domingo, 15 de janeiro de 2012

A DIDÁTICA DA MARÉ E A ESCOLA DA MARESIA

Dia 13 último de janeiro deste ano que se inicia, estava com Marquinhos, Zezé e Wiliam, entre outras pessoas, jovens, adultos e gente já pisando na fronteira da terceira idade, para conhecer e auxiliar no que pudesse na Escola das Águas, a ser criada para os pescadores. Tivemos a importante assessoria de Celi Taffarel da UFBA, que foi fazendo uma mediação excelente, partindo do universo simbólico que a experiência de quem trabalha no mar constrói e adentrando na maré simbólica da educação, da economia e da política. E estávamos nós, do meio popular escutando aquelas lições e ajudando-as a serem estruturadas, com a boa didática que Celi acionava em sua experiência docente. Fomos tratando das esperanças, necessidades e perigos que vão aparecendo conforme vamos pensando numa escola que tenha a relação do trabalho com a água como princípio fundante da formação de “subjetividades rebeldes”, comprometidas com uma aprendizagem que vise a transformação das relações pautadas pelo capitalismo, em relações pautadas pela solidariedade. Por se negar a colaborar para a formação de consumidores ávidos por produtos e serviços cada vez mais descartáveis, por se negar a formar “subjetividades conformistas”, que andam curvadas diante do peso mercantil que o capitalismo impõe ao viver, é que Marquinhos, Wiliam e Zezé, entre outras pessoas – que estão convivendo com pescadores e marisqueiras – se uniram para elaborar uma outra escola. Uma escola comprometida com a ruptura desse ethos capitalista, do hedonismo do consumo e se aventuram agora, entre outras muitas aventuras, a construir essa escola de gente que percebe a vida através da coletividade unida organicamente em torno de princípios solidários e relações humanas pautadas em valores e posicionamentos políticos que conduzam à emancipação humana em sua plenitude.

Celi ia expondo didaticamente o tema/problema e a gente ia participando da construção simbólica sistematizada desse precioso conhecimento, buscado como necessidade e não como obrigação. Numa dessas participações Marquinhos falou de uma cena que participou ao dormir na casa de uma marisqueira e pescadora. Ao amanhecer os familiares começaram a aprontar as coisas, preparar e separar os instrumentos a serem usados na lida diária. Nisso, a filha da marisqueira começou a choramingar, manifestando seu desejo de ir para a maré com os demais. A mãe disse-lhe que ela precisava ir para a escola, mas a criança se mantinha irredutível em seu desejo. Marquinhos revelou que ficou um pouco chateado com aquela menina naquele momento e com a atitude titubeante da mãe. Foi, segundo ele, mais de uma hora de lenga lenga. A escola era importante! Era preciso que aquela menina estivesse lá, na instituição apropriada para a educação sistemática de seres humanos. Mas a mãe terminou cedendo e a menina foi com eles e elas para a maré. Marquinhos ficou pensando sobre aquele fato. A menina dominou a mãe. Ato pouco educativo. Quando uma criança domina os seus pais, exercendo sistematicamente a birra e o chororô de araque, há uma inversão perigosa que pode acabar na construção de uma subjetividade individualista e mesquinha, ou até mesmo delinquente, quando seus desejos não forem satisfeitos de imediato. De todo modo, Marquinhos ficou pensando: – O que a maré tem que a escola não tem? Por que a menina não sente desejo de estar aprendendo coisas novas e interessantes com seus coleguinhas, orientados por um professor ou uma professora inteligente, preparada, agradável e que lhes desperte a curiosidade?

A reflexão de Marquinhos aguçou os meus sentidos e fiquei ruminando os significados de tais inquietações dele, agora minhas também e, quiçá, de outras e outros ali presentes. Tanto é que vou passar um dia ou mais na maré, junto às marisqueiras (os) e pescadores (as) para ver se consigo entender o que a maré tem para essas pessoas. Talvez a escola não tenha uma professora bem preparada, satisfeita com suas condições de trabalho, salário e carreira. Talvez a escola não tenha um projeto político-pedagógico claro, que oriente as ações de todos os envolvidos na tarefa de educar crianças das classes populares e de setores específicos desses. Talvez essa escola não tenha estabelecido relação alguma com a comunidade que a cerca e seus textos, seus livros, sua linguagem, sua metodologia e seu sistema de avaliação seja completamente alheio às necessidades e interesses intelectuais das crianças, jovens e adultos que estão em seu entorno.

Provavelmente essa escola não tem magia, não tem segredos, nem mistérios a serem explorados pela curiosidade que anseia investigar, constatar, descobrir, compreender e agir. Talvez essa escola esteja morta para a criança, porque ela não rema, ela não rima, ela não ri, ela não ensina a nadar, a flutuar sobre as águas, a "pegar jacaré", essa escola não tem balanço, não ensina a mergulhar à procura da beleza que o oceano tem; essa escola não ensina que as palavras também têm balanço, têm marés, têm funduras pedindo profundos mergulhos, não ensina que os textos têm uma flora marítima e correntes de pensamento que apanham os leitores e os entregam para rumos desconhecidos e encantadores; Não ensina sobre os ventos reflexivos que sopram de outros mares e terminam influenciando nas marés das nossas praias intelectuais; ela não ensina com a vida, mas, de forma atabalhoada, “para a vida”. Uma vida futura que termina sendo pretérita; uma vida moderna que termina sendo antiquada e insignificante; uma vida “para ser gente” que termina formando sombras e sobras de humanos, subjetividades fantasmagóricas de ação diante de um sistema que exige obediência, silêncio, ordem e organização, conforme os postulados da propriedade privada e da acumulação de riquezas, em detrimento do trabalho e do trabalhador.

A mãe não está certa ao ceder aos caprichos da filha. Não. Agiu errado. A menina repetirá o gesto toda vez que assim o desejar. Entretanto, aprendi com Arlete Malta que todo espaço é um espaço pedagógico quando há duas ou mais pessoas ensinando e aprendendo. Quando a escola retira a criança da maré, e, pior, quando a escola separa e exclui a maré e sua força semântica de sua construção humana, ela retira de si mesma, o poder de educar que emerge do contexto imediato e familiar onde o ser humano pronuncia o mundo e a si mesmo nele. A maré pode ser, e muitas vezes o é, um espaço didático e pedagógico, onde mãe, filha, irmãos e demais parentes ensinam coisas, investigam mistérios, contam suas histórias e partilham a vida que significa na maré para todos e todas que nela e por ela sobrevivem.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel. 

Em tempo: Na coluna "Tempo Presente", de hoje, 16/01/2012, está escrito que:
A cantora Margareth Menezes prometeu estudar as leis aprovadas na Câmara, mais especificamente a de áreas de proteção cultural e paisagística, que, entre outras medidas, na Ilha dos Frades, determina o cercamento das praias e fim da atividade marisqueira. "Quantos mares uma gaivota irá cruzar para poder descansar na areia?" 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

joselitojoze@gmail.com