pessoal e o antagonismo, do próprio bem por parte de cada um, mas sim da contribuição que cada um juntamente com os demais dá solidariamente ao bem comum segundo as regras que a comunidade toda, ou o grupo dirigente que a representa (por simulação ou na realidade), se impôs através de seus órgãos, sejam eles órgãos autocráticos, ou órgãos democráticos. (BOBBIO, 2019, p. 30)
A letra poética da música de Beto Guedes [https://www.letras.mus.br/beto-guedes/44544/] reflete essa ideia política no plano artístico:
Vamos precisar de todo mundo
Um mais um é sempre mais que dois
Pra melhor juntar as nossas forças
É só repartir melhor o pão
Recriar o paraíso agora
Para merecer quem vem depois
Na disputa entre o interesse individual de natureza privada e o interesse coletivo de natureza pública surgem os processos de privatização do público e publicização do privado. Bobbio (2019) nos explica que a distinção entre público e privado se duplica na distinção política e economia. A maior determinação da política sobre a economia corresponde à primazia do público sobre o privado. “Prova disso é que o processo de intervenção dos poderes públicos na regulação da economia – processo até agora surgido como irreversível – é também designado como processo de ‘publicização do privado’” (BOBBIO, 2019, p.31).  
Quando há maior liberdade da economia, nas quais as relações contratuais prevalecem definindo relações politicamente relevantes, ocorre a privatização do público. Neste caso, o Estado age, menos como um detentor do poder e mais como um mediador dessas relações.
Neste momento de nossa explicação surge uma pergunta crucial: como tomar partido de um dos processos de modo coerente e consciente? Como associar a lógica do mercado com a utopia da justiça social e da solidariedade humana? Talvez esse tempo de COVID 19 nos ajude a responder provisoriamente.   
Neste momento, qual o processo que pode salvar mais vidas? A privatização do público, motivando as energias individuais à produção de respiradores mais baratos para atender à necessidade crescente desse aparelho causada pelo vírus mortal? Ou o que estamos vendo é publicização do privado através de iniciativas de instituições públicas, como universidades federais e estaduais e outras instituições estatais na criação desses aparelhos, na contribuição que cada um indivíduo daquela instituição dá ao bem comum? O Sistema Único de Saúde (SUS), que vinha sendo alvo de interesse de planos privados de saúde, visando sua extinção, como um sistema público, tornou-se uma segurança para a coletividade ou os planos de saúde privados responderiam satisfatoriamente a tal desafio? A “recriação do paraíso agora, para merecer o que vem depois”, pode ser vislumbrada mais por um processo que visa o lucro ou por um processo que tem a solidariedade como fim primordial?  
Se conseguirmos responder de modo coerente e consciente estas perguntas talvez possamos cantar juntos, quando a COVID 19 nos deixar sair às ruas tranquilamente.
Vamos precisar de todo mundo
pra banir do mundo a opressão
Para construir a vida nova
vamos precisar de muito amor
A felicidade mora ao lado
e quem não é tolo pode ver

Joselito da Nair, do Zé, da Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
Com o apoio de:

GUEDES, Beto. O sal da terra. Disponível em https://www.letras.mus.br/beto-guedes/44544/ Acesso em 14 mai 2020.

BOBBIO, Norberto. Estado, governo sociedade. Fragmentos de um dicionário político. Tradução de Marco Aurélio Nogueira; posfácio Celso Lafer. 22. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019.

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