segunda-feira, 28 de novembro de 2016

QUANDO SOMOS ESTUDANTES E PROFESSORES NÃO PODEMOS NOS ESQUECER/ OU/ SOBRE A AVALIAÇÃO

Como falei para vocês em sala de aula, avaliação, para mim, não é um instrumento árido, classificatório, seletivo e excludente. Se assim o fosse eu não estaria educando, mas adestrando, ensinando a subserviência e contribuindo enormemente para a apatia intelectual de vocês, posto que estaria recriando, através da prática avaliativa, as condições que reproduzem os valores capitalistas que hierarquizam pessoas, grupos, comunidades e instituições. Estaria fortalecendo a competitividade darwiniana que o capitalismo selvagem propõe como modelo ideal para pautar as relações humanas, o que é deprimente. Nesse modelo, convencer tem o sentido de vencer o/a outro/a, derrotá-lo/a, fenômeno no qual o/a melhor se estabelece em sua “glória” e “apogeu” e, do/a segundo/a colocado/a em diante, resta o banimento para as periferias da existência.

Contudo, recusando esse modus vivendi competitivo, podemos, mesmo num simples gesto avaliativo, redirecionarmos, revolucionariamente, o sentido de “convencer”, na perspectiva de vencer com o/a outro/a, recuperando, por dentro desse singelo ato educativo que é a avaliação educacional, o gesto político da solidariedade que nos aproxima humildemente uns/umas dos/as outros/as, no reconhecimento de nossa condição de classe, de raça, de gênero e de cultura, afinal, somos pobres, somos negros, indígenas e mestiços, somos aqueles/as que sofrem as consequências perniciosas desse modo de organização e estruturação econômica e social pelos poderes dominantes. E o principal: não podemos nos esquecer disso quando ocupamos a condição de sujeitos institucionais mediados pela escola ou pela universidade. Sendo professores/as e estudantes não podemos nos esquecer de que somos pobres, não podemos esquecer de que somos negros, mestiços e indígenas; não podemos apagar da memória o que a história nos engendrou a partir de nossas lutas, sacrifícios e conquistas em nome da recuperação da humanidade usurpada por transações escusas e violentas das classes dominantes de nosso país.

Através da avaliação educacional podemos combater toda fonte de desigualdade que persiste, também, através de seus efeitos ideológicos nocivos para nós, das classes populares. Não há, desse modo, nem o/a “estudante-dez”, nem o/a “estudante-zero”, nem uma hierarquia que se formaria nesse entremeio, partindo dos/as “mais inteligentes” aos/às “menos inteligentes” identificados/as por uma nota, ou por um conjunto de notas apenas. Há, como diria Shulman (1986, p.4-14)[1], sujeitos aprendentes, aqueles/as que aprendem como autores/as de sua própria aprendizagem, em um trabalho coletivo e participado. Esses/as aprendentes, incluindo-se os/as professores/as, formam, assim, uma comunidade no qual o conhecimento é compartilhado entre si e com outras pessoas, grupos, comunidades e instituições, ampliando a cognição, desenvolvendo raciocínios em múltiplas direções, nas quais os conhecimentos, saberes e ignorâncias, através de raciocínios reconhecidos e legitimados pela comunidade de aprendentes que produz identidades unidas por laços históricos, propiciam o desenvolvimento de inteligências singulares cujas curiosidades vão se epistemologizando progressivamente no processo educativo. 

A avaliação é, portanto, um processo que compõe a aula e que tem sérios desdobramentos políticos e ideológicos, que, por sua vez, podem reforçar um modo de pensar baseado em princípios capitalistas excludentes, ou, por outro lado, pode ser um gesto pedagógico explícito de solidariedade, colaboração e humildade, que cause a ruptura com velhas formas de classificação, selecionamento e hierarquização de estudantes e professores/as em processo de formação humana e profissional.

Joselito da Nair, do Zé, de Ana Lúcia, da Professora Stela Rodrigues, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.    




[1] SHULMAN. Those Who understand: knowledge, growth in teaching. In Educational Reserch. V. 15, nº 2, 1986. 
Traduzindo de modo livre: Aqueles que entendem: conhecimento, crescimento no ensino. In Pesquisa Educacional

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Levitação Feminina

Elas flutuam como se levitassem; 
elas correm como se voassem; 
elas lutam como se amassem.

Não, não. Errei.
Elas levitam como se lutassem;
elas amam como se voassem;
elas correm como se flutuassem.

Huum. Não, ainda não.
Elas lutam como se flutuassem;
elas correm como se levitassem;
elas amam como se lutassem.

Não, não.
Elas correm como se flutuassem;
elas voam como se lutassem;
elas levitam como se amassem.

Não. Pera aê [...]
Joselito da Nair, da Itajacira, da Ana, das colegas da Uneb, das colegas de corrida e das mulheres empoderadas dessa vida

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

ESVAZIAMENTO

Abro meus olhos
e não entendo nada do que vejo
Não adianta olhar demoradamente,
Não disponho de ferramentas de compreensão.

Angústia de ignorância,
não saber o que acontece,
meu ser padece
meu ser adoece.

A roda girou a minha direção.
Eu ia naquela,
agora tô na banguela,
lá pro fundo
onde antes era ascensão.

Olho as pessoas, os raros amigos, os colegas, os estudantes,
a família, as que passam transeuntes.
Não consigo entender,
não sei mais por onde começar
a encontrá-las.

As informações multiplicaram
As imagens, as mensagens, os caminhos.
E eu aqui, paralisado na angústia
sem seguir, inseguro, indo a ir
sem destino, nem futuro.
tantas palavras
sem nada,
sem nada.

Todos estão passando, passeando transeuntes,
todas as pessoas parecem ausentes do mundo.
Parecem fugindo da guerra futura,
parece uma grande loucura migrante
fugindo de um medo mais cedo.

Estamos fugindo da Síria,
da bomba, do tráfico,
marítimo, de órgãos, de armas,
de mulheres, de peles, de dólares.
Estamos fugindo da bancada,
da bala,
do boi,
da bíblia.
Fugindo pra onde?
Aonde é que se esconde?
Nem dentro de mim há refúgio,
minha paz, meu rapaz, lá se foi
nunca mais.

Na igreja?
Não há!
No trabalho?
Nem pensar.
No lar?
Quem sabe um instante.
No sindicato?
Nem que se concorde
com tudo,
nem que entre e saia mudo,
unindo-se à voz única
uníssono, alienado, sem culpa.

Joselito M. de Jesus, professor, poeta, perdido. 

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A MAIORIA AUSENTE

Se alguém perguntasse sobre o poder de decisão que têm aqueles e aquelas que faltam às assembleias do nosso sindicato docente, a ADUNEB, alguns/as responderão apressadamente: nenhum. A ausência é o gesto político claro do abandono de sua capacidade de decisão e, assim, o ausente, ou melhor, os ausentes, abrem mão de seu poder e acatam, aceitando ou não, as decisões tomadas pelos presentes, decisões que afetarão a todos/as. Os ausentes seriam, nesse modo de ver, um sujeito político frágil, menor, mais propício a ser atingido ideologicamente pelas tramas simbólicas do poder hegemônico. Essa é a lógica formal sustentada pelos nossos princípios rarefeitos de justiça, de solidariedade e de participação política.
Entretanto, parece-me que, nesse contexto político, econômico, social e ideológico no qual nos encontramos, a maioria ausente está definindo os rumos de nossa luta política, tanto no âmbito sindical, quanto no âmbito dos rumos da gestão institucional de nossa Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e demais universidades estaduais baianas (Uebas) e também de nossa prática pedagógica, geralmente solitária e pouco compartilhada. O esvaziamento identificado em nossas assembleias e em nossos demais atos políticos, reduzindo consideravelmente o seu alcance como fato social relevante, minando nossas forças, abalando nosso núcleo subjetivo profissional e configurando nossas práticas discursivas que produzem seus efeitos políticos e ideológicos, revela que a maioria ausente faz falta. E muita! Faz tanta falta que esta ausência se torna para efeito de nossa ação política, mais presente que a presença de uma minoria que se esforça para supri-la, debatendo-se à beira do afogamento político, nessa maré ultra conservadora que a história está produzindo e que afeta a todos nós, professores, estudantes e funcionários, presentes e ausentes.
Orlandi (2002, 2007) nos faz pensar que no silêncio estão contidos todos os sentidos e que a palavra é uma forma de administração e controle dos sentidos, tentando, inutilmente, “evitar a fuga dos sentidos” para outro sítio semântico desfavorável ao sujeito enunciador e, consequentemente, à formação ideológica que ele compõe, mesmo quando não sabe disso. O locutor tenta, através do seu processo enunciativo, impedir que o sentido outro produza efeitos que desloquem o discurso para o campo semântico contrário ao seu interesse. Nesse sentido, ele fala para silenciar, não para explicar, pois o discurso é aquilo pelo qual se luta, um campo de batalha, do qual nos falava Foucault (1999) em sua “ordem do discurso”. Enuncia-se, assim, para não deixar que o discurso outro apareça na arena discursiva, para que não mude a direção do ato político através de formações ideológicas outras que manifestem na sua presença, a presença de atores constituídos historicamente que também lutam pelos discursos que tecem em suas práticas.
Nesse sentido, a maioria ausente tem uma presença importante em nossas arenas discursivas, em nosso contexto social imediato no qual a história se desenrola. E o seu silêncio fala. Múltiplos sentidos podem, assim, ser interpretados nessa minha prática discursiva que deseja administrar o sentido na direção do efeito de um maior envolvimento e uma participação ativa dessa maioria de colegas professores/as, estudantes e funcionários/as, deslocando sua ausência perturbadora para uma presença fortalecida pelo pertencimento solidário a uma classe profissional que enfrenta com convicção as ameaças do conservadorismo arcaico que nos desafia à luta. Precisamos entender esse sujeito fugidio que constitui a maioria ausente a fim de encontrá-lo na interlocução constituinte entre eu e o outro na construção dessa ponte necessária para o fortalecimento do sujeito sindical que representa e reapresenta a todas e a todos. E há uma, além de tantas outras, forma de entendê-lo: envidar esforços para trazê-lo à arena discursiva na qual o mesmo se posicione na interlocução necessária.
A maioria ausente talvez esteja nos falando numa formação imaginária na qual o sindicato ainda pratique discursos cujos sentidos estejam tão esvaziados que não mais afetam suas esperanças, desejos, necessidades e interesses, culminando na imobilização confortável dessa maioria, diante dos desafios que temos em nossa situação social e política imediata e em nosso contexto histórico amplo, no qual o conservadorismo arcaico pretende colocar num canto esquecido da história sujeitos que mal apareceram no cenário social, político, cultural e econômico contemporâneo, a maioria das classes populares e dos movimentos sociais organizados. Um colega, em tom irônico bem humorado, comentou comigo, em voz baixa, que quando ele vem a uma assembleia sindical parece não ter saído do século XIX. Parece que todos/as que ocupam a tribuna têm de falar os mesmos e tão moribundos enunciados, num “avante companheiros/as”, "camaradas" ou outro sujeito do gênero, para interlocutores ausentes que não são companheiros/as, muito menos "camaradas", que não sabem para onde avançar, nem se sentem tocados para posicionarem-se do “lado dos bons” e rumo à luta pela sua dignidade profissional docente.
Convivemos numa universidade na qual os/as professores/as da pós-graduação parecem não se envolver com o destino político, ideológico e econômico da instituição. Parece-me que eles e elas são “superiores” aos demais colegas, tendo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) como mediadora e condutora principal de seus interesses e necessidades imediatas. Com raras exceções, esse sujeito institucional que vai se constituindo historicamente num processo de apartheid dos demais membros de sua categoria profissional, disputando, na vaidade de sua produções anuais, o ápice do status quo reservado aos eleitos pela academia. Mesmo reconhecendo a importância do 2.° doutorado para o reconhecimento da Uneb pelo Ministério da Educação (MEC) e do importante trabalho intelectual produzido no âmbito dos mestrados e doutorado já existente, meu questionamento não é do doutorado nem dos mestrados, mas do modo como ele reproduz a hierarquia social sem fazer-se a autocrítica necessária.  
A maioria ausente talvez seja sempre assim, ausente, embora nunca tenha sido percebida sua ação inconteste e perniciosa na falta de ação que a caracteriza, sinalizando para nossos algozes interlocutores, o quanto a vontade geral de uma classe profissional não está nem aí para políticas públicas que vão prejudicar milhares de trabalhadores, mulheres, homens e crianças, atirando-as de volta para o passado sombrio de uma nação colonizada pelo privilégio, pela concentração estúpida de renda, pelos preconceitos de classe, de gênero, de raça, de região, de religião, de pele. Em nossa manifestação em frente à Assembleia Legislativa da Bahia (ALBA), o governo viu o reduzido número de professores/as, estudantes e funcionários/as, que não deu nem para fazer a passeata até a frente da Secretaria Estadual de Educação (SEC), dispersando-se dali mesmo, rumo ao cansativo retorno da reconstrução do movimento, este também cansado. A maioria expressou-se em sua produtiva ausência no vácuo daquela presença pequena e aguerrida, mas insuficiente para que seu discurso tivesse eco nas estruturas de poder do estado, porque a ausência enunciou, numa retórica clara, o sentido de sua falta, produzindo efeitos danosos para a luta sindical neste momento tão difícil de nosso país.     

Joselito M. de Jesus, professor sem doutorado, mas acima de tudo, professor. Com o auxílio de:
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999.
ORLANDI, Eni, P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 5. ed., Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2002.

________. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 5. ed., Campinas, SP: Pontes Editores, 2007. 

terça-feira, 25 de outubro de 2016

MUNDO SEM SENTIDO


Estou em um momento em que procuro sentidos para a vida. Há uma tristeza enorme manifestando o mundo que percebo. Sinto uma perdição geral. Sinto um desabamento humano produzindo unidades de consumo, prazer, futilidade e delírio tão vazias de sentido que somente o desencanto vai expressando minha desesperança crescente. Há muitas mortes. Assassinatos, crueldades, cinismos, negligências. Mas a morte não me parece tão ruim. A morte e a vida estão de mãos dadas num abraço sem fim. A morte somente acabará quando a vida atingir um fim, porque essa morte sempre tem o seu intérprete. A pior morte de todas é aquela para a qual não há quem a lamente. É a morte da morte. A morte da humanidade. A morte tornou-se banal, e o pior, está sendo cultivada dentro de nós quando o tecido da humanidade se rompe, provocando um rasgo tão grande que talvez seja difícil costurá-lo novamente.


Talvez estejamos cultivando um sentimento nazista em nosso comportamento que não mais se indigna com a injustiça, com tantos assassinatos e mortes prematuras. As pessoas sofrem e caem ao nosso lado, mas não mais nos envolvemos. Criamos uma carapaça em torno dos nossos sentimentos na tentativa de nos proteger, de nos salvar da insanidade geral que toma conta de nosso cotidiano, mas, ao fazermos isso, participamos desse ato geral de indiferença que fulmina a humanidade que talvez ainda nos reste, asfixiados na câmara de gás criada por nós mesmos diante do mal que se avizinha. Estamos todos perdidos: povo, cientistas, comunicadores, religiosos, médicos, policiais, enfermeiros, auxiliares, juízes, professores, etc. Cada qual procura sobreviver nos estacionamentos, nas ruas, no lar, nas instituições de trabalho. Mas talvez estejamos sentindo que a humanidade que ainda nos resta está se perdendo cada vez mais abismo adentro do mundo que estamos criando em nosso processo destrutivo.


Sinto-me tomado por profunda tristeza. Sinto-me cada vez mais impotente. Percebo cada vez mais que o cinismo tomou o lugar da honra, que a mentira prevalece, que a justiça está tomada pelos/as indecentes, que os canalhas estão nos roubando até Deus e seu profundo sentido ontológico, transformando-o numa mercadoria fácil que se pode comprar e vender nas prateleiras de igrejas-mercado. A insatisfação está sendo silenciada pelos ruídos ensurdecedores das promoções, das propagandas, filmes e novelas. O campo da política foi tomado de assalto pelos marginais que nos governam desde que os portugueses começaram a levar nosso ouro para lá. E é justamente nesse campo que uma das maiores batalhas está sendo travada. Esse campo cerrado pelo financiamento criminoso, criando um círculo vicioso que se retroalimenta por um povo ainda frágil, pequeno e mesquinho, que ainda admira o herói, ou mesmo o anti-herói, pré-fabricado pela mídia, renovando o seu poder num congresso cheio de ladrões que levam nosso ouro para lá, as contas fantasmas que alimentam dondocas de olhos esbugalhados no dinheiro surrupiado de nossa nação.



Minha esperança está tão frágil num momento em que precisava estar tão fortalecida. Há uma guerra dentro de mim mesmo. Há explosões, conflitos, bombardeios, trincheiras e mortes. Existiam sujeitos que foram morrendo em meu ser. Sujeitos que, ao morrerem, tiveram de enterrar também as ligações que ainda existiam com certas pessoas, porque a confiança foi se perdendo devido à identificação de suas hipocrisias e cegueiras, e deixamos de partilhar os fios tênues que a história nos concedeu em outro momento da minha vida. Na rigidez fria de suas mortes as pronúncias desses sujeitos, que em mim se extinguiram, foram para o túmulo de um silêncio fúnebre que rejeitam até a cruz, porque não mais sonham com a promessa da ressurreição num mundo que desabou. Aonde renascerei?



Se no mundo não há sinais, olho para o céu, à procura de esperança, como um navegador num oceano imenso no meio da noite. As estrelas tão distantes, brilham indiferentes para um planeta azul que é belo e pacífico para acolher a vida em sua exuberância, mas, cujo mundo criado pelo ser humano se tornou num dos lugares mais agressivos e mortais do universo por causa da gente, os seres desumanos.



Joselito desse mundo.   

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O BICO DA ÁGUIA E O ENCURTAMENTO DA HUMANIDADE BRASILEIRA

Dos animais nada espero além da sua própria animalidade inscrita no âmbito natural. Os animais não são seres políticos e nem éticos e, por isso mesmo, seria grande debilidade mental levar um leão aos tribunais por ter devorado um gnu. Não pode ser classificado como homicídio, porque é da ordem natural da relação presa-predador inscrita na natureza, bem como não se julga a morte de milhões de galinhas, porcos, peixes e bois para alimentação humana. As ordens jurídica e política são da ordem do humano, porque somente os seres humanos, reza a lenda, têm capacidade de decisão, de opção, de escolha e, portanto, somente a eles pode ser imputado a responsabilidade por essa condição.

O único animal que fala é o ser humano, o ser de linguagem. E aí está a sua maior força e a sua maior fraqueza. A linguagem lhe permite simbolizar o mundo, construindo-o permanentemente, nomeando-o e constituindo-se a si próprio. Contudo, a linguagem também lhe cobra um preço pela sua ousadia em ter começado a falar, a decidir e a escolher.
Uso uma expressão trazida por Lacan de que, quando somos colocados na linguagem, pagamos isso como se fosse o pecado original. E carregamos tendo que suportar um pecado que não tem deus que tire. (SOUZA, 2016, p. A6)
Tal como Prometeu, punido por revelar o segredo do fogo aos mortais, com uma águia lhe comendo o fígado todos os dias, assim também o ser humano é punido constantemente pela sua consciência amarrada inevitavelmente à ética, ou não?
Quer dizer, mais que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um “não-eu” se reconhece como “si própria”. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe. E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética se torna inevitável e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma virtude. (FREIRE, 2002, p.20)
O nosso grande problema de cada dia no Brasil de hoje e de desde sua invasão pelos portugueses, é quando a transgressão da ética não mais provoca reflexão, nem mais produz o sentimento de culpa nem de vergonha nos seres de mau caráter, mas revela um cinismo descarado que enoja os que ainda acreditam e defendam a ética como reguladora dos nossos atos. A “águia” não come mais o “fígado” daqueles/as que roubam, dos/as ardilosos/as que enganam utilizando o nome de Deus para enriquecimento, daqueles/as que matam, daqueles/as que mentem, daqueles que causam sofrimento aos outros.

Mas, acredito eu, um problema maior ainda é quando a maioria se cala diante de tanto cinismo, de tanta usurpação, de tanta impunidade. A ordem jurídica não mais consegue pronunciar sua justiça, ao contrário, ela foi montada para beneficiar os ladrões, os assassinos, corruptos, os estelionatários, os negociantes da morte, entre outros. A ordem política brasileira é visivelmente a expressão institucional dessa situação. Ela própria é erguida sobre o financiamento criminoso de campanhas eleitorais; Essa ordem política é também a expressão da representação manipulada dos grandes empresários e investidores brasileiros e mundiais que aqui garantem a reprodução da miséria geral em função de mesquinhas farturas particulares. Mas, quando a maioria se cala, há um consentimento social da malandragem que impede a águia de bicar o fígado geral de nossa nação. A racionalidade humana carrega a possibilidade de transgressão da ética, carrega uma maldade intencional buscando a concentração de poder e renda, destrói a vida dos seus semelhantes em função do seu desejo mesquinho de ser “o dono do pedaço” não se contentando apenas com o seu pedaço, retira o pedacinho do outro, produzindo uma falsa fartura, a que foi produzida pela penúria do próximo, não pela honestidade de seu trabalho.

Do mesmo modo, somos impedidos, por truculentos e astutos silenciamentos, de falar. Um desses silenciamentos começa na redução de nossa capacidade de compreensão, de avaliação, de escolha, enfim, de opção. Com uma educação sofrível as pessoas vão tendo um “encurtamento simbólico” (SOUZA, 2016) e, portanto, a redução de sua capacidade de fala. A criticidade vai cedendo lugar para a aceitação e legitimação passiva de sua condição de roubado, de explorado, de assaltado por um sistema político e jurídico que o reduz à humanidade precária, ou, em casos piores, à desumanização degradante. Eu soube pela diarista que trabalha aqui em casa, Indaiá, que um candidato a reeleição para prefeito de Salvador, era aguardado pela população local como um deus. Ela revelou com espanto que muitos corriam para tocá-lo, para fazer selfie, para abraçá-lo. Fruto desse encurtamento simbólico, muitos seres humanos vão perdendo sua humanidade, sua capacidade de opção, de reflexão e, como desdobramento disso, erguendo ídolos, produzindo mitos e recriando condições para perpetuação de um mundo cheio de seres cuja humanidade vai sendo encurtada desde o seu nascimento.   

E vivemos a era onde os desvalores campeiam. Estamos em ano de eleições para prefeituras e vereadores no Brasil e, nesse momento de minha fala, muitas falas iguais estão sendo pronunciadas ao vento. Dizem elas que os políticos fizeram muito e ainda vão fazer muito mais. Dizem que eles e elas, candidatos atuais, são as melhores pessoas do mundo, os bons maridos e esposas, os bons filhos e filhas, os bons pais e mães, os bons amigos e as boas amigas, principalmente dos/as amigos/as mais pobres e simples. O encurtamento simbólico aceita essa mentira midiática geral. Mas "o louvor não é belo na boca do pecador.” (Eclesiástico, 15,9). Um modo bastante legal de reduzir o encurtamento simbólico sem precisar frequentar uma escola falida é inserir-se no movimento social, é participar de grupos de pessoas que pronunciam o mundo, que partilham significados e constroem sentidos outros sobre esta coisa desordenada que é nosso mundo contemporâneo.
De maneira completamente diferente será experimentada a fome pelos membros de uma coletividade unida por vínculos materiais objetivos (batalhão de soldados, operários reunidos no interior da usina, trabalhadores numa grande propriedade agrícola de tipo capitalista, enfim toda uma classe social desde que nela tenha amadurecido a noção de “classe para si"). Nesse caso, dominarão na atividade mental as tonalidades do protesto ativo e seguro de si mesmo; é aí que se encontra o terreno mais favorável para um desenvolvimento nítido e ideologicamente bem formado de atividade mental. (BAKHTIN, 2002, p. 116)
A nossa inserção em grupos e movimentos que amadurecem noções fundamentais de nossa especificidade no mundo, movimentos negros, movimentos feministas, movimentos gays, associações de moradores, sindicatos, associação de pais e mestres, pastorais sociais das igrejas, grupos religiosos que refletem eticamente sua religiosidade no mundo, entre tantos outros, são espaços em que o simbólico amplia suas possibilidades interpretativas, tendo reflexos importantes na criticidade da humanidade construída em seus espaços e, reduzindo assim, os efeitos nocivos do encurtamento simbólico, do empobrecimento e da proibição da fala, melhorando nossa capacidade de opção política, de decisão eleitoral, de escolha do nosso destino comum. Quem sabe não seremos as águias comendo o figado dos nossos representantes políticos?  

Joselito do Zé, da Nair, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes falando e de Jesus, o Emanuel.

Com o auxílio de:

BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. M. Lahud, Y. F. Vieira. 9. ed. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002.

BÍBLIA SAGRADA. Eclesiástico 15, 9.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 24. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002

SOUZA, Aurélio. A psicanálise convida o suicida a falar. Biaggio Talento. Jornal A Tarde. Salvador, p. A6 11 set. 2016. 

sábado, 9 de julho de 2016

A COMPETÊNCIA PRIVADA DO EMPRESARIADO SERÁ ASSIM TÃO COMPETENTE MESMO?

No jornal A Tarde de hoje o Editorial da página A3 intitulado "Olhar para o passado", apresenta a seguinte informação: "Cerca de 40% das maiores empresas brasileiras listadas na Bolsa de Valores de São Paulo estão muito endividadas, e mais da metade delas em estado 'crítico', com dificuldade de pagar dívidas que somam R$ 420 bilhões. Mesmo levando-se em conta a relativa alta carga tributária que temos - lembrando que proporcionalmente quem mais paga são os mais pobres - a informação acima remete à velha cantilena dos privatistas sobre a alegada incompetência do estado diante da eficiência da iniciativa privada. Assim, penso que os empresários paulistas não são tão eficientes quanto eles propagandeiam, nem a privatização é a saída para a melhoria da qualidade dos serviços públicos oferecidos pelo estado.

Ao produzir uma dívida de 420 bilhões de reais, 40% das maiores, repito, das maiores, empresas desse país, listadas na Bolsa de Valores de São Paulo, não devem ser assim tão competentes quanto afirmam. Que moral esses empresários têm para falar das dívidas do estado? Quando a dívida refere-se ao estado esses mesmos empresários de plantão, de modo arrogante e paulista, acusam o estado de sua incompetência e ineficiência, apontando para a privatização como única saída para a "salvação da nação tupiniquim".

Diferentes sentidos são produzidos por práticas discursivas que remetem ao estado como "pesado", "ineficiente" e "improdutivo", configurando um conjunto ideológico que pode levar milhares de pessoas a acreditar na balela de que os empresários são indivíduos e grupos que, apesar desse estado burocrático e tributador, trabalham com seriedade para produzir, sacrificando seu tempo para a família e os/as amigos/as a fim de aumentar a oferta de emprego e promover o bem-estar geral. É MENTIRA!!! O que identifico é um monte de sanguessugas do estado, que vive reclamando e pedindo benesses, que remete seus lucros para outras plagas e culpam o estado pela ineficiência que é do setor privado.

Ressalto aqui que me refiro aos “grandes” empresários/as. Há, de fato, pequenos empresários que seguram o setor produtivo, gerando emprego, renda e desenvolvimento. A maioria desses, acredito eu, estão de fora da minha crítica, requerendo reconhecimento pelo trabalho e dedicação.

Travamos a luta pela publicização do privado, cada vez mais ampla, enfrentando o processo político-econômico contrário: a privatização do público, conforme nos ensina Norberto Bobbio (1992). Um exemplo aqui na cidade soteropolitana da Bahia foi a aprovação da Lei do Uso e Ordenamento da Ocupação do Solo de Salvador, a LOUOS. Nesta, há uma luta permanente tanto pela privatização do público, quanto pela publicização do privado. Na aprovação do Plano Diretor para a cidade – a Lei 9069/2016, que dispõe sobre o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) – o que eu ouvia e lia muito era o discurso de que a cidade precisava aprovar o seu marco regulatório legal para destravar o investimento. Ora, “destravar o investimento” significa concretamente abrir o caminho para a exploração da cidade pelo capital imobiliário. Os/As pedreiros/as, carpinteiros/as, serventes, ladrilheiros/as, pintores/as, eletricistas, entre outros/as, preparem-se para enriquecer com o seu trabalho. Veremos o espetáculo do crescimento da altura dos novos edifícios à borda da Orla Marítima de Salvador. A competência do setor privado passa pelo tráfico de influência nos gabinetes de decisão do estado, das câmaras de vereadores, assembleias legislativas e pelo Congresso Nacional.

Joselito M. de Jesus, professor do estado. Com o auxílio explícito de:

BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade. Para uma teoria geral da política. 4. ed. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e T
erra, 1992.

sábado, 2 de julho de 2016

FORÇAS OCULTAS

Os estudiosos do espaço sideral descobriram que a gravidade não explica o aumento da velocidade em que o universo continua se expandindo. Então eles criaram uma outra força para explicar essa expansão crescente: a "massa escura". Isso é teoria: cria conceitos articulados sistematicamente que procuram dar uma explicação convincente para os fenômenos visíveis e não compreendidos pela percepção imediata.

Na sociologia também nos deparamos com fenômenos que escapam à nossa percepção e ao nosso entendimento imediato. A maioria de nós, que lemos muito pouco ou quase nada, não consegue compreender as linhas de força que determinam o nosso modo coletivo de conviver em sociedade. Alguns pensam como um caos. Mas não é um caos. É um sistema articulado que gera muitos epifenômenos que parecem produzidos pelo acaso, mas não são. Alguns e algumas afirmam que o ponto de fuga dos epifenômenos é associado ao conceito de capitalismo. E muitos, de fato, o são. A exploração dos seres humanos tendo como critério principal a busca do lucro gera a pobreza em sua maioria e a riqueza, em sua minoria quantitativa. A realidade global não deixou de ser capitalista.

Mas no Brasil, apenas o capitalismo não explica a concentração de renda brutal e outros fenômenos sociológicos a ela associados. Assim, alguns sociólogos brasileiros, entre eles Bernardo Sörj, José de Souza Martins e Josué de Castro, perceberam o que está na raiz do preconceito, da discriminação e da intolerância no Brasil. O primeiro identifica o patrimonialismo no Brasil como uma dessas manifestações amplas que influenciam o nosso modo de buscar o lucro: retirando dinheiro do estado, tratando os trabalhadores como escravos e criando uma realidade de favelas – senzalas modernas – e de apartheid’s gerais que se desdobram no tráfico de drogas, nos inumeráveis roubos, furtos, assaltos, assassinatos e crimes diversos. José de Souza Martins percebe a força de uma modernidade às avessas no Brasil, que associou o arcaico com o avançado, no sentido mais negativo possível para as populações pobres de nosso país.

Essas forças invisíveis, dê o nome que se dê a elas, produzem efeitos nefastos que se percebem na corrupção desenfreada, nos buracos nas estradas, na morte prematura de milhares de pessoas que se despedem da vida na saúde pública abandonada, nos semianalfabetos que chegam à universidade, nos desempregados que entopem as vias de carros e camelôs. Os prédios erguidos na Avenida Paralela, destruindo o que resta da mata atlântica, antes de terem uma base sólida na engenharia civil, têm seus fundamentos no tráfico de influência na prefeitura de Salvador, neste caso no governo João Henrique (por favor, me processe maluquinho!). Aqueles prédios que “floresceram” na famosa avenida foram projetados e adubados pela corrupção engendrada em nossa sociedade patrimonialista. Suas janelas de vidro são limpas com a força de trabalho das diaristas negras que moram no subúrbio e nas periferias centrais, concedidas pelo esquema geral da exploração preconceituosa da mais-valia da população negra.

O capitalismo aproveita dessas culturas locais de exploração e discriminação, tais como o patrimonialismo, e aprofunda sua presença global nas sociedades locais, produzindo efeitos visíveis que servem de elementos interpretativos para a geração de uma consciência coletiva submersa na aceitação passiva da exploração brutal.
A extensa disseminação da peonagem, a escravidão por dívida, nas novas fazendas da fronteira, abertas com a onda de ocupação da Amazônia nas últimas décadas, mas não só nelas, nos fala de uma dificuldade estrutural na expansão do modo capitalista de reprodução do capital. E, portanto, naquilo que é o âmago do moderno. Aí as coisas combinam de modo estranho. [...] As fazendas em que tem sido encontrado maior número de trabalhadores escravizados pertencem justamente a grandes conglomerados econômicos, não raro multinacionais. Na Fazenda Vale do Rio Cristalino, quando ainda pertencia ao grupo alemão Wolkswagen, uma fazenda de criação de gado de corte para exportação à Alemanha, a tecnologia empregada era da maior sofisticação. [...] Porém, todas essas notáveis expressões da modernidade funcionavam com base no trabalho de 500 escravos empregados no desmatamento e na formação de pastagens. (MARTINS, 2010, p. 30-31)
Pois é: a tecnologia mais avançada não abre mão da escravidão no Brasil. Podem dividir o Brasil em dois lados: norte-nordeste e sul-sudeste; podem ainda dividi-lo em inúmeras ilhas, mas as forças que geram os maléficos fenômenos sociais que vivemos atualmente continuarão firmes, produzindo “brasis” dentro das ilhas nas quais seriam divididos os mais de 8 milhões de metros quadrados de nosso território. Nas ilhas teríamos novos senhores, novos feitores, novos capitães-do-mato. Nas ilhas teríamos oceanos de pobreza em meio a atóis de riqueza. Nas ilhas teríamos novos brancos, novos negros e novos indígenas, por que a energia sistemática que impulsiona as divisões não cessaria de exercer sua ação. Essas ilhas já existem: são as prefeituras. As cidades são pobres, tais como São Francisco do Conde, Camaçari, etc. E seus prefeitos e suas prefeitas são ricos/as. Toda cidadezinha baiana e brasileira tem seus brancos – não necessariamente brancos – os seus negros e indígenas, os seus pouquíssimos ricos e sua multidão de pobres. Os brancos têm nome. São da família ou quadrilha, seja lá o nome que se dê, tal e tal. Que se opõe, de fingimento ou de verdade, à família/quadrilha tal e tal, que assaltam a cidade e oferecem as migalhas para seus pobres ditos “cidadãos”. Vivemos uma sociabilidade falida, mas que ainda aduba fortemente a nossa mentalidade tupiniquim.

Joselito da Nair, do Zé, de Ana Lúcia, de Rafael, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
Com o auxílio de

MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. 2.ed. rev. e ampl. São Paulo: Contexto, 2010.

SÖRJ, Bernardo. A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.