Cada fala, cada discurso é, para mim, um convite a inserir-me nele, através, em primeiro lugar, do contexto imediato da fala e da memória discursiva acionada pelo evento discursivo, que provoca e evoca a emergência da compreensão constitutiva do objeto eleito, muitas vezes inconscientemente, apontando-o para formações discursivas específicas atravessadas pela história e pela ideologia. Lembrei-me de João Ubaldo Ribeiro quando, em seu "O Sorriso do Lagarto", brinca perversamente conosco. Brinca porque aciona nossa memória viciada em finais felizes, nos conduzindo a um possível happy end, com um crescente romantismo entre João Pedroso e Ana Clara. E, perversamente, João Ubaldo vai conduzindo-nos na trama até um ápice onde um tiro, apenas um tiro, e todo o romantismo desaba no corpo inerte de João Pedroso, levando ao chão a esperança de mundo demarcada na história de um homem e de uma mulher que, só faz sentido, porque já faz sentido na história pessoal de cada um de nós e de todos. E aquele tiro vindo de um assassino psicopata, mata não apenas João Pedroso, a luta da comunidade e a esperança da vitória dos pobres, mas também todos os leitores que, até aquele momento literário, eram cúmplices do casal controverso. Daquele trecho em diante, tudo parece ocorrer num tempo fugaz de um tiro, mostrando-nos que quem prevalece são os poderes político, econômico, científico e religioso. E assim, o lagarto, ou seja, o medo e a maldade sorriem. Tais poderes prevalecem sobre o bom senso, sobre a justiça, sobre a verdade, sobre a cultura e a luta da comunidade pela luz que deveria iluminar o espaço cotidiano.
João Ubaldo atira em nossa face a realidade mais crua do poder que opera sob a lógica do colonialismo e do patrimonialismo. Há pessoas donas de muitas terras, muitas águas, muitas riquezas. E, como afirma Peter Maclaren: Eles querem mais! E ainda tem pessoas que são donas, ou querem ser, de pessoas, o que é terrível. Temos uma pequena quantidade de brancos, ricos e heteros [muitos enrustidos], cuja arrogância nos espaços privados demonstra a mesma crueza dos antigos Senhores de Escravos do passado escravocrata da sociedade brasileira. Pisoteiam com palavras e ações àqueles a quem consideram inferiores. E esse fenômeno não se articula apenas no campo político, econômico e social, mas também no religioso, que recebe e incorpora elementos culturais específicos de nossa historicidade peculiar - embora negue em sua hipocrisia necessária - amalgamados em todas as relações sociais, cimentando um tipo de sociedade que se diverte com a criatividade que brota das desgracenças humanas criadas pelo modus operandi dessa mesma sociedade. A miséria nos distrai, nos relaxa e nos encanta. Há um humor exagerado que ridiculariza o nordestino, o pobre, o judeu, o homossexual, o louco, o miserável, o bêbado, o corno. E João Ubaldo devolve a sacanagem que fazem conosco, através do personagem de Ângelo Marcos, um político ladrão, homossexual enrustido, escondido “dentro do armário”, corno e mandante de assassinato, tirando toda vida que brotava a sua volta. O entorno desse personagem é árido e sua vida é oca. Sua arrogância e seu dinheiro não o fazem feliz, porque ele vive cercado pela mentira, e sustentando a mentira que é a vida de Ana Clara, ou seja lá o que isso signifique naquele contexto preciso.
E tudo isso gera medo. Medo gestando medo, numa sociedade que aborta a vontade de nascer outro modelo de sociedade. Os policiais atiram a esmo, ceifando vidas de Norte a Sul da Bahia. Desde uma criança que se prepara para dormir com seu amado pai, que teve a infelicidade de morar num bairro pobre onde os policiais interpretam como “lugar de marginais”, e tal interpretação permite a ação letal de atirar à esmo, até a morte sistemática de milhares de jovens envolvidos com o mundo do crime. Quem é aquele sujeito atrás da farda? Ninguém? Aquele que era geralmente desaparece quando coloca aquela farda. Há idéias que vestem aquele sujeito, junto com aquela farda, aquela pessoa que era comum, que sorria e que sonhava, que temia e que orava, que perdoava um pequeno deslize e não matava o seu vizinho por bobagem, agora é outro naquele contexto histórico e ideológico que a farda militar simboliza. Não se trata apenas de uma farda, mas de um símbolo de poder, de uma indumentária sacerdotal que dá àquele que a veste o ritual quase sagrado de prender, arrebentar e matar, sem o ônus da responsabilidade, pois a farda, atravessada por processos históricos de significação da polícia na sociedade brasileira, representa a autoridade inquestionável assegurada pela instituição histórica e socioantropológica do “desacato a autoridade”. Uma extensa memória discursiva do autoritarismo vem no enunciado: "- Você sabe com quem está falando?"
Há muitos policiais bem preparados, e muitos deles são honestos e têm senso de justiça. São bons pais e bons amigos e são muito bem representados pelo personagem do Capitão Nascimento. Mas, como ele mesmo afirma no Tropa de Elite II, “o sistema é foda”. O sistema de idéias, valores e crenças amalgamados na cultura colonialista que nos deixa marcas profundas em nosso modo de pensar e de agir, são reforçados por uma educação informal, assistemática, embora bastante eficaz, que torna aquele jovem humilde que freqüentou a catequese e o grupo de jovens no algoz que dispara o tiro que mata. Quem dispara não é apenas um sujeito neutro, pertencente a uma instituição neutra que busca a ordem nos parâmetros da Lei. O tiro que mata vem de longe. Foi disparado faz mais de 500 anos, desde Portugal, atravessando o tempo e o espaço, até ultrapassar a janela do quarto que matou o garoto que desejava ser Mestre de Capoeira. O policial que disparou foi o autor, o co-autor e o mediador da morte do inocente. A bala que saiu tecnicamente da sua arma, já vinha disparada por idéias, crenças, hábitos, comportamentos e atitudes marcadas pela discriminação e pelo preconceito que a nossa história herdou, preservou e desenvolveu. Não foi só um policial que atirou. Também foram co-autores desse crime: Eu, nós, vós, tu, eles, você (s), o sistema educacional baiano e brasileiro; o sistema de saúde; a nossa conivência e naturalização da morte; as religiões que dizem amém para tudo e celebram a morte ou a riqueza milagrosa - "para os que têm fé" - como a salvação dos pobres; o corporativismo das instituições; o Governo do Estado da Bahia, a Secretaria de Segurança Pública, o Fantoche de Prefeito de Salvador e o indivíduo fardado que atirou.
Há muitos policiais bem preparados, e muitos deles são honestos e têm senso de justiça. São bons pais e bons amigos e são muito bem representados pelo personagem do Capitão Nascimento. Mas, como ele mesmo afirma no Tropa de Elite II, “o sistema é foda”. O sistema de idéias, valores e crenças amalgamados na cultura colonialista que nos deixa marcas profundas em nosso modo de pensar e de agir, são reforçados por uma educação informal, assistemática, embora bastante eficaz, que torna aquele jovem humilde que freqüentou a catequese e o grupo de jovens no algoz que dispara o tiro que mata. Quem dispara não é apenas um sujeito neutro, pertencente a uma instituição neutra que busca a ordem nos parâmetros da Lei. O tiro que mata vem de longe. Foi disparado faz mais de 500 anos, desde Portugal, atravessando o tempo e o espaço, até ultrapassar a janela do quarto que matou o garoto que desejava ser Mestre de Capoeira. O policial que disparou foi o autor, o co-autor e o mediador da morte do inocente. A bala que saiu tecnicamente da sua arma, já vinha disparada por idéias, crenças, hábitos, comportamentos e atitudes marcadas pela discriminação e pelo preconceito que a nossa história herdou, preservou e desenvolveu. Não foi só um policial que atirou. Também foram co-autores desse crime: Eu, nós, vós, tu, eles, você (s), o sistema educacional baiano e brasileiro; o sistema de saúde; a nossa conivência e naturalização da morte; as religiões que dizem amém para tudo e celebram a morte ou a riqueza milagrosa - "para os que têm fé" - como a salvação dos pobres; o corporativismo das instituições; o Governo do Estado da Bahia, a Secretaria de Segurança Pública, o Fantoche de Prefeito de Salvador e o indivíduo fardado que atirou.
Quem está combatendo os pequenos e médios traficantes do Rio de Janeiro não é o Estado que, sensível, atende o clamor da sociedade, principalmente dos favelados amaldiçoados pelo tráfico, alimentado, inclusive, por artistas e famosos. Mas é o Grande Capital que se utiliza do braço armado do Estado para retirar os obstáculos aos interesses de maximização do lucro que a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 representam. É preciso entender que a função da polícia numa sociedade capitalista é a preservação e a defesa do Capital, amalgamada com os outrora “capitães do mato”. O cidadão é mero adereço ideológico de discurso público. Muito embora o disparo possa ser feito à esmo, a bala tem uma direção certa: aqueles para os quais não existe acesso à justiça, à saúde e educação pública de qualidade razoável, à moradia decente e infraestrutura básica como transporte, lazer e esporte, entre outros. Muito improvavelmente a bala atingiria um garoto branco dos edifícios de luxo e condomínios fechados de Salvador. A bala disparada não é simplesmente uma relação de dedo com gatilho, mas de idéias e crenças com atitudes e convicções construídas social e historicamente. Afirmar, portanto, que a bala foi disparada à esmo é BA[LE]LA.
Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
éís aí novamente DaMatta com o rito "sabe com quem está falando?"...para alguns um mero ditado popular estreitamente oral e explicíto,para mim transcede a qualquer uma dessas superficialidades,isto porque,o valor denotativo do rito(ou como bem sabe Joselito,do discurso)apenas revela de forma mistificadora,uma das tantas teias(rsrssr...simbologia de Jô)estruturais de classificação ,poder e hierarquia.
ResponderExcluir"Quem é aquele sujeito atrás da farda? Ninguém? Aquele que era geralmente desaparece quando coloca aquela farda."
E é através desta perspectiva que se legitimam as condições de multifacetismo humano(apesar de muitas dessas facetas não se revelarem tão humanas assim)...logo caro professor não se preucupe comigo...embora seja negra e pobre,minha meta de desenvolvimento pessoal emanada dessa logica hegemônica de ascensão social vertical( e só sugere prazer se for realmente vertical,neste drama de vaidades)eu serei(projeção socio-historica de idealização)uma profissional bem sucedidada(quantativamnte onde o ter se sobrepõe ao ser,a aparência sobre a essência)...assim se desdobram elementos compensatórios e relativizadores(novamente DaMatta) para nossa existência...
E são interminavéis as exemplificações de influência desses eixos de seleção social...o caso do garoto de Salvador (dentre minhares)que se dissolvem na injustiça e no anonimato(DaMatta)...
Pra concluir devo confessr, não me agrada a relevância que o senhor imputa ao filme Tropa de Elite(1,2,3,4???)...ainda mais depois dos evidentes protagonismos oscilantes entre o real e o imagínario da policía(ou mais especificamente do BOPE como policía-mór) na operação dos morros cariocas,a propagação pela mídia de um BOPE revestido de heroísmo de quinta...a carga ideologica do Capitão Nascimento(figura posta em relevo pelo senhor)da existência de um BOPE incorruptivél que em meio a tiros e sangue creio ser uma visão demasiadamente romântica...
Grande professor!!!
ResponderExcluirEu estou com o referido livro de João Ubaldo para ler faz aguns dias... Ainda não o li por falta de tempo, mas depois dessas suas considerações tão instigantes sobre a obra, vou começar a leitura hoje mesmo!
No mais, se este texto fosse um documento oficial, eu assinaria embaixo!!
Abraço!
Lito seu texto me orgulha, me deixa triste, me deixa reflexivamente sem ação. Mas também me faz querer continuar educando e formando professores e professoras neste nosso pais. A educação é nosso dispositivo (meio material e intelectual)de luta, que como dizia o mestre Paulo Freire, denuncia e anuncia. Vamos anunciar mais!!!!
ResponderExcluirbeijos da amiga
Méa