Conversando com Mayre (http://mayre-reciclandoideias.blogspot.com) pelo Orkut, começamos a falar sobre céu, pecado e coisas afins, quando me surgiu a vontade de escrever sobre esse fenômeno. Propus dividir esse texto com a mesma, que aceitou de prontidão. Então...
Quando eu era pequeno queria ir para lá: o “céu”. Queria ir para aquele lugar que os adultos tanto falavam. Mas o incrível era que eu não queria ir para o céu por vontade própria. Criança não pensa em céu. Criança pensa em brincar e em brinquedo, criança pensa em doces, refrigerantes, pizzas e histórias contadas pelos mais velhos antes do sono. Criança brasileira pensa em ser jogador de futebol, piloto de avião, fórmula 1 ou algum super herói tipo homem aranha, mulher gato, maravilha ou super homem. Criança pensa em coisas que eu não consigo mais lembrar. Os mundos imaginários em que vivi, continham invariavelmente muita água, embora eu gostasse muito de galhos de árvores, onde Tarzan aparecia com seu grito peculiar: ÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔ. Então, “o céu pode esperar”. E podia. O mítico céu que o “Anjinho” da Turma da Mônica ajudava a compor ficava acima de nossas cabeças, era sempre azul e as nuvens serviam de cama para os anjos que nos olhavam caridosamente e nos protegiam quando necessário. Mas o céu não era lugar para vivos. Só mortos podiam requerer um espaço naquele lugar de harpas e anjos. Lembro que quando uma criança morria prematuramente alguns diziam logo que virou um “anjinho”, o que era assentido por todos os presentes. E, claro, por mais bonito que aquilo soasse, nenhum de nós, crianças daquele contexto, gostaríamos de virar “anjinhos”. O pecado nos aguardava mais à frente e, claro, gostaríamos de experimentá-lo, assim como experimentei meus primeiros cigarros às escondidas, entre outras ousadias com Ritinha no beco de casa. E de fato, o céu não foi uma opção para nós. Foi uma catequese familiar que o trouxe até nós. Nossos pais nos contaram desse lugar estranho que continuava a vida, depois do túmulo frio e cheio de significados para a própria vida que o olhava, tristonha. O Céu era a esperança da continuidade, o lugar misterioso onde a fé realizaria seu desejo infinito. Eu não sei se queria ir pro céu. Queria ficar ali, na Casa do Calafate com meus pais, para sempre, pois é assim que criança pensa: “para sempre”. Ouvindo suas histórias em noites frias e colchas de retalhos coloridos. E ficam para sempre todas as marcas de amor e de tristeza.
Depois fui vendo que esse negócio de “céu” não era uma coisa tão simples como morrer e ir para lá. Não existia apenas um céu. Aliás, cada céu impunha um modo de viver na terra. Um certo “céu” de um grupo poderoso impunha, digamos, uma dieta comportamental cuja receita trazia em seus muitos elementos a necessidade do indivíduo confessar seus pecados para outro indivíduo considerado menos pecaminoso que o mesmo. Além disso, impunha também como disciplina do denominado “cristão” que a pessoa tinha que, o que eles denominaram de, “comungar”. E, assim, os sacramentos foram criados e aqueles que não o seguiam foram marginalizados como “pecadores”, afastados que estavam do “caminho do Senhor”. Outros grupos criaram outros sacramentos e fórmulas para se chegar ao céu. Vestir gravata e paletó, não depilar as pernas, não fazer sobrancelhas e as mulheres, por conta de incitarem o desejo masculino – que nessa perspectiva é vítima, e não algoz, dos prazeres da carne – deviam usar roupas do pescoço ao tornozelo, cobrindo, inclusive, os braços. Outro grupo achou que num certo dia da semana não podiam fazer nada. Creio que deviam nem beber água nem mesmo comer, nem fazer necessidades fisiológicas. Aí o sacrifício ficaria completo em nome do “senhor” do sábado, e não do Senhor de todos os dias. Ora bolas. Evitando o desejo, prendendo o tesão dentro do corpo e blindando-o com orações fervorosas, com joelhos dobrados no chão, a fé, campo da pureza que se aproxima do divino, venceria o desejo, campo da impureza vinda do ser humano, frágil, carne que apodrece e desaparece. A história do ser humano seria, portanto, o longo e duro caminho de volta para o Senhor. A negação de desejos e necessidades que Deus possibilitou ao ser humano para aproveitar a boa e breve vida que Ele nos deu, é, nesse caso, condição sine qua non para o ser humano desfrutar a verdadeira vida que o aguarda no além, no “céu”.
O “céu” vai-nos aprisionando em vida e nos matando antes mesmo da morte chegar definitivamente. É como um regime rigoroso para emagrecer quem pesa apenas 30 kg. A gente vai vivendo no além, para o além, bem além de tudo o que nos foi dado como um jardim para desfrutar as belezas e dormir nas sombras das árvores, bebendo das águas limpas do rio. O céu é, na verdade, o anti-inferno. Não é o céu que vem primeiro: é o inferno! Criam o inferno para nos empurrar desesperadamente para o céu. Ou inferno ou céu. E não há saída para o ser humano: corre para Deus não por amor a Ele, mas como medo do diabo e das chamas ardentes queimando eternamente a nossa memória ameaçada. As religiões têm um forte poder de influência sobre nossa psique, pois seus conteúdos vêem de antigos mitos, fórmulas e estruturas arquetípicas da humanidade.
Voltando ao início dos tempos, visualizamos a imagem de Eva, a primeira mulher para judeus, árabes e mulçumanos, a lançar o pecado sobre a Terra, transformando-se na própria figura do mal. Eva não soube ou não quis frear o seu desejo. Cedeu à tentação da serpente e provou do fruto proibido por Deus. Gostando, logo convenceu Adão a experimentar também. Este, fraco por natureza, pois fora feito do barro, não resistiu à sedução da sua companheira. Contaminados pelo pecado, se autodescobriram, passaram a se enxergar como homem e mulher. Viram-se nus, se tocaram, perceberam suas diferenças anatômicas e sentiram sensações desconhecidas, mas altamente prazerosas e lascivas. Pronto! Estava criado o pecado da luxúria. E foi graças à Eva, e não a Deus, que o sexo passou a fazer parte das relações humanas. A partir daí foram estabelecidas as regras para se alcançar o céu, evitando o inferno. Fez-se conhecer uma lista infinita de atos proibidos e condenáveis. Em se tratando de sexo, estava terminantemente proibido praticá-lo com outro intuito que não a procriação. Ok. Era preciso povoar a Terra, ampliando a prole de Adão e Eva.
Mas por que não unir o útil ao agradável, por que dissociar o sexo do prazer? Se um sem o outro é o mesmo que goiabada sem doce, mar sem sol, boca sem sorriso, dança sem música! Sexo somente com orgasmo masculino, treinado para atingir o alvo. Um, dois, três e...FOOII! Ó, céus! Desse jeito ficou difícil alcançar o plano celestial.
Deus sádico, esse... Dá a faca, o queijo, mas não deixa comer. Barbaridade, Senhor!
Quase impossível dizer “seja feita a tua vontade” para todas as tuas vontades, porque as nossas vontades contrariam as tuas! Não nos deixa outra opção, senão pecarmos e depois escolhermos algum santo à altura do erro cometido para nos apegarmos e rezarmos, prometendo não voltar a reincidir! Promessas vãs, porque a depender do delito quase sempre o praticamos novamente.
E assim vamos vivendo na corda bamba, com um pé no céu e outro no inferno.
E quem haveria de querer viver para sempre no melancólico Jardim do Éden, vendo os dias passarem em brancas nuvens, ouvindo os mesmos sons e vendo a mesma paisagem bucólica? Nenhuma aventura, nenhum risco, sem poesia, sem canto, sem leitura, sem desejo proibido... Bendita seja Eva entre as mulheres!
Rosimayre Sousa de Oliveira e Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcias, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel