Eu estava lendo o artigo do bispo primaz do Brasil, Dom Geraldo Majella. Ele combate com veemência o projeto do Governo no que se refere ao aborto. Bem, coisa complicada. A vida deve ser garantida desde a sua concepção, sim. “A vida é tão rara”, canta Lenine. Mas o que me indigna é a hipocrisia subjacente à defesa do Primaz do Brasil. A vida deve ser garantida desde sua concepção até a morte. Mas Dom Geraldo Majella pouco ou nada diz acerca da morte sistemática de centenas de jovens negros e pobres das periferias de Salvador, como se a vida destes não fizesse parte do sistema de proteção do céu, talvez porque não aderiram ao sagrado plano assistencial, que dá direito à defesa de sua alma após seu assassinato, ou melhor, após seu aborto social. É preciso deixar a criança nascer. Mas é preciso também, senhor primaz, permitir que as crianças tornem-se adultos com acesso à educação, saúde, habitação, emprego e lazer.
Este janeiro fui à Itacaré e lá, pensei estar no Brasil do século XVIII e XIX. Lá, vimos as mulheres e jovens negros atuando na cozinha, nos serviços como garçom, vendedores e ambulantes. Os brancos do sul, donos das pousadas, dos equipamentos e da barracas de praia, estavam lá, no comando, dando as ordens e trazendo o tal do “progresso” para Itacaré. Os nativos ainda estão escravos, ainda estão servindo os brancos para ganhar sua subsistência; ainda estão morando em barracos, favelas da periferia do lugar. Conversei com alguns deles e delas para tentar entender, mesmo que de forma superficial, a dinâmica local que reproduz esta velha forma de viver, de relações sociais antigas. Falaram-me que faltam escolas públicas de qualidade, assistência pública de saúde, entre outras coisas. Poucos negros e negras baianos são donos e donas de alguma coisa em Itacaré. Ana, minha mulher, teve uma espinha atravessada na garganta e tivemos que viajar para Ilhéus, onde chegamos pela manhã e fomos atendidos somente no final da tarde, às 16:45 h. Se os turistas são desrespeitados desse jeito, por um município que recebe pessoas de todo o mundo, fiquei imaginando o que não sofrem os nativos. O aborto social acontece todos os dias em toda a Bahia. O racismo mata deliberadamente e o bispo primaz, tão inteligente, não combate veementemente a dinâmica assassina que elimina prematuramente negros, jovens e pobres.
Mas o Dom Majella fala para os pobres. Fala bobagens sobre salvação, sobre os santos, sobre a Madre Igreja, sobre o Papa, fala, que contradiz sua inércia discursiva neste campo. Fala para os pobres silenciando sobre a dinâmica que os deixa pobres e desassistidos de seus direitos mais fundamentais. Esconde em seu discurso a origem do mal social e histórico que condena os pobres, os negros e as mulheres à morte prematura produzida pela máquina social de abortar. – É um problema econômico! Dirão alguns. – É culpa do Estado, dirão outros. – É o acontecimento histórico inexorável previsto no apocalipse! Afirmarão outros. – O bispo nada tem a ver com isto! Ele não pode tomar partido, pois sua preocupação não é com a ordem material mas com as coisas eternas do plano espiritual. Defenderão seus seguidores. Nada dessas justificativas me convencem. O representante espiritual de uma comunidade tão grande é um líder institucional e, se compromisso tem com o amor, a justiça e a verdade, é chamado à sua responsabilidade. Tem de posicionar-se contra o grande aborto que acontece todos os dias nas ruas e vielas das favelas e bairros de periferia. Se o bispo lê jornal deve saber da quantidade de jovens que desaparecem assassinadas, seja pela polícia, seja pelos traficantes em guerras intermináveis pelo pseudo poder que imaginam ter com um arma na mão, já que lhes faltaram escolas públicas de qualidade e assistência primordiais estabelecidas na Constituição Federal.
Ainda vou escrever mais sobre isso. Mas por enquanto só desejo evidenciar a hipocrisia social, não só de Dom Majella, mas de todos aqueles que criticam o aborto apenas numa extremidade, esquecendo-se convenientemente do aborto permanentemente instaurado, que a sociedade racista, machista – três mulheres assassinadas em 16 horas, enche de justificativas para a morte que atinge prematuramente centenas de pessoas todos os anos, cadáveres previstos nas estatísticas que Dom Primaz mal fala, mal ouve, mal vê.
Disse um mestre do espírito: Se falto ao amor ou se falto à justiça, afasto-me infalivelmente de Vós, ó meu Deus e meu culto não é mais que idolatria. Para crer em Vós, preciso crer no amor e crer na justiça e vale muito mais crer nestas coisas que pronunciar vosso nome. Fora do amor e da justiça é impossível que eu alguma vez Vos possa encontrar. Mas aqueles que tomam o amor e a justiça por guia estão no caminho verdadeiro que o conduzirá até Vós. (Citação de Leonardo Boff, O Pai Nosso, editora Vozes)Autoria: Joselito da Nair, do Zé, de Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel