Este texto foi escrito quando eu era estudante do 6° semestre de Pedagogia pela Faculdade de Educação da Universidade Católica de Salvador, lá pelo passado de 1996-1997. O manuscrito foi reencontrado por Conceição Aquino, amiga de muitos anos, de décadas, quando remexia seu passado de papel em alguma espécie de baú. As três folhas de caderno estão amarelecidas e o escrito a lápis parece adoentado em sua aparência física, embora a saúde do texto continue intacta. Apesar das expressões de ontem, acima utilizadas, pareceu-me que o texto continua de hoje, ainda falando para o meu tempo e surpreendendo-me, pois os temas nele tratados são bem parecidos com o que hoje ainda me angustia, como a permanência de certas lideranças à frente do sindicato. Algumas afirmações polêmicas e generalizantes, embora eu não mais concorde, prefiro deixa-las errando e errantes no texto, para que eu sempre seja lembrado de meu processo lento de humanização e, claro, me divirta comigo mesmo, afinal, eu também mereço.
Obrigado à gentileza de Conceição por não descartar o escrito e me avisar de sua existência em algum lugar do passado e do presente. O manuscrito ficará comigo para ser lido e divertido algumas décadas à frente.
EU TE ODEIO PLATÃO!
“Para aqueles homens, habitantes eternos da caverna, os sons vinham das sombras que o fundo mostrava. Não sabiam que eram prisioneiros. Consideravam natural aquelas correntes.” (BENTANCUR, 1994). Assim Platão vai descrevendo a situação dos homens que habitavam a caverna. Inicio assim minha reflexão sobre a Faculdade de Educação da Universidade Católica do Salvador. É reflexão crítica. Crítica movida por profundo amor. Amo o saber, mas o concebo como serviço, contrariando a visão mercadológica do conhecimento. Crítico as lideranças institucionais, não as pessoas. Ficaria contente se este humilde comentário fosse elemento de reflexão e ação.
Ultimamente ando tendo a impressão, cada vez mais forte, que a Faculdade de Educação da UCSAL é uma caverna escura, onde estudantes, professores, funcionários e administradores vivem resignados, por não terem a capacidade de imaginar possibilidades, fora da caverna, de organização melhor e diferente para a construção do conhecimento.
Todo o cenário se prepara para viver a aventura, mas a universidade, acomodada, reage contra. Limita sua luta à repetição, à defesa dos currículos, ao monopólio do diploma, à reinvindicação de direitos e não raro privilégios, ao cumprimento de normas e planos de carreira. (BUARQUE, 1994)
Ouço alguns professores reclamarem da apatia dos estudantes quanto às disciplinas do Curso de Pedagogia. A reclamação tem procedência. De fato, aparentemente poucos são aqueles que vibram com o saber pedagógico; poucos também os que têm ideias novas sobre nossa faculdade. A maioria anda absorta, sem se dar conta da crise a que estamos submetidos e da responsabilidade da instituição universitária no processo transitório deste final de milênio. “Talvez seja a prova de não desejarem instintivamente coisas que já não respondem aos propósitos sociais nem às razões existenciais de fazer avançar o conhecimento.” (BUARQUE, 1994). Os professores esquecem de pensar o aspecto político filosófico do Curso, muitas vezes reduzindo-o aos aspectos técnicos-pedagógicos. O saber está submetido ao poder. Aqui na Bahia, coronelística, um poder sem parâmetros éticos, onde a corrupção alimenta o poder em si mesmo, em detrimento da coletividade, carente e excluída. Aí já reside boa pista de que estamos encavernados.
Do movimento estudantil não tenho visão alentadora, no momento. Parodiando grande compositor nacional diria que “(...) nossos líderes ainda são os mesmos e as aparências não enganam mais.” Quando entrei nesta faculdade em 1993, alguns DA’s (Diretórios Acadêmicos) já eram liderados pelas mesmas pessoas que agora estão carreiristas, atrelados às diretrizes de um ou outro partido político. Alguns diretórios tornaram-se verdadeiros comitês partidários, em detrimento do que nos é prioritário: a política pedagógica. A reação dos estudantes vem em forma de apatia às manifestações e articulações político-culturais. Caso o diretório acadêmico fosse uma tela eu preferiria um mosaico. Tenho a impressão que vou sair da faculdade e os atuais “líderes estudantis” vão continuar aí. Mais um indício de que somos habitantes da caverna.
Os professores estão acorrentados num regime horista de aulas e, restritos à graduação, imaginam o que poderia haver lá fora da caverna. A realidade da periferia é tão distante dos textos filosóficos, psicológicos, didáticos, epistemológicos, metodológicos e estatísticos. Creio que muitos já se esqueceram das quatro perguntas kantianas: “Que posso saber?”; “Que devo fazer?”; “Que me cabe esperar?”; “Que é o homem?”. Na Bahia não há um espaço coletivo de encontro e reflexão para os acadêmicos. Os professores de cada faculdade e de cada universidade parecem restritos a feudos, cada um com a sua lei e o seu Senhor Feudal. Ainda não pude ver alguns professores divergirem, com sinceridade e argumentos claros. Todo ano o reitor vem, dá a sua mensagem “natalina” e nenhum docente se contrapõe corajosamente, com respeito, mas com firmeza. Muitas discordâncias se restringem às salas de aulas e corredores da Faculdade de Educação da Universidade Católica do Salvador.
No campo da criação do saber é raro quando algum docente lança um livro, faz uma palestra, propõe uma mudança relevante. Muitos de nós, discentes, sairemos dessa faculdade de educação para sermos encaixados como “servos” nos feudos de escolas particulares, refletindo a mercadologização do pensamento, atendendo aos apelos neoliberais do lucro famigerado e do individualismo exacerbado.
Reclama-se de infraestrutura da faculdade e, com razão. Porém há espaços! Espaços-de-fazer que jamais existirão se não forem criados. Há um pátio subutilizado, onde poderíamos tratar das nossas questões mais prioritárias, como: avaliação, currículos, didática, escola pública, escola privada educação sexual nas séries do primeiro grau, que o bispo primaz foi contrário, entre outras questões que poderiam ser debatidas entre os estudantes dos vários semestres dos dois turnos, junto aos professores. Poderíamos criar grupos de trabalho para aprofundarmos a reflexão sobre a Nova LDB (recém criada na época deste escrito), sobre a alfabetização, sobre os transtornos exigidos pela educação baseada nos novos paradigmas do nosso tempo. Poderíamos. Mas estamos na caverna.
Seus companheiros estavam na mesma situação que ele quando nem sonhava livrar-se das correntes. Nada queriam, nada pediam, nada temiam. Temeriam talvez uma transformação, uma transformação tão profunda quanto a que ele pretendia propor. (BENTANCUR, 1994).
Estamos na caverna. Platão nunca foi tão hodierno e tão odioso. Seu mito denuncia nossa escravidão contemporânea. Diante de uma realidade emergente que se configura e nos desfigura –globalização, robótica, realidade virtual, desenvolvimento espantoso da biogenética, microeletrônica, incremento da violência, aumento inexorável do desemprego estrutural, da marginalização, crise de várias instituições, etc. – nós estamos “a ver navios”, ou melhor: sombras projetadas nas paredes da caverna, sombra dos eventos que acontecem “lá fora” e que nós, por estarmos acorrentados, não podemos participar deles, resignando-nos na imaginação do que sejam aquelas sombras na parede.
Joselito Manoel de Jesus, 6.° semestre de Pedagogia noturno da Faculdade de Educação da Universidade Católica do Salvador e atualmente Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.
Com o auxílio de
BENTANCUR, Paulo. Os homens da caverna. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994.
BUARQUE, Cristovam. A aventura da universidade. São Paulo: UNESP/Paz e Terra, 1994.
BUBER, Martin. ¿Que es el hombre? México, D.F. Fondo de Cultura Económica, 1994.
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