De vez em quando algum carro à minha frente no trânsito infernal de
Salvador passa com um adesivo com a seguinte frase: “Foi Deus quem me deu”.
Desde a primeira vez alguma coisa nesta afirmação me incomodou. Mas não dei
importância, afinal, a vida nos consome e a gente precisa correr para cumprir
todas as exigências com suas datas e seus horários. Agora mesmo sinto-me um
pouco culpado: estou deixando de fazer alguma coisa mais importante para
escrever este texto. Mas o incômodo permanece e reaviva, pois ontem mesmo
passou mais um carro por mim com a mesma frase. E o que tem de problemático
nisso? Bem, talvez o fato de que Deus não dá carro a ninguém, porque ele não é
dono de concessionária e porque o carro, símbolo do sucesso de consumo das
classes emergentes, em nada representa a experiência e a presença de Deus em
nossas vidas.
Deus não dá carro e carro não é sinal da presença de Deus. Deus, para
quem acredita, já nos deu algo muito maior: a vida. E o fato de vivermos já é
um sinal mais do que claro de sua presença em nós. Viver, aprender, conhecer o
mundo, imaginar futuros, compartilhar esperanças e memórias, acalentar sonhos, apaixonar-se,
amar, criar e transformar feiúra em beleza, isso tudo já nos aponta a presença
divina no ser humano e na natureza. Em outro texto falei sobre a felicidade,
amparando-me na música que diz que “felicidade é uma cidade pequenina, uma
casinha, uma colina, qualquer lugar que se ilumina quando a gente quer amar”.
Outra cantiga, como um mantra, cantada pelos monges de Taizé, assim reza:
Onde reina o amor
fraterno amor
onde reina o amor
Deus aí está.
Então, para saber da presença de Deus, basta amar, mesmo que seja
pegando ônibus, numa motocicleta ou passeando no metrô de Salvador da nossa
imaginação, que talvez nunca venha a trafegar. Numa casinha humilde, onde a
taipa ainda sustenta um passado recente e uma luz precária indica presença
humana, Deus está presente.
Mas a lógica do deus que dá carro a alguns “escolhidos” é outra. Em
nossa sociedade baiana e brasileira, onde uma classe social economicamente
frágil começa a ter possibilidade de adquirir bens considerados símbolos de
sucesso, como é o caso do carro – deixando essa classe social ainda mais frágil
economicamente – este bem de consumo é eleito como representação simbólica de
que a pessoa que o possui é um “abençoado”. Talvez o raciocínio seja este: como
o carro é um bem de consumo mais caro e, portanto, não é qualquer um que pode
adquiri-lo, o fato de que o sujeito tenha conseguido é sinal de que essa pessoa
teve uma melhoria concreta em sua capacidade de compra, devido aos seus
esforços pessoais e à benção de Deus e, portanto, é um vencedor. É um
raciocínio bem antigo, desde antes das burrinhas enfeitadas
dos caixeiros viajantes. Há também outro raciocínio em relação a
isso. Como a compra do automóvel é algo custoso e difícil para as classes
sociais mais pobres, perdê-lo por roubo ou qualquer outra forma seria um
prejuízo muito grande. Por isso ninguém vai tirá-lo, pois o que Deus dá o homem
não tira. Deus está no seguro, na direção, no comando do meu “1.0” e ninguém
ouse subtraí-lo de mim, senão sofrerá o castigo divino e esse, meu camarada,
tarda, mas não falha. Outro raciocínio é a da conquista de um sonho.
Acalentamos em nossa alma o sonho de possuirmos o que julgamos valioso. E esse
sonho nos mobiliza para a conquista. Enfrentamos dificuldades, apertamos o
orçamento, trabalhamos mais um pouco e, com muita fé, conseguimos transformar o
sonho em realidade. Legítimo. Desde que o sonho não seja tão pequeno, tão
mesquinho, tão individualista, onde, de cinco lugares, geralmente apenas um é
ocupado.
Por esse pensamento de que o carro significa a benção de Deus, Salvador
deve ser uma cidade à beira da santidade, pois está entupida de “abençoados”,
sendo uma das cidades mais contempladas com os regalos de Deus. Mas, no momento
que o “abençoado” adquire a benção de quatro rodas, quatro portas, direção
hidráulica, vidros e travas elétricas, alarme e ar condicionado, o diabo vem e
engarrafa Salvador. O Vaticano deveria vir aqui constatar esse fenômeno
religioso que aparece na estranha romaria de todos os dias pelas ruas da
cidade. Deus abençoa e o "cão" amaldiçoa, deus dá e o “cramunhão”,
como não pode tirar, pois o que deus dá nem o “coisa ruim” tira, ele atrapalha,
atrasa, bota gosto ruim.
E ficamos engarrafados na encruzilhada que fica entre a
"benção" e a "maldição", "batalha de fé" vista e
experimentada todos os dias entre a Paralela e a BR 324; em Brotas, na Avenida
San Martin e na ACM, na Tancredo Neves e na Rótula do Abacaxi, na Sete Portas e
na Manoel Dias da Silva. Essa benção, “abençoados”, não é de Deus. Talvez seja
o queijo que o diabo botou na ratoeira do engarrafamento que nos prende
financeiramente em trocentas parcelas
com bancos e, fisicamente, por todas as ruas de Salvador.
Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, da Ana
Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.
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