segunda-feira, 9 de julho de 2012

Nave interior dos homens e das mulheres simples


Outro dia Dilma Venutto, amiga minha e de minha esposa, referiu-se à música “Nave Interior”, de Zé Ramalho. Li a letra e ouvi a música e achei a reflexão excelente! Num dos trechos Ramalho afirma que:

“Respirar, navegar é coisíssima igual
O ar que ri é o fogo da nau
No vale profundo que geme em nós
Reside o casulo do cavalo alado”

Respirar, trabalhar, comer, trepar, produzir um artigo científico – muitas vezes mais para a nossa vaidade do que para contribuir com o avanço do conhecimento – ir à festas, assistir a decisão do campeonato de futebol ou do Grand Prix de vôlei, viajar, ir ao shopping e ao cinema, é coisíssima igual. E a realidade vai se monotizando, automatizando e a gente se robotizando. Nós, como gados, vamos sendo abatidos pela trama estrutural da sociedade, seja ela capitalista, seja socialista, seja uma mediação de ambas. Mas nem tudo está perdido! Segundo Zé Ramalho, em outro trecho da música “Há um vale profundo que geme em nós, aonde reside o casulo do cavalo alado.” E o bom de tudo é que essa força, esse poder insuspeito que trazemos dentro do peito, se encontra

Na rainha-mãe ou no pobre coitado
 
Porque
Ali se espelha a centelha do gás
Se é moça ou rapaz, ancião ou criança
A chama não cansa de dançar a dança

Todos os humanos têm essa centelha que alguns apagam de um jeito bastante estranho: ficam cegos. Uma cegueira construída nas relações sociais em que o poder estigmatiza, porque veem a centelha em seus pares de classe econômica, social e cultural, compartilhando entre si os elogios, os interesses, as observações e as críticas, a maioria dessas de uma pobreza só. O "pobre coitado" tem essa centelha também e pode acendê-la nos momentos e nos lugares mais inesperados e imprevistos, ou melhor ainda: a centelha pode acender sem que o seu portador preveja, planeje. A arte, a poesia, a imaginação criativa e todo a expressão sublime que é possível aos incluídos socialmente é possível também ao “pobre coitado”, ao “sobrante”, ao “homem simples”.Elas estão em Patativa do Assaré, em Luís Gonzaga, em Cora Coralina, em Catulo da Paixão Cerense, em Carlos Drumond de Andrade, em Dona Maria da "Rua do Bode" no Calafate, em Manoel de Barros e Manuel Bandeira, em Carolina de Jesus (Quarto de Despejo), em tantas e tantos que pensaram a sua existência para além da vida ordinária.

Mas esse “sobrantes”, esses “pobres coitados”, esses (as) “homens/mulheres simples”, sofrem as consequências da permanente tentativa de controle dos poderes instituídos, muitas vezes de forma perversa, inclusive por aqueles que têm o discurso da libertação, da emancipação, da revolução a favor do oprimido. As igrejas, por exemplo, com o discurso do divino, do céu e do sagrado contraposto ao diabólico, ao inferno e ao profano, com o sentido de proteger o “frágil fiel” contra as forças do mal, na verdade constrói cárceres, presídios simbólicos que escravizam as pessoas, atormentam os corações dos (as) simples, criando o verdadeiro inferno aqui mesmo, no cotidiano deles (as). O diabo e seus demônios, assim que são criados discursivamente no imaginário dos seres humanos, começa a atormentá-los. José de Souza Martins (2010), em relação a essa realidade, afirma que:

Nessa adversidade, a questão é saber como a História irrompe na vida de todo dia. Como, no tempo miúdo da vida cotidiana, travamos o embate, sem certeza nem clareza, pelas conquistas fundamentais do gênero humano; por aquilo que liberta o homem das múltiplas misérias que o fazem pobre de tudo: de condições adequadas de vida, de tempo para si e para os seus, de liberdade, de imaginação, de prazer no trabalho, de criatividade, de alegria e de festa, de compreensão ativa de seu lugar na construção social da realidade. Uma vida em que, além do mais, tudo parece falso e falsificado, até mesmo a esperança, porque só o fastio e o medo parecem autênticos. Na abundância aparente, não estamos realizados – estamos apenas saturados e cansados em face dos poderes que parecem nos privar de uma inteligência histórica do nosso agir cotidiano. (MARTINS, 2010, p.10)

Assim como as igrejas, seus padres, pastores, freiras, obreiras e similares, os economistas, os médicos, gestores e, principalmente, os cientistas e os políticos, também nos prometem o “paraíso”, mas nos oferecem passagens pelo inferno no cotidiano de nossas vidas, tentando controlar nosso comportamento, nossas mentes, nosso modo de sentir, de perceber, de consumir e de viver, criando, assim, sistemas prisionais concretos e simbólicos que nos encarceram, ou tentam nos encarcerar o tempo inteiro. Enfim, “temos medo de ser o que somos ou o que temos podido ser.” (MARTINS, 2010, p.11). E o saudoso, lúcido e no caso do trecho musical abaixo, irônico Raul Seixas chama a nossa atenção...

E você ainda acredita
que é um doutor, padre ou policial
que está contribuindo
com sua parte
para o nosso belo
quadro social...
Mas "[...] no vale profundo que geme em nós reside o casulo do cavalo alado”. Há uma transcendência que caracteriza todos os humanos, simples ou sofisticados. Mas talvez considerem a transcendência como previsão estatística, vencida pela força da mediocridade geral que forma através da ideologia disseminada por seus meios e mensagens. 

Eu, como todos os outros humanos, tenho um vale profundo que geme e nele reside o meu cavalo alado, preparando-se para a possibilidade de cavalgar pelos céus proibidos pela forma como nos organizamos em sociedade e deixamos a hipocrisia e a perversidade tomar conta do nosso tecimento permanente. Desconfio que a única transformação possível em curso só pode se dar no âmago pessoal de cada um, pois, como afirma Martins (2010, p.11):

O que sobrou do que nos tiraram é o que fecunda a nossa espera. Nossas privações são a nossa riqueza e o nosso desafio. Mas, com as ferramentas da cópia nada construiremos e nada compreenderemos.

Precisamos ler. Ler bem mais. Precisamos refletir, refletir bem mais. Olhar uns para os outros e celebrar num grande baile, um carnaval popular de rua que chame todos e todas para a dança, para o frevo político e cultural de emancipação individual e coletiva pois “a chama não cansa de dançar a dança.”

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel, com o auxílio de:

MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala, 2. Ed. rev. e ampl. São Paulo: Contexto, 2010.
Raul Seixas. Ouro de tolo.
Zé Ramalho. Nave interior.

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