segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

NÃO VINDE A MIM AS CRIANCINHAS

Nas últimas semanas a questão da pedofilia tem sido bastante debatida em âmbito nacional e internacional. No Brasil, um prefeito da cidade de Coari, Amazonas, Adail Pinheiro, além de alguns assessores próximos, está sendo acusado de abusar sexualmente de crianças na cidade acima mencionada. Segundo reportagens

[...] ele é acusado de chefiar uma rede de exploração sexual de crianças e adolescentes no município localizado a 363 km de Manaus. Adail e outros seis foram denunciados pelo Ministério Público do Estado do Amazonas (MPE-AM) na sexta-feira (7), com pedido de prisão de seis acusados. (http://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2014/02/no-am-prefeito-preso-por-pedofilia-se-entrega-e-segue-para-batalhao-da-pm.html)

Do mesmo modo, Sérgio Belleza, autor de livros, em publicação no dia 05 de fevereiro de 2014, página 2, do jornal Correio, também denuncia o modo como nossa sociedade brasileira lida com essa monstruosidade. Segundo este autor

A sociedade brasileira está atônica, confusa, desacreditada, diante talvez do pior dos males, a exploração infantil, muito em voga, e mais presente ainda em tempo de férias, alegria, festa, de verão e turistas.

Vivemos entre o bem e o mal, o belo e o feio, e assim o homem vai exterminando a dignidade do próprio homem. Filhas de famílias desajustadas, crianças pobres, trocam sexo por dinheiro, por comida [...]

O número de meninas prostituídas é alarmante no Brasil, fala-se em mais de 120 mil meninas prostituídas. O Norte e Nordeste, Salvador e Recife ganham facilmente. O “pornoturismo” ou exploração infantil está presente, aniquilando definitivamente tudo de bom e bonito que uma criança possa vir a ter [...] (BELLEZA, 2014, p.2)

Turistas mal intencionados - muitos desses pensam que a maioria, senão todas, das mulheres brasileiras são prostitutas - padres pedófilos, leigos doentios, pastores e padrastos igualmente pedófilos, entre outros "lobos maus", formam uma rede maldita de predadores de inocentes, tecida,  inclusive, por olhos fechados e ouvidos tapados na sociedade, que pesca crianças a fim de devorá-las, comprometendo todas as suas existências e dando-lhes um testemunho concreto de que “o homem é o lobo do homem”. 

Todos nós temos nossas sombras, e o maior erro da humanidade foi não tê-las admitido. Pensamos, e até hoje, que o ser humano era apenas sapiens, contudo, ignoramos o demens. “Quando o povo não teme o terrível, então vem o grande terror” (Lao Tzu). Na Bíblia, Jesus só expulsa o demônio quando este diz o seu próprio nome. Nós temos dificuldade de pronunciar o nome do (s) demônio (s) que nos aflige (m), ou que também somos, e por isso a grande dificuldade de libertar-se dele (s). Observo algumas pessoas fingindo que “conheceu Jesus”, que “está com Jesus”, que “Jesus é a causa do seu sucesso” e que, a partir da data em que disse seu “sim” ao Senhor, passou da água pro vinho, como um milagre indolor.

Ora, penso que toda verdadeira conquista exige um desafio decente a ser superado. Exige uma longa travessia na qual o maior desafio, como diria Buda, não são os outros, nem as circunstâncias – dificuldades, perigos, obstáculos – mas nós mesmos. A travessia pode até não ser completada, mas o querer deve ser. Ou a gente faz porque adotamos que deve ser feito por valores que carregamos, ou fingimos a vida inteira com palavras que criamos para esconder verdadeiramente quem somos. Infelizmente vivemos numa cultura de fingimento. A travessia não é fácil. Para que a gente renasça de nós mesmos é preciso muita concentração, firmeza de propósitos e enfrentamentos. Eu tenho um poema que fiz e depois entreguei para a amiga Fátima, a partir do título de um livro de Pablo Neruda: “Para nascer, nasci.” Neste poema eu digo que estou renascendo, que as dores do meu parto, só eu que sinto. A travessia é um processo de gestação, de longa caminhada, de enfrentamentos difíceis com o nosso ser-sendo. E parir dói. Principalmente quando o nascituro somos nós mesmos. Principalmente quando o renascimento precisa, concomitantemente, de um ou mais abortos num processo dialético tenso e intenso.

É preciso ter muita coragem para encarar quem somos, despindo-nos das mentiras e ilusões que povoam o nosso ser. Alguns dizem até que as mentiras cumprem uma função de proteger-nos de nós mesmos, a fim de que possamos seguir com certo equilíbrio mental. Mas não acredito nas mentiras e na sua capacidade de nos proteger. Creio mesmo que as mentiras nos atrasam, nos enchem de ilusões, as vezes por toda a vida, nos embala na hipnose na qual somos "outro (a) mais", como se os demônios vivessem apenas nos (as) "outros (as) menos".

Voltando ao caso da pedofilia, o Arcebispo de São Salvador da Bahia e primaz do Brasil, Dom Murilo Krieger, escreveu, no último domingo, 9/2/2014, texto para o jornal A Tarde, intitulado “A ONU, as crianças e a Igreja”, referindo-se às acusações do Comitê sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas. Krieger reconhece os casos cometidos por membros do clero, afirmando que tais atos

[...] são condenáveis e mais ainda quando envolvem menores de idade. Um só caso já seria suficiente para nos deixar tristes e decepcionados, pois é inimaginável o mal que um adulto causa a uma criança indefesa, quando a fere no mais profundo de sua dignidade e sensibilidade. (KRIEGER, 2014, p.A3)

Ainda segundo Krieger, a Igreja, através do Papa Bento XVI

[...] criou uma Comissão especial para acompanhar e dar uma resposta às diversas acusações que chegaram a seu conhecimento. O papa Francisco não só seguiu na mesma linha como, além disso, reforçou o papel dessa comissão. Quem quiser conhecer a atuação da Santa Sé sobre esse tema poderá se debruçar sobre os mais de 50 itens que estão no site do Vaticano (www.vatican.va) na coluna à esquerda: “Abusos de Menores. A resposta da Igreja.” (KRIEGER, 2014, p.A3)

Eu fiquei curioso e fui ler um dos comunicados, feito pelo Arcebispo de Freiburg im Breisgau, Dom Robert Zollistsch. Neste comunicado, ele diz que, acerca da igreja na Alemanha:
  • ·         O papa Bento XVI tomou conhecimento com grande tristeza e emoção dos casos de abuso sexual de crianças;
  • ·         Os bispos alemães estão profundamente transtornados pelos abusos que foram possíveis no ambiente eclesial;
  • ·         Foi feito um reiterado pedido de desculpas às vítimas;
  • ·         Os casos foram verificados há muitos anos;
  • ·         Garantiram às vítimas e seus parentes uma ajuda humana, terapêutica e pastoral;
  • ·         Reforçaram a prevenção, com aumento da vigilância.
Evidentemente não se pode julgar uma instituição pelo que alguns de seus membros fazem. Mas podemos avaliar criticamente as respostas que a instituição dá. No caso do documento acima, eu assisti numa reportagem de tv que o outrora bispo Ratzinger já tinha tomado conhecimento de casos de abuso, mas preferiu ocultar, “com grande tristeza e emoção”, suponho. Os bispos alemães profundamente transtornados, nunca vieram a público para expressar esse “transtorno coletivo" de parte do clero alemão. O pedido de desculpas às vítimas é só um passo das atitudes que a igreja deve tomar. A garantia às vítimas e seus parentes de uma ajuda humana, terapêutica e pastoral – a pastoral eles e elas, creio, devem evitar – soa como uma garantia de que elas fiquem em silêncio, afinal, a igreja afirma, através do documento de Dom Robert Zollistsch, que não denunciarão o clérigo acusado às autoridades judiciárias se a vítima assim o quiser: “Renunciaremos a fazê-lo unicamente em circunstâncias extraordinárias, por exemplo quando isto corresponder ao desejo expresso da vítima.” Que garantias teremos de que as vítimas não serão seduzidas a, “num ato de compaixão e misericórdia” – típico da Igreja Católica – não denunciar o acusado de pedofilia às autoridades judiciárias?

O fato dos casos ter sido verificado há muitos anos também é outro dado importante. O implícito do texto nos diz que podemos respirar aliviados, visto que não há mais casos de abuso sexual de crianças na Igreja. Foi no passado. Acabou. Passou. E isto associado às Normas Substanciais elaboradas pela Congregação para a Doutrina da Fé, que, no artigo 7.º afirma que:

§ 1. Salvaguardando o direito da Congregação para a Doutrina da Fé de derrogar à prescrição para cada um dos casos, a acção criminal relativa aos delitos reservados à Congregação para a Doutrina da Fé extingue-se por prescrição em vinte anos.

Como a maioria dos casos denunciados aconteceu há muitos anos, e, segundo eles, não acontece mais, tais delitos foram prescritos no âmbito eclesial. Pecado sem delito, crime sem castigo.

Em todas as leituras e reportagens que tenho assistido percebo que a Igreja saiu da defensiva e foi para a ofensiva diante das cobranças do Comitê da ONU, inclusive insinuando que o mesmo Comitê é suspeito, na tentativa de desqualificar o documento a partir da suspeição dos seus autores. Trechos abaixo do texto de Krieger (2014) evidenciam isso.

No relatório apresentado na última quarta-feira (05.02.214), o Comitê sobre os Direitos da Criança na ONU esqueceu, contudo, daquela advertência popular: “O sapateiro não deve ir além da sola!” É que, além de não levar em conta a maioria das recomendações de proteção à criança que já são defendidas pela Igreja, e de ignorar a maior parte do que está sendo feito pela Igreja, o Comitê foi além: julgou-se no direito de criticar vários pontos da doutrina católica, questionando sua visão sobre o aborto, a família, a complementaridade do homem e da mulher, o casamento homossexual, a contracepção etc. – enfim, sobre ensinamentos que, para a Igreja, não são negociáveis.

[...] Que direito tem um comitê, mesmo que da ONU, de querer se imiscuir em questões doutrinais ou morais de uma religião? Claro: o comitê em questão é formado por pessoas que têm suas próprias ideias, sua filosofia de vida e, também, suas ideologias. Quem desconhece a pressão que comitês como esse sofrem de ONGs internacionais? (KRIEGER, 2014, p. A3)

Krieger tenta, de fato, desqualificar as denúncias e exigências colocadas pelo Comitê, a partir da crítica ao contexto de descoberta – ou seja, o modo como seus autores e suas autoras elaboraram o documento e suas filiações políticas e ideológicas – deixando de lado o contexto da justificação. Krieger apela para a falácia genética, pois, nesta falácia, uma verdade deixa de ser verdade a partir do autor que a expressa ou elabora. Assim como os nazistas condenaram a teoria da relatividade porque seu autor era judeu, Krieger tenta desqualificar as denúncias e exigências contra a pedofilia no âmbito da Igreja Católica porque seus autores e suas autoras podem ter uma ligação com ONGs internacionais.

Segundo uma das reportagens

Um relatório sem precedentes do Comité para os Direitos da Criança, apresentado em Genebra, concluiu que os abusos foram “sistemáticos” e pede à Igreja Católica que entregue os seus arquivos sobre abusos sexuais para que todos os casos sejam conhecidos, “até os escondidos”.
Mais, é recomendado que a comissão criada no ano passado pelo Papa Francisco para investigar estes crimes avalie também, com precisão, a forma com a hierarquia da Igreja Católica lidou com os casos.
“O Comité está preocupado com o facto de a Santa Sé não reconhecer a extensão dos crimes cometidos, que não tenha dado os passos necessários para proteger as crianças e que tenha adoptado um comportamento e tomado decisões que levaram à continuação dos abusos e à impunidade dos predadores”, diz o documento apresentado em Genebra. (http://www.publico.pt/mundo/noticia/onu-exige-ao-vaticano-prisao-imediata-de-todos-os-padres-pedofilos-1622443)
Para as crianças e demais menores atingidos ficam o tratamento terapêutico e pastoral, a “ajuda humana”, o pedido de desculpas, etc. Mas sobre a identificação e a punição dos culpados, silêncio completo.

A Igreja recusa-se fazer a grande travessia que ela mesma propõe aos pecadores, aos outros. Está mais preocupada com a sua imagem ilusória de “santidade” do que reconhecer e corrigir seu caminho de pecadora. Mas é nesse processo que o seu demens cresce, ganha força, veste-se nas aparências de uma igreja que esconde os seus graves pecados embaixo do tapete, pois eles só apareceram quando não houve mais a possibilidade de ocultá-los. A preocupação do Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU sobre os passos da Santa Sé têm sentido. Numa sociedade humana como a nossa que, por trás dos disfarces hipócritas que usa, crianças pagam com suas existências a impunidade de bestas humanas, estejam elas de bata ou de gravata. É preciso enfrentar a desumanidade que nasce do crime e de sua impunidade, é preciso reconhecer sinceramente os demens que coexistem conosco a fim de prevenirmos diante de seus futuros ataques aos inocentes desprotegidos do mundo, caso contrário, seria melhor admitirmos o nosso instinto de predador diante de presas desprotegidas nas savanas do mundo, pelo menos na selva a presa ainda tem a chance de escapar.  

P.S. Sugiro aos fervorosos católicos que participaram da caminhada em homenagem ao Senhor do Bonfim, desafiando uma tradição do povo africano em Salvador, que montem uma vigília, digo, vigilância, neste carnaval, a fim de identificar suspeitas de prostituição infantil, combatendo o "pornoturismo". Seria um pedido de desculpas mais concreto e aceitável.  

Joselito M. de Jesus,

BELLEZA, Sérgio. Salvador, verão, festa, turista e prostituição infantil. Correio. Salvador, p.2, 5/2/2014.
KRIEGER, D. Murilo S. R. A ONU, as crianças e a Igreja. A Tarde. Salvador, p. A3, 9/2/2014
SALMON, Wesley C. Lógica. 6. ed., Rio de Janeiro, RJ: Editora Guanabara S. A., 1987.
TZU, Lao. Tao-te king: o livro do sentido e da vida. 13. reimpr. São Paulo: Pensamento, 2006.

 http://www.vatican.va/resources/resources_presidente-conf-ep-tedesca_po.html

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

JOÃO E KIM

João e Kim nasceram em 21 de junho de 1970, dia em que o Brasil ganhou a Copa do México. Os pais de Kim eram professores; os de João também. Kim sempre estudou em escola pública; João também. Kim ama futebol; João também. Kim é da classe média em seu país; João também. Os pais de Kim já se aposentaram; os de João também. Kim e João trabalham na mesma empresa, uma multinacional líder mundial em tecnologia. Kim é engenheiro e ganha R$ 7.100,00 por mês. João não chegou a terminar o ensino médio, ganha R$ 1.900,00 por mês. Kim trabalha na sede da multinacional e é chefe do chefe de João, que trabalha aqui no Brasil.

Onde os caminhos de Kim e João se separaram? A cegonha deixou Kim na Coreia do Sul, João no Brasil. Em 1960, a renda per capita na Coreia era metade da brasileira. Em 1970, eram parecidas. Hoje, na Coreia, ela é três vezes maior do que a nossa.

Como as vidas de centenas de milhões de Kims e Joãos tomaram destinos tão diferentes em poucas décadas? Educação, educação e educação.

O país dos Kims investiu no ensino público básico, de qualidade e acessível a todos. O governo coreano gasta quase seis vezes mais do que o brasileiro por aluno no ensino médio. Na Coreia, um professor de ensino médio ganha o dobro da renda média local; no Brasil, menos do que a renda média. Com isso, os Kims estão sempre entre os primeiros lugares nos exames internacionais de estudantes de ensino fundamental e médio – muitas vezes, em primeiro lugar. Os Joãos, melhor nem falar.

Só após garantirem uma boa formação básica e bom ensino técnico, os coreanos investiram em ensino universitário. Ainda assim, a Coreia tem três universidades entre as 70 melhores do mundo. O Brasil não tem nenhuma entre as 150 primeiras. Hoje, a Coreia do Sul, é, em todo o mundo, o país com maior percentual de jovens que chegam à universidade – mais de 70%, contra os 13% no Brasil. De quebra, o país do Kims forma oito vezes mais engenheiros do que nós em relação ao tamanho da população de cada um. Tudo isso com um detalhe: a Coreia gasta menos com cada universitário do que o Brasil, mas forma quatro vezes mais Ph.Ds. per capita do que nós.  

Para cada won gasto com a aposentadoria do pai de Kim, o governo coreano gasta 1,2 won com a escola do seu filho. No Brasil, para cada real gasto pelo governo com a aposentadoria do pai de João, ele gasta apenas R$ 0,10 com a escola do Joãozinho.

No ano que vem, os pais de Kim virão para a Copa do Mundo no Brasil. A mãe de João já tinha falecido, mas seu pai quis muito ir à Copa da Coreia e do Japão em 2002, mas não tinha dinheiro para isso. Há um ano, ele está fazendo uma poupancinha e ainda está esperançoso em ser sorteado para um dos ingressos com desconto para idosos para ver um jogo da Copa de 2014, nem que seja Coreia do Sul x Argélia. Como os ingressos com desconto para idosos são poucos e concorridos, as chances de seu João são baixas. Se conseguir quem sabe ele não se senta ao lado do Sr. e da Sra. Kim. Pena que seu João não teve a chance de estudar inglês. Eles poderiam conversar sobre os filhos.

Ricardo Amorim é economista, apresentador do programa “Manhattan Connection” da Globo News, e presidente da Ricam Consultoria.

Publicado na Revista Isto É, n.º 2301, 25/12/2013, página 114.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

ROLEZINHO NO PENSAMENTO

Estou de férias e ainda doente. Não sei o que está se passando comigo, mas não estou bem. Tenho ainda o compromisso de preparar a disciplina Filosofia da Educação para Luciene querida, que ensinou e ensina a muita gente a dizer que ama o outro, sem medo da pieguice. Aproveitei um tempinho para me divertir, dando um “rolezinho” no pensamento, a fim de compreender melhor esse fenômeno apresentado por jovens e adolescentes contemporâneos das maiores cidades brasileiras.
Bem, para responder a tal desafio utilizo-me dos referenciais teóricos do materialismo histórico dialético, que, apesar de tão combatido, ainda me parece a melhor referência de análise e síntese do fenômeno social do “rolezinho” nos shoppings centers das grandes metrópoles brasileiras. O “rolezinho”, visto pela dialética marxista, é fruto de múltiplas determinações, entre as quais, posso citar as seguintes:
1.    Modo de ocupação do espaço urbano pelo capital imobiliário nas grandes metrópoles, destruindo espaços públicos de lazer e de esporte;
2.    Aumento da violência nos grandes centros urbanos;
3.    Reificação permanente da mercadoria através da propaganda, colocando os produtos e suas marcas como sinais contemporâneos de sucesso, distinção e felicidade;
4.    Ascenção de grupos sociais ao mercado de consumo.
Irei concentrar-me na primeira determinação do “rolezinho”. O modo de ocupação do espaço urbano de Salvador foi destruindo a maioria dos espaços de encontro dos adolescentes, jovens e adultos das periferias da cidade. Quando eu me deslocava de ônibus pela cidade – quem se desloca de ônibus enxerga mais longe, pois está no alto - percebia todos os campinhos que havia nos trajetos por onde passava. Nos dias de sábado e de domingo o baba (partida de futebol amador) rolava e algumas dezenas de pessoas ocupavam esses espaços de esporte e lazer, nesse caso, preponderantemente masculinos. Esses campinhos desapareceram do mapa soteropolitano, sendo ocupados por viadutos, estações de metrô, edifícios e estradas. Para onde foram aquelas dezenas de pessoas que se encontravam no fim de semana para exercer sua atividade física e social? O poder público nem pensou nas consequências do desaparecimento desses espaços de encontro. Mas o poder privado pensou. Cada vez mais surgem campos de futebol “society”, feitos com grama sintética, bem menores que os extintos campinhos de barro, e a um preço por duas horas de utilização. O espaço social, público e gratuito do baba foi transformado em mercadoria, assegurado por um valor de troca que, certamente, impede adolescentes, jovens e adultos pobres de ingressarem em seus privados espaços de distinção.
O arquiteto Paulo Ormindo de Azevedo, no jornal A Tarde de ontem – domingo, 19/1/2014 – reclama desse modo destrutivo de ocupação, vindo ao encontro do meu raciocínio:
Cerca de R$ 420 milhões foram gastos em benefício do carro (recentemente em Salvador, Bahia), que não tem mais futuro, e nenhum centavo em favor de outros modais, do pedestre, do patrimônio histórico, da arborização e do tratamento das feridas que provocou. (AZEVEDO, 2014, p.A2)
Um dos desdobramentos disso é que os futuros craques de futebol só podem surgir se forem tutelados por um time de futebol, com um empresário nos calcanhares, marcando em cima e vislumbrando lucros com aquele moleque-mercadoria que se apresenta nos gramados privados de suas instituições. Outro desdobramento é que as moças e os rapazes, principalmente os mais pobres, não têm mais espaços públicos onde possam se encontrar para exercer sua ludicidade, sua capacidade criativa em comum, sua rebeldia necessária diante de um Brasil governado por facínoras, canalhas, corruptos, homens indigestos, com poucos resquícios de humanidade, de altivez e de liderança. Até a Igreja Católica fechou as portas para a juventude. Ou seja: para uma juventude que ela não pode controlar, nem impor suas condições de ser humano na contemporaneidade, sob pena de correr o risco de defrontar-se com a necessidade de ter de tomar posições políticas claras contra o modo de operar do sistema capitalista.

A rede virtual surge então como um espaço propício de encontro de jovens e adolescentes privados de espaço concreto. Nesse espaço eles criam, recriam, interpretam, redirecionam, criticam, manipulam suas próprias subjetividades, constroem caminhos alternativos de exercício da ludicidade, da solidariedade, do status quo, e projetam símbolos atravessados pelo modo como a nossa sociedade capitalista orienta seus valores através da propaganda, da incitação ao consumo, da projeção de um status quo baseado nos símbolos do consumo, com suas marcas de vida de gado. Nessa arquitetura possível de novos humanos, os jovens e adolescentes, com o exercício de si nos estreitos espaços que Salvador oferece para quem é pobre, para quem é negro, para quem não adentra nos padrões que podem passar despercebidos nos shopping’s, o rolezinho se configura como um movimento criativo e espontâneo de subjetividades tecidas nesse contexto de negação de espaços. É um fenômeno urbano da Geografia.

Quero me afastar aqui de uma ideologização dos jovens e adolescentes contemporâneos, como se eles e elas fossem os (as) revolucionários (as) do presente. Nada disso. São como são, são em função do seu chão, do seu modo, a seu modo, sob o modo e sem modos como nós nos exercemos. Mas apresentam a fatura desse modo que vivemos em comum. Questionam, aos seus modos e falta de modos, a escola, a igreja, a empresa, o emprego, o salário, o governo, o futuro, o trabalho, o caralho! E precisam encontrar-se nos espaços concretos possíveis que lhes restaram, para se verem, para atualizarem suas imagens e voltarem para avaliar o impacto dessas imagens nos espaços virtuais onde realizam suas fantasias, no pouco espaço concreto de “realidade” que sobrou.
Toda instituição luta para marcar o povo e se apropriar de sua força: Partidos, igrejas, bancos, governos, empresas. Todos (as) têm seus “ferros de marcar gado”, todos (as) têm seus currais, seus boiadeiros, seus capatazes e uns remetem aos outros. A apropriação do ser humano na contemporaneidade não é exclusiva, nunca foi. Somos tomados por ideias que, invariavelmente, nos levam ao consumo desenfreado. Nas entrevistas que vi num programa de televisão sobre o fenômeno do “rolezinho”, percebi que o dinheiro que esses jovens e adolescentes têm, utilizam-no para o consumo de marcas, onde realizam, com seus pais, sua entrada triunfal no mundo das aparências, aparentando, de fato, o que são neste momento histórico. Os garotos e as garotas estão em seu momento. Certo. Minha preocupação foi com seus pais, tão adolescentes quanto seus filhos, realizando, nesses últimos, suas adolescências tardias. Um dos pais se sentia orgulhoso de poder dar ao filho o acesso à “roupas de marca” e, certamente, vê-lo na internet com suas centenas de seguidoras e seguidores, exercendo uma liderança virtual com desdobramentos políticos e sociais ainda não bem compreendidos. Uma mãe afirmava que aparência é tudo no mundo contemporâneo. E, para meu desgosto, talvez esteja certa. Não sou contra pais que foram jovens e adolescentes pobres e negados, como eu, terem acesso ao poder de compra e de propiciar aos filhos e às filhas algum conforto e acesso que nunca tiveram. Não gosto da ideia de fazerem isso sem nenhuma reflexão e ponderação.  
Os shoppings reagem com repressão e discriminação contra os “rolezinhos”. Mas onde os jovens irão se encontrar se a propaganda de incentivo ao consumo, a destruição dos espaços públicos de encontro e a transformação de quase tudo em mercadoria indicam os shoppings como espaços privilegiados de encontro? O rolezinho expressa a contradição do capital em Salvador e demais cidades do mesmo porte. O “rolezinho” só pode ser compreendido nessa “totalidade concreta” que o método dialético oferece.

Nada é isolado. Isolar um fato, um fenômeno, e depois conservá-lo pelo entendimento neste isolamento, é privá-lo de sentido, de explicação, de conteúdo. É imobilizá-lo artificialmente, matá-lo. É transformar a natureza – através do entendimento metafísico num acúmulo de objetos exteriores uns aos outros, num caos de fenômenos (LEFÈBRE, 1975, p.238)


A produção do “rolezinho”, portanto, não é uma fabulação de desocupados, de adolescentes vagabundos, com tendências ao crime, mas um fenômeno que o próprio capitalismo e sua ocupação gananciosa do espaço propicia. O rolezinho é um fenômeno social produzido por adolescentes e jovens que procuram espaços possíveis e concretos de socialização no seio das contradições da ocupação urbana no mundo brasileiro contemporâneo, principalmente em cidades como Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, entre outras. O mundo virtual remete ao real e vice-versa, um alimentando-se do outro, um escondendo o outro e escondendo-se do outro, num jogo de aparências, um reconfigurando o outro, num processo intermitente de construção de novidades, sendo uma dessas, o “rolezinho”. Bom. Agora “vou dar um “rolé” por aí.” 

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
Com a ajuda de
AZEVEDO. Paulo Ormindo de. Violações urbanas. Jornal A Tarde, Salvador, domingo, 19/01/2014.
LEFRÈBRE, Henri. Lógica formal, lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1975.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

PODER DEGENERADO

No jornal A Tarde da sexta-feira, 03/01/2014, página, A3, Helington Rangel, professor universitário, economista e jornalista, escreveu um interessante texto sobre o poder na contemporaneidade, referindo-se àquilo que Foucault já refletia em suas abordagens teóricas: a natureza, origem e fluxo do poder. E é sobre esse último, o fluxo do poder, que Rangel apresenta sua argumentação, afirmando que:

Nos últimos anos as muralhas que amparam o poder se debilitaram num movimento veloz, ficando fácil de vencê-las, passar por cima delas ou iludí-las. Moisés Naim adverte, contudo, que o poder não desapareceu, apenas os poderosos de hoje costumam pagar um preço maior e sem demora pelos erros do que seus predecessores. (RANGEL, 2014, p.A3)

De fato, uns períodos eleitorais atrás, ainda recentes, “os homens que exerciam seus podres poderes” reinavam no controle geral dos aparelhos políticos, econômicos e ideológicos. Os aparelhos políticos eram assegurados pela ditadura. O aparelho ideológico era garantido por canais de tv, muitos poucos em relação ao número que temos hoje, fiéis às determinações do poder político, principalmente a Rede Globo de Televisão. E o controle econômico era feito por grupos fechados, monopólios que não enfrentavam concorrência devido às proteções do mercado interno. Foi nesse contexto que ACM, João Alves, João Figueiredo e Sarney, entre outros, foram forjados. Prendiam e arrebentavam. O poder jurídico e o legislativo estavam sucumbidos diante do poder político que o poder executivo exercia com máxima coerção das polícias sobre os descontentes.

Aos poucos, um contrapoder e uma contraideologia foram tomando corpo no tecido social brasileiro e com a redemocratização, partidos e movimentos sociais foram apresentando sua utopia como ideologia possível para um país em transição. Reaparecem o PCB (Partido Comunista Brasileiro), o PC do B (Partido Comunista do Brasil), e, unindo todos à esquerda, se apresenta o PT (Partido dos Trabalhadores). Luís Inácio Lula da Silva surge como principal liderança desse processo e, no desenvolvimento histórico possível daquele tempo Lula começa a representar os anseios de mudança que mobilizam pessoas, grupos, movimentos e instituições no espaço social brasileiro. Foram três eleições até que Luís Inácio, o Lula, chegasse à Presidência. Finalmente um trabalhador iria nos governar e provocar mudanças que indicassem um redirecionamento a favor das classes sociais menos favorecidas, atuando em seu processo emancipatório. Votamos “sem medo de ser feliz”. Enfim: “Lula lá”!

Lula era a opção mais clara para quem desejava mudança de fato nos rumos que este país tomou desde sua invasão pelos portugueses. A eleição de Lula representou um marco histórico na História de nosso jovem país. “Os meninos e o povo no poder eu quero ver”, cantávamos a utopia com Fernando Brant e Milton Nascimento. Mas então veio a decepção. Lula mudou. Não era mais o operário aposentado pela perda de um único dedo que, despojado, pregava tal um “Conselheiro”, que o sertão iria virar mar. Não virou. A utopia foi deixada de lado e veio o pragmatismo do poder a qualquer preço, digo, a qualquer mensalão. Na educação, na saúde, na infraestrutura do país, no investimento em ciência e tecnologia nada mudou. A economia cresceu, de fato, mas por um artifício estatal do governo Lula. Cresceu através do consumo via empréstimos bancários, não via aumento de produtividade pela melhoria dos indicadores educacionais dos brasileiros. As pessoas compraram carros, apartamentos, eletrônicos, eletrodomésticos e encontraram-se num endividamento crescente, caracterizando a “economia do voo de galinha”. E o governo do PT foi exercendo o poder da forma cínica, fajuta, elaborando uma ideologia rasteira que somente seus “dependentes químicos” do bolsa-família acreditam.

A corrupção espalhou-se e escancarou-se descaradamente. O cinismo tomou conta de todos: de vereadores analfabetos, prefeitos ignorantes, governadores surrupiadores do erário público, deputados, senadores e quase todos os políticos brasileiros. Mais uma vez, a mesma lógica dos portugueses se repete: o Brasil não é um país para se construir uma nação, mas um lugar para explorar as riquezas e mandá-las para o exterior, contas no exterior. Antigos “companheiros” enriqueceram repentinamente. O próprio filho de Lula enriqueceu tão rapidamente que parece milagre – talvez haja alguém que acredite nisso. Escândalos de corrupção começaram a se tornar diários. Então o Poder Judiciário, tal como um antivírus, teve de aparecer na cena política com veemência, para combater a infecção generalizada que está matando nosso país. E aparece Joaquim Barbosa na cena, com sua coragem, sua sapiência e sua vontade de fazer valer a lei para todos, independente de partidos, classes, grupos e interesses. A prisão dos mensaleiros, incluindo José Dirceu, José Genoíno, João Paulo Cunha – cuja prisão está bem próxima -, Roberto Jeferson, Pedro Henry, Marcos Valério – operador do esquema – entre outros poderosos de outrora, foi um suspiro de esperança dado pela justiça desse país. Claro, tudo isso é uma simplificação do que ocorre nos corredores do Planalto e dos Ministérios ministeriosos de Brasília.

E isso tudo foi gerando um processo em que o aparelho ideológico do estado foi perdendo sua capacidade de garantir o consenso. As redes sociais hoje desempenham um papel fundamental, deslocando o poder através da criação de grupos outros que rejeitam bandeiras partidárias, velhos discursos ideológicos, movimentos sociais atrelados a eles e toda e qualquer inclinação que aponte para isso. Sobre isso Rangel (2014) afirma que

Os partidos políticos ou movimentos sociais ainda travam uma luta desesperada pelo comando, como nos velhos tempos. Porém, o antigo poder em si entrou num processo irreversível de degradação. (RANGEL, 2014 p. A3)

As manifestações de junho do ano passado são reflexo disso. Começamos a perceber a ilusão que o Partido dos outrora Trabalhadores queria nos fazer acreditar. Nosso país não está sendo construído. Continua sendo surrupiado, como sempre. A riqueza coletiva por nós produzida e apropriada pelo Estado através de impostos crescentes, está sendo derramada no ralo da corrupção. Nosso sistema educacional brasileiro é uma lástima, com mesma avaliação para o nosso sistema de saúde. A segurança em nosso país é uma piada grotesca e a propaganda dos governos não consegue mais enganar muitos tolos.

[...] o economista venezuelano Moisés Naim argumenta que o poder está passando por uma espécie de transfiguração visível e histórica: cada dia ele se dispersa e os atores tradicionais estão sendo confrontados por imprevistos concorrentes. O poder não é mais o que foi, percebe Moisés Naim: no século XXI pode ser obtido sem dificuldade ou esforço, difícil de utilizá-lo e fácil de perdê-lo. A realidade está modificando o comportamento das pessoas: existe uma degeneração na malha social que perturba o modo de ser da interação humana. (RANGEL, 2014, p.A3)

Desconfio, contudo, que quem gerou isso tudo em nosso país não foi a emergência das redes sociais: a “degeneração na malha social” não é causa, é efeito de um exercício de poder degenerado por práticas antigas de poder mesquinhas, interesseiras, nepotistas e patrimonialistas que nos cansaram a paciência, minaram nossas esperanças e nos forçaram a reinventar o modo de fazer política nesse país, o modo de cada um, unido apenas pela indignação generalizada com tanta descaração, impunidade e cinismo, que nos afasta de sermos uma nação. O poder não está tão controlado e tão navegável assim pelo PT e demais partidos que sugam as tetas do estado. Os ventos de 2014 vão soprar, muito embora desconfie que a "copa do mundinho 2014" seja comprada como uma mercadoria qualquer, pelo bem do capitalismo internacional e dos políticos salafrários brasileiros, nossa atenção ficará alerta para as informações e os acontecimentos que serão interpretados livremente em nosso espaço social, político e ideológico mais eficiente hoje em dia: as redes sociais.   


Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

ESCOLA DE RACISMO

Estou atônito. Tudo está ocorrendo numa velocidade que minha percepção parece inútil. Depois do desaparecimento dos quintais fiquei órfão desse espaço geográfico pequeno e imenso que também me pariu.

Do trampolim do meu quintal
eu dava saltos no universo
em meu caderno de chão
eu rabiscava os meus versos.
No caminho de formiguinhas
que trilhavam sete anões
eu namorava a bruxa má
e aprendia muitas lições.
(Joselito Zé)

E tudo foi precipitando-se velozmente sobre mim de modo que tive de refugiar-me nas ocupações múltiplas da produção da existência a fim de proteger-me do mundo em convulsão. Depois do quintal eu não tive mais paz. Chegaram os blocos, as areias e o cimento e foram afunilando, reduzindo, enforcando os quintais que, desesperados, foram sucumbindo como espaço de socialização infantil e juvenil. A produção do espaço aniquilou o espaço da imaginação, dos ensaios criativos de vida que as crianças elaboram enquanto o mundo trabalha sua incessante máquina de construção e destruição de formas culturais singelas que existem em pequenos espaços de vida, tais como os quintais. O poder atropela. E o futuro, com suas portas que abrem sozinhas, chegou aos shoppings, e não mais espanta nenhuma criança. Tudo parece dado, claro e autoexplicável, contribuindo para a perda de força da Filosofia.

Entretanto, a capacidade de espanto deve ser exercida sempre por cada um de nós, a fim de enfrentarmos a força destruidora da naturalização. O racismo, por exemplo, exercido sem tréguas durante tantos séculos, foi sendo naturalizado a ponto de aceitarmos milhares de corpos de jovens negros como parte das estatísticas anuais e, ao mesmo tempo, nos espantarmos quando algum jovem branco é assassinado, ou é preso por envolvimento no mundo do crime. A recuperação da capacidade de filosofar nos faz perguntar: por que esse fenômeno existe? Por que o movimento negro não faz uma reflexão contínua, profunda e duradoura sobre isso? Por que a possibilidade de um homem negro em Alagoas morrer por homicídio é altíssima enquanto que, no mesmo estado, a possibilidade de um homem branco ser assassinado é baixíssima? Como o racismo é reproduzido tão eficazmente no tecido social, apesar de todas as denúncias, lutas, movimentos contrários? Como a gente aprende a ser racista? Quem é o (a) nosso (a) professor (a) e qual a sua eficiente didática no ensino discreto do racismo? Como é que começa a negação do povo negro ao acesso à educação, à saúde, à segurança, etc.? Há uma espécie de labirinto social que direciona o (a) jovem negro (a) para determinadas vias e não para outras? Quem são os principais responsáveis por esta construção sutil, porém eficiente? Os Governos que representam os interesses de setores organizadíssimos da sociedade? Grupos de poder político, econômico e ideológico que se organizam na Bahia tendo como critério fundamental de discriminação a cor da pele? Qual o papel das redes de tv da Bahia nesse processo? E os jornais de Salvador? Como associam a violência nas periferias, onde os negros são as principais vítimas, com a questão do racismo? O que a universidade baiana tem feito diante de estatísticas tão sombrias para os jovens negros da Bahia? O que anda fazendo a Secretaria de Educação sobre tal problema? Como a negritude é representada em suas práticas discursivas? O que a classe média negra faz? Protege seus filhos na rede de inclusão a que tiveram acesso? Fingem que agora pertencem a outro nível social e que tais questões já foram superadas por ela? Será que conseguem voltar à periferia para provocar tais discussões e criar potenciais de comportamento para o combate ao racismo? Como os (as) policiais são preparados (as) pelos seus professores? Como eles (as) apreendem a relação entre cor da pele e violência? Será que conseguem perceber a formação do marginal pela estrutura política, jurídica, econômica e cultural de nossa sociedade baiana e brasileira? Como é que funciona a fábrica de marginais e a indústria do homicídio na Bahia? Por que é tão difícil prender e manter na cadeia um sujeito de pele branca? Parecem perguntas fáceis. E são. Mas as respostas são muito mais difícieis, porque nos implica a todos (as) nesse trágico fenômeno. São essas e muitas outras questões que me vêm à tona, embora saiba que muitas outras ficam na latência gritante de minha própria contradição, mas que, se refletidas num plano mais amplo de nossa sociedade pode trazer emancipação de muitos do racismo que nos envolve.

Estamos num ano eleitoral. Devemos levantar dados, colocar policiais para defender, além do turista, o povo de nossa terra, que nunca foi uma boa terra para o seu povo. Precisamos acender nossas luzes nessa escuridão do mundo, que na propaganda se mostra sorridente, iluminado, colorido, afável e convidativo, mas que nas práticas concretas das relações sociais, tira a máscara e exerce seus podres poderes com o exercício da força impiedosa de uma arma oficial, principalmente contra quem tem a pele negra.


Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

ENQUANTO TODOS OS HOMENS E TODAS AS MULHERES EXERCEM SEUS PODERES



A empresa São Luiz é dona da rodovia que leva as pessoas à Jacobina e toda a região adjacente. Os motoristas se sentem os capitães da nave onde os súditos devem, obedientes, calarem-se no desconforto oferecido pela empresa, sem poderem reclamar. Por causa disso na terça-feira, 19/11/2013, no horário das 23:59, tive uma discussão com um motorista da Empresa São Luiz, detentora do direito exclusivo de transporte coletivo de pessoas na região que envolve uma capitania hereditária: Capim Grosso, Jacobina, Senhor do Bonfim, Juazeiro, Campo Formoso, Caldeirão Grande, Miguel Calmon e todas as cidades e povoados que ficam neste trajeto. Aqui no Brasil e na Bahia é assim: a tão proclamada concorrência que o capitalismo propõe é atravessada pela cultura patrimonialista, que doa – ao povo baiano e brasileiro que doer – imensas faixas de território rodoviário de poder para quem apoia o governo nas eleições com suas verbas generosas. Desde que sou criança, e já tenho 44 anos, essas empresas existem. Nunca ouvi falar em abertura de licitação e em concorrência na prestação de serviços de transportes público e coletivo nas capitanias rodoviárias da Bahia. Com o município é a mesma coisa. Os poderosos reunidos com seu “podres poderes” no SETPS, mandam e desmandam no serviço – serviço ou exploração do povo? – de transporte público de Salvador.
O ônibus estacionou meia hora antes da partida. O motorista da São Luiz conferiu as passagens e a maioria dos passageiros adentrou o transporte. Mas o tempo foi passando e o ar condicionado desligado, com as janelas fechadas foi gerando mal-estar. Alguns passageiros foram abrindo as janelas. Uma passageira solicitou minha ajuda e eu abri a dela, pois a minha já havia sido aberta pela pessoa que estava na poltrona da janela. Então desci e falei com o motorista, a princípio educadamente, sobre o problema. Ele respondeu-me que a regra era ligar o ônibus somente 05 minutos antes da saída. Tudo bem. Um grande problema é que as regras só valem para os “fracos de alma”. Disse-lhe, já em tom de descontentamento, que alguns passageiros já haviam aberto a janela e que eu abriria a minha também, devido ao abafo e ao mal-estar provocado por ele. Ele respondeu-me rispidamente que o problema era meu. Então eu o chamei de filho da puta e começou uma discussão nada agradável, com aquelas ofensas que só pessoas fora de sintonia sabem fazer. Depois falou que chamaria a polícia e eu falei que se fosse preso por algo tão tolo ele sofreria as consequências imprevisíveis de uma pessoa extremamente ofendida em sua dignidade.
Alguns motoristas da São Luiz são despreparados, embora haja outros muito gentis e preparados para lidar com os problemas que surgem. Eu não havia discutido com motorista algum, desde quando entrei como professor da UNEB em Jacobina, a não ser quando fomos denunciar na AGERBA os mosquitos que vinham nos picando de Salvador a Jacobina e vice-versa, embora nenhuma providência tivesse sido tomada. O que percebo, no fundo de toda essa cena é a questão do poder. Não sejamos tolos. O poder é um jogo que pode tornar-se perigoso se não houver bom senso. Foucault estava certo: a gente denomina de poderosos aqueles e aquelas que estão no centro dos holofotes da política, mas devíamos estar atentos também ao exercício efetivo do poder que ocorre em nosso cotidiano e que percorre todo o tecido social. Na relação professor-aluno há exercício do poder, não apenas e exclusivamente do professor, como alguns alunos e alunas querem acreditar, mas dos alunos e das alunas também. A relação entre médico e paciente é outra relação de poder perigosíssima, nesse caso, geralmente do médico, que escapa, quase sempre, ileso das negligências, perversidades e atrocidades cometidas no espaço de poder do hospital ou do posto de saúde.
Claro, toda relação humana é uma relação de poder, que pode ser mais democrático, sensível e humano ou mais autoritário, insensível e desumano. Um motorista de um ônibus também exerce imenso poder. Alguns utilizam-se das regras e do modo como o sistema de transporte é construído para posicionar-se autoritariamente frente ao passageiro, impondo-lhe sua vontade, muitas vezes afetada pela sua vida pessoal. Um motorista assim não pode ficar atrás de um volante, porque nem todos os passageiros passam. Alguns, como eu, ficam. E não ficam bem. Eu utilizo a escrita como arma de defesa, outros podem utilizar outras armas, talvez menos eficientes, mas mais letais, mais eficazes e, nesse caso, a polícia chega tarde, aliás, a polícia sempre chega depois, como nos filmes idiotas onde um herói ou uma heroína resolvem tudo e o som das sirenes surge no horizonte dos nossos ouvidos, sempre no final do filme. Eu percebi o jogo da motorista. Ele não queria reclamação ou contrariedade. Não está preparado para lidar com o público e suas necessidades, pois, sendo a empresa na qual ele trabalha dona da capitania hereditária BR 324-Miguel Calmon, via Jacobina, não há opção para o passageiro, que deve curvar-se à inevitabilidade de um serviço ruim de transporte coletivo, garantido por uma AGERBA conivente com esses descasos, talvez por motivos políticos eleitorais.
A menção do motorista de chamar a polícia por uma discussão banal é sintoma de uma sociedade acostumada a silenciar, a impor uma vida de gado para as pessoas e a acionar o capitão do mato contra o escravo que se liberta da tirania e funda o seu quilombo numa poltrona de um ônibus da São Luiz. Mas o que o motorista desconhece é que o escravo não é escravo, foi escravizado, mas se liberta com fúria e, nessa fúria, não esquece o insulto. Por isso este texto passa a existir, por causa de uma memória que rejeita o ultraje e o desrespeito e arregaça os teclados contra isso. Eu não sou um tipo de homem que queima calado no inferno de um ônibus fechado. Eu sou um tipo de homem que reclama o desconforto e briga pela restauração da sua dignidade em qualquer espaço de poder, seja ele exercido por motoristas, por taxistas, por policiais, por professores, por governadores ou pelo diabo que os carreguem.

Joselito de Jesus