terça-feira, 25 de outubro de 2016

MUNDO SEM SENTIDO


Estou em um momento em que procuro sentidos para a vida. Há uma tristeza enorme manifestando o mundo que percebo. Sinto uma perdição geral. Sinto um desabamento humano produzindo unidades de consumo, prazer, futilidade e delírio tão vazias de sentido que somente o desencanto vai expressando minha desesperança crescente. Há muitas mortes. Assassinatos, crueldades, cinismos, negligências. Mas a morte não me parece tão ruim. A morte e a vida estão de mãos dadas num abraço sem fim. A morte somente acabará quando a vida atingir um fim, porque essa morte sempre tem o seu intérprete. A pior morte de todas é aquela para a qual não há quem a lamente. É a morte da morte. A morte da humanidade. A morte tornou-se banal, e o pior, está sendo cultivada dentro de nós quando o tecido da humanidade se rompe, provocando um rasgo tão grande que talvez seja difícil costurá-lo novamente.


Talvez estejamos cultivando um sentimento nazista em nosso comportamento que não mais se indigna com a injustiça, com tantos assassinatos e mortes prematuras. As pessoas sofrem e caem ao nosso lado, mas não mais nos envolvemos. Criamos uma carapaça em torno dos nossos sentimentos na tentativa de nos proteger, de nos salvar da insanidade geral que toma conta de nosso cotidiano, mas, ao fazermos isso, participamos desse ato geral de indiferença que fulmina a humanidade que talvez ainda nos reste, asfixiados na câmara de gás criada por nós mesmos diante do mal que se avizinha. Estamos todos perdidos: povo, cientistas, comunicadores, religiosos, médicos, policiais, enfermeiros, auxiliares, juízes, professores, etc. Cada qual procura sobreviver nos estacionamentos, nas ruas, no lar, nas instituições de trabalho. Mas talvez estejamos sentindo que a humanidade que ainda nos resta está se perdendo cada vez mais abismo adentro do mundo que estamos criando em nosso processo destrutivo.


Sinto-me tomado por profunda tristeza. Sinto-me cada vez mais impotente. Percebo cada vez mais que o cinismo tomou o lugar da honra, que a mentira prevalece, que a justiça está tomada pelos/as indecentes, que os canalhas estão nos roubando até Deus e seu profundo sentido ontológico, transformando-o numa mercadoria fácil que se pode comprar e vender nas prateleiras de igrejas-mercado. A insatisfação está sendo silenciada pelos ruídos ensurdecedores das promoções, das propagandas, filmes e novelas. O campo da política foi tomado de assalto pelos marginais que nos governam desde que os portugueses começaram a levar nosso ouro para lá. E é justamente nesse campo que uma das maiores batalhas está sendo travada. Esse campo cerrado pelo financiamento criminoso, criando um círculo vicioso que se retroalimenta por um povo ainda frágil, pequeno e mesquinho, que ainda admira o herói, ou mesmo o anti-herói, pré-fabricado pela mídia, renovando o seu poder num congresso cheio de ladrões que levam nosso ouro para lá, as contas fantasmas que alimentam dondocas de olhos esbugalhados no dinheiro surrupiado de nossa nação.



Minha esperança está tão frágil num momento em que precisava estar tão fortalecida. Há uma guerra dentro de mim mesmo. Há explosões, conflitos, bombardeios, trincheiras e mortes. Existiam sujeitos que foram morrendo em meu ser. Sujeitos que, ao morrerem, tiveram de enterrar também as ligações que ainda existiam com certas pessoas, porque a confiança foi se perdendo devido à identificação de suas hipocrisias e cegueiras, e deixamos de partilhar os fios tênues que a história nos concedeu em outro momento da minha vida. Na rigidez fria de suas mortes as pronúncias desses sujeitos, que em mim se extinguiram, foram para o túmulo de um silêncio fúnebre que rejeitam até a cruz, porque não mais sonham com a promessa da ressurreição num mundo que desabou. Aonde renascerei?



Se no mundo não há sinais, olho para o céu, à procura de esperança, como um navegador num oceano imenso no meio da noite. As estrelas tão distantes, brilham indiferentes para um planeta azul que é belo e pacífico para acolher a vida em sua exuberância, mas, cujo mundo criado pelo ser humano se tornou num dos lugares mais agressivos e mortais do universo por causa da gente, os seres desumanos.



Joselito desse mundo.   

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O BICO DA ÁGUIA E O ENCURTAMENTO DA HUMANIDADE BRASILEIRA

Dos animais nada espero além da sua própria animalidade inscrita no âmbito natural. Os animais não são seres políticos e nem éticos e, por isso mesmo, seria grande debilidade mental levar um leão aos tribunais por ter devorado um gnu. Não pode ser classificado como homicídio, porque é da ordem natural da relação presa-predador inscrita na natureza, bem como não se julga a morte de milhões de galinhas, porcos, peixes e bois para alimentação humana. As ordens jurídica e política são da ordem do humano, porque somente os seres humanos, reza a lenda, têm capacidade de decisão, de opção, de escolha e, portanto, somente a eles pode ser imputado a responsabilidade por essa condição.

O único animal que fala é o ser humano, o ser de linguagem. E aí está a sua maior força e a sua maior fraqueza. A linguagem lhe permite simbolizar o mundo, construindo-o permanentemente, nomeando-o e constituindo-se a si próprio. Contudo, a linguagem também lhe cobra um preço pela sua ousadia em ter começado a falar, a decidir e a escolher.
Uso uma expressão trazida por Lacan de que, quando somos colocados na linguagem, pagamos isso como se fosse o pecado original. E carregamos tendo que suportar um pecado que não tem deus que tire. (SOUZA, 2016, p. A6)
Tal como Prometeu, punido por revelar o segredo do fogo aos mortais, com uma águia lhe comendo o fígado todos os dias, assim também o ser humano é punido constantemente pela sua consciência amarrada inevitavelmente à ética, ou não?
Quer dizer, mais que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um “não-eu” se reconhece como “si própria”. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe. E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética se torna inevitável e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma virtude. (FREIRE, 2002, p.20)
O nosso grande problema de cada dia no Brasil de hoje e de desde sua invasão pelos portugueses, é quando a transgressão da ética não mais provoca reflexão, nem mais produz o sentimento de culpa nem de vergonha nos seres de mau caráter, mas revela um cinismo descarado que enoja os que ainda acreditam e defendam a ética como reguladora dos nossos atos. A “águia” não come mais o “fígado” daqueles/as que roubam, dos/as ardilosos/as que enganam utilizando o nome de Deus para enriquecimento, daqueles/as que matam, daqueles/as que mentem, daqueles que causam sofrimento aos outros.

Mas, acredito eu, um problema maior ainda é quando a maioria se cala diante de tanto cinismo, de tanta usurpação, de tanta impunidade. A ordem jurídica não mais consegue pronunciar sua justiça, ao contrário, ela foi montada para beneficiar os ladrões, os assassinos, corruptos, os estelionatários, os negociantes da morte, entre outros. A ordem política brasileira é visivelmente a expressão institucional dessa situação. Ela própria é erguida sobre o financiamento criminoso de campanhas eleitorais; Essa ordem política é também a expressão da representação manipulada dos grandes empresários e investidores brasileiros e mundiais que aqui garantem a reprodução da miséria geral em função de mesquinhas farturas particulares. Mas, quando a maioria se cala, há um consentimento social da malandragem que impede a águia de bicar o fígado geral de nossa nação. A racionalidade humana carrega a possibilidade de transgressão da ética, carrega uma maldade intencional buscando a concentração de poder e renda, destrói a vida dos seus semelhantes em função do seu desejo mesquinho de ser “o dono do pedaço” não se contentando apenas com o seu pedaço, retira o pedacinho do outro, produzindo uma falsa fartura, a que foi produzida pela penúria do próximo, não pela honestidade de seu trabalho.

Do mesmo modo, somos impedidos, por truculentos e astutos silenciamentos, de falar. Um desses silenciamentos começa na redução de nossa capacidade de compreensão, de avaliação, de escolha, enfim, de opção. Com uma educação sofrível as pessoas vão tendo um “encurtamento simbólico” (SOUZA, 2016) e, portanto, a redução de sua capacidade de fala. A criticidade vai cedendo lugar para a aceitação e legitimação passiva de sua condição de roubado, de explorado, de assaltado por um sistema político e jurídico que o reduz à humanidade precária, ou, em casos piores, à desumanização degradante. Eu soube pela diarista que trabalha aqui em casa, Indaiá, que um candidato a reeleição para prefeito de Salvador, era aguardado pela população local como um deus. Ela revelou com espanto que muitos corriam para tocá-lo, para fazer selfie, para abraçá-lo. Fruto desse encurtamento simbólico, muitos seres humanos vão perdendo sua humanidade, sua capacidade de opção, de reflexão e, como desdobramento disso, erguendo ídolos, produzindo mitos e recriando condições para perpetuação de um mundo cheio de seres cuja humanidade vai sendo encurtada desde o seu nascimento.   

E vivemos a era onde os desvalores campeiam. Estamos em ano de eleições para prefeituras e vereadores no Brasil e, nesse momento de minha fala, muitas falas iguais estão sendo pronunciadas ao vento. Dizem elas que os políticos fizeram muito e ainda vão fazer muito mais. Dizem que eles e elas, candidatos atuais, são as melhores pessoas do mundo, os bons maridos e esposas, os bons filhos e filhas, os bons pais e mães, os bons amigos e as boas amigas, principalmente dos/as amigos/as mais pobres e simples. O encurtamento simbólico aceita essa mentira midiática geral. Mas "o louvor não é belo na boca do pecador.” (Eclesiástico, 15,9). Um modo bastante legal de reduzir o encurtamento simbólico sem precisar frequentar uma escola falida é inserir-se no movimento social, é participar de grupos de pessoas que pronunciam o mundo, que partilham significados e constroem sentidos outros sobre esta coisa desordenada que é nosso mundo contemporâneo.
De maneira completamente diferente será experimentada a fome pelos membros de uma coletividade unida por vínculos materiais objetivos (batalhão de soldados, operários reunidos no interior da usina, trabalhadores numa grande propriedade agrícola de tipo capitalista, enfim toda uma classe social desde que nela tenha amadurecido a noção de “classe para si"). Nesse caso, dominarão na atividade mental as tonalidades do protesto ativo e seguro de si mesmo; é aí que se encontra o terreno mais favorável para um desenvolvimento nítido e ideologicamente bem formado de atividade mental. (BAKHTIN, 2002, p. 116)
A nossa inserção em grupos e movimentos que amadurecem noções fundamentais de nossa especificidade no mundo, movimentos negros, movimentos feministas, movimentos gays, associações de moradores, sindicatos, associação de pais e mestres, pastorais sociais das igrejas, grupos religiosos que refletem eticamente sua religiosidade no mundo, entre tantos outros, são espaços em que o simbólico amplia suas possibilidades interpretativas, tendo reflexos importantes na criticidade da humanidade construída em seus espaços e, reduzindo assim, os efeitos nocivos do encurtamento simbólico, do empobrecimento e da proibição da fala, melhorando nossa capacidade de opção política, de decisão eleitoral, de escolha do nosso destino comum. Quem sabe não seremos as águias comendo o figado dos nossos representantes políticos?  

Joselito do Zé, da Nair, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes falando e de Jesus, o Emanuel.

Com o auxílio de:

BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. M. Lahud, Y. F. Vieira. 9. ed. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002.

BÍBLIA SAGRADA. Eclesiástico 15, 9.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 24. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002

SOUZA, Aurélio. A psicanálise convida o suicida a falar. Biaggio Talento. Jornal A Tarde. Salvador, p. A6 11 set. 2016. 

sábado, 9 de julho de 2016

A COMPETÊNCIA PRIVADA DO EMPRESARIADO SERÁ ASSIM TÃO COMPETENTE MESMO?

No jornal A Tarde de hoje o Editorial da página A3 intitulado "Olhar para o passado", apresenta a seguinte informação: "Cerca de 40% das maiores empresas brasileiras listadas na Bolsa de Valores de São Paulo estão muito endividadas, e mais da metade delas em estado 'crítico', com dificuldade de pagar dívidas que somam R$ 420 bilhões. Mesmo levando-se em conta a relativa alta carga tributária que temos - lembrando que proporcionalmente quem mais paga são os mais pobres - a informação acima remete à velha cantilena dos privatistas sobre a alegada incompetência do estado diante da eficiência da iniciativa privada. Assim, penso que os empresários paulistas não são tão eficientes quanto eles propagandeiam, nem a privatização é a saída para a melhoria da qualidade dos serviços públicos oferecidos pelo estado.

Ao produzir uma dívida de 420 bilhões de reais, 40% das maiores, repito, das maiores, empresas desse país, listadas na Bolsa de Valores de São Paulo, não devem ser assim tão competentes quanto afirmam. Que moral esses empresários têm para falar das dívidas do estado? Quando a dívida refere-se ao estado esses mesmos empresários de plantão, de modo arrogante e paulista, acusam o estado de sua incompetência e ineficiência, apontando para a privatização como única saída para a "salvação da nação tupiniquim".

Diferentes sentidos são produzidos por práticas discursivas que remetem ao estado como "pesado", "ineficiente" e "improdutivo", configurando um conjunto ideológico que pode levar milhares de pessoas a acreditar na balela de que os empresários são indivíduos e grupos que, apesar desse estado burocrático e tributador, trabalham com seriedade para produzir, sacrificando seu tempo para a família e os/as amigos/as a fim de aumentar a oferta de emprego e promover o bem-estar geral. É MENTIRA!!! O que identifico é um monte de sanguessugas do estado, que vive reclamando e pedindo benesses, que remete seus lucros para outras plagas e culpam o estado pela ineficiência que é do setor privado.

Ressalto aqui que me refiro aos “grandes” empresários/as. Há, de fato, pequenos empresários que seguram o setor produtivo, gerando emprego, renda e desenvolvimento. A maioria desses, acredito eu, estão de fora da minha crítica, requerendo reconhecimento pelo trabalho e dedicação.

Travamos a luta pela publicização do privado, cada vez mais ampla, enfrentando o processo político-econômico contrário: a privatização do público, conforme nos ensina Norberto Bobbio (1992). Um exemplo aqui na cidade soteropolitana da Bahia foi a aprovação da Lei do Uso e Ordenamento da Ocupação do Solo de Salvador, a LOUOS. Nesta, há uma luta permanente tanto pela privatização do público, quanto pela publicização do privado. Na aprovação do Plano Diretor para a cidade – a Lei 9069/2016, que dispõe sobre o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) – o que eu ouvia e lia muito era o discurso de que a cidade precisava aprovar o seu marco regulatório legal para destravar o investimento. Ora, “destravar o investimento” significa concretamente abrir o caminho para a exploração da cidade pelo capital imobiliário. Os/As pedreiros/as, carpinteiros/as, serventes, ladrilheiros/as, pintores/as, eletricistas, entre outros/as, preparem-se para enriquecer com o seu trabalho. Veremos o espetáculo do crescimento da altura dos novos edifícios à borda da Orla Marítima de Salvador. A competência do setor privado passa pelo tráfico de influência nos gabinetes de decisão do estado, das câmaras de vereadores, assembleias legislativas e pelo Congresso Nacional.

Joselito M. de Jesus, professor do estado. Com o auxílio explícito de:

BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade. Para uma teoria geral da política. 4. ed. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e T
erra, 1992.

sábado, 2 de julho de 2016

FORÇAS OCULTAS

Os estudiosos do espaço sideral descobriram que a gravidade não explica o aumento da velocidade em que o universo continua se expandindo. Então eles criaram uma outra força para explicar essa expansão crescente: a "massa escura". Isso é teoria: cria conceitos articulados sistematicamente que procuram dar uma explicação convincente para os fenômenos visíveis e não compreendidos pela percepção imediata.

Na sociologia também nos deparamos com fenômenos que escapam à nossa percepção e ao nosso entendimento imediato. A maioria de nós, que lemos muito pouco ou quase nada, não consegue compreender as linhas de força que determinam o nosso modo coletivo de conviver em sociedade. Alguns pensam como um caos. Mas não é um caos. É um sistema articulado que gera muitos epifenômenos que parecem produzidos pelo acaso, mas não são. Alguns e algumas afirmam que o ponto de fuga dos epifenômenos é associado ao conceito de capitalismo. E muitos, de fato, o são. A exploração dos seres humanos tendo como critério principal a busca do lucro gera a pobreza em sua maioria e a riqueza, em sua minoria quantitativa. A realidade global não deixou de ser capitalista.

Mas no Brasil, apenas o capitalismo não explica a concentração de renda brutal e outros fenômenos sociológicos a ela associados. Assim, alguns sociólogos brasileiros, entre eles Bernardo Sörj, José de Souza Martins e Josué de Castro, perceberam o que está na raiz do preconceito, da discriminação e da intolerância no Brasil. O primeiro identifica o patrimonialismo no Brasil como uma dessas manifestações amplas que influenciam o nosso modo de buscar o lucro: retirando dinheiro do estado, tratando os trabalhadores como escravos e criando uma realidade de favelas – senzalas modernas – e de apartheid’s gerais que se desdobram no tráfico de drogas, nos inumeráveis roubos, furtos, assaltos, assassinatos e crimes diversos. José de Souza Martins percebe a força de uma modernidade às avessas no Brasil, que associou o arcaico com o avançado, no sentido mais negativo possível para as populações pobres de nosso país.

Essas forças invisíveis, dê o nome que se dê a elas, produzem efeitos nefastos que se percebem na corrupção desenfreada, nos buracos nas estradas, na morte prematura de milhares de pessoas que se despedem da vida na saúde pública abandonada, nos semianalfabetos que chegam à universidade, nos desempregados que entopem as vias de carros e camelôs. Os prédios erguidos na Avenida Paralela, destruindo o que resta da mata atlântica, antes de terem uma base sólida na engenharia civil, têm seus fundamentos no tráfico de influência na prefeitura de Salvador, neste caso no governo João Henrique (por favor, me processe maluquinho!). Aqueles prédios que “floresceram” na famosa avenida foram projetados e adubados pela corrupção engendrada em nossa sociedade patrimonialista. Suas janelas de vidro são limpas com a força de trabalho das diaristas negras que moram no subúrbio e nas periferias centrais, concedidas pelo esquema geral da exploração preconceituosa da mais-valia da população negra.

O capitalismo aproveita dessas culturas locais de exploração e discriminação, tais como o patrimonialismo, e aprofunda sua presença global nas sociedades locais, produzindo efeitos visíveis que servem de elementos interpretativos para a geração de uma consciência coletiva submersa na aceitação passiva da exploração brutal.
A extensa disseminação da peonagem, a escravidão por dívida, nas novas fazendas da fronteira, abertas com a onda de ocupação da Amazônia nas últimas décadas, mas não só nelas, nos fala de uma dificuldade estrutural na expansão do modo capitalista de reprodução do capital. E, portanto, naquilo que é o âmago do moderno. Aí as coisas combinam de modo estranho. [...] As fazendas em que tem sido encontrado maior número de trabalhadores escravizados pertencem justamente a grandes conglomerados econômicos, não raro multinacionais. Na Fazenda Vale do Rio Cristalino, quando ainda pertencia ao grupo alemão Wolkswagen, uma fazenda de criação de gado de corte para exportação à Alemanha, a tecnologia empregada era da maior sofisticação. [...] Porém, todas essas notáveis expressões da modernidade funcionavam com base no trabalho de 500 escravos empregados no desmatamento e na formação de pastagens. (MARTINS, 2010, p. 30-31)
Pois é: a tecnologia mais avançada não abre mão da escravidão no Brasil. Podem dividir o Brasil em dois lados: norte-nordeste e sul-sudeste; podem ainda dividi-lo em inúmeras ilhas, mas as forças que geram os maléficos fenômenos sociais que vivemos atualmente continuarão firmes, produzindo “brasis” dentro das ilhas nas quais seriam divididos os mais de 8 milhões de metros quadrados de nosso território. Nas ilhas teríamos novos senhores, novos feitores, novos capitães-do-mato. Nas ilhas teríamos oceanos de pobreza em meio a atóis de riqueza. Nas ilhas teríamos novos brancos, novos negros e novos indígenas, por que a energia sistemática que impulsiona as divisões não cessaria de exercer sua ação. Essas ilhas já existem: são as prefeituras. As cidades são pobres, tais como São Francisco do Conde, Camaçari, etc. E seus prefeitos e suas prefeitas são ricos/as. Toda cidadezinha baiana e brasileira tem seus brancos – não necessariamente brancos – os seus negros e indígenas, os seus pouquíssimos ricos e sua multidão de pobres. Os brancos têm nome. São da família ou quadrilha, seja lá o nome que se dê, tal e tal. Que se opõe, de fingimento ou de verdade, à família/quadrilha tal e tal, que assaltam a cidade e oferecem as migalhas para seus pobres ditos “cidadãos”. Vivemos uma sociabilidade falida, mas que ainda aduba fortemente a nossa mentalidade tupiniquim.

Joselito da Nair, do Zé, de Ana Lúcia, de Rafael, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
Com o auxílio de

MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. 2.ed. rev. e ampl. São Paulo: Contexto, 2010.

SÖRJ, Bernardo. A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

NOSSA POBREZA COLETIVA OU NOSSA QUALIDADE POLÍTICA ORGANIZADA? (Parte I)

A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. Ecoou lamentos [...]
A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta nos fundos das cozinhas alheias [...]
A minha voz ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome.
A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes. Recolhe em si
as vozes mudas, caladas, engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora.
(Conceição Evaristo, 1990)

Nosso país passa por um sério retrocesso em relação às conquistas que sua população brasileira organizada obteve nos últimos anos, exigindo uma necessidade de compreensão da nossa forma de exercício da cidadania e de sua pobreza nesse momento tão conturbado de nossa história, no intuito de motivar a ação e o pensamento das pessoas, grupos e instituições a fim de manter essas conquistas obtidas nesse quadro de anacronismo político, cultural e ideológico em que nos encontramos.  
Agora mesmo o vice-presidente Michel Temer está articulando um pacote de maldades contra o trabalhador brasileiro. Há propostas de flexibilização da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), do aumento da idade para aposentadoria e da desvinculação do aumento da aposentadoria do aumento do salário mínimo. Está última, na prática, vai asfixiar financeiramente os aposentados brasileiros, prejudicando enormemente sua já precária qualidade de vida na terceira idade.
Se não houver uma reação vigorosa da população brasileira, numa coletividade unida por laços de solidariedade material, política e ideológica, pagaremos um preço alto para a crise que se coloca como desculpa esfarrapada para a retirada de direitos básicos dos trabalhadores, dos aposentados e da maioria da população brasileira que sustenta esse pesado país em seus ombros, como um calvário permanente que a história nos impõe através do exercício de poder das classes hegemônicas que retomam o controle do estado em suas mãos.
Contudo, devemos refletir sobre esses laços de solidariedade política, ideológica e material que nos une. Mais ainda: refletir sobre o alcance e a qualidade ética e política de nossa suposta união. Para isso, os conceitos apresentados por Pedro Demo (2006) de pobreza política e qualidade política nos auxiliam na busca de compreensão dessa qualidade política de nossa união coletiva. Assim, o entendimento da nossa cidadania será abordado tendo a pobreza e a qualidade política como eixo analítico de seu exercício na sociedade brasileira atualmente, visando, de modo muito humilde e tosco, contribuir para a reflexão que favoreça o fortalecimento da ação política organizada da população brasileira contra sua degradação econômica, social, política e cultural diante dos desafios impostos, nesta nossa tensa realidade atual.

A Pobreza: fenômeno natural ou produção social?

Ninguém nasce pobre. A pobreza é uma discriminação no campo das vantagens sociais. Ou, em linguagem simples. Não nascemos pobres, somos tornados pobres. Somos tornados pobres quando não temos educação pública de qualidade; somos tornados pobres quando a saúde pública funciona mais como um sistema de morte e mal-estar que de recuperação da nossa saúde e bem-estar; somos tornados pobres quando não temos acesso a bens e serviços que nos são negados tendo o critério financeiro de mercado como princípio único de exclusão; somos tornados pobres quando recebemos um pagamento irrisório pelo nosso trabalho, que mal dá para cuidar de nossas necessidades básicas; somos tornados pobres, sobretudo, quando aceitamos a ideia do outro sem questionar seus fundamentos e suas consequências em nossas vidas.
Aceitamos ideias de que somos pobres porque queremos, porque não estudamos, porque somos preguiçosos, indolentes, inconsequentes com o nosso futuro; aceitamos ideias de que os brancos são melhores que nós e que, por isso, merecem sempre estar no domínio dos rumos de nossa sociedade; aceitamos passivamente ideologias estéticas de que o bonito e o belo só pode ser coisa de branco, loiro, corpo “assim ou assado”, olhos claros, azuis ou verdes, etc; aceitamos pensar, de modo impensado, de que a crise econômica deve ser paga pelos trabalhadores brasileiros e pelas classes populares, porque somos a maioria, enquanto aceitamos passivamente a reprodução dos privilégios dos mais ricos e abastados; quando agimos pensando que a mulher é inferior ao homem estamos pensando como a dominação masculina deseja, e estamos, ao aceitar todo esse conjunto de ideias, entre outras, motivando a violência contra a mulher, contra o negro, o homossexual, o indígena, o analfabeto e contra nós mesmos, a favor do macho adulto rico branco, nem sempre no comando (https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44757/).  

A Pobre Pobreza do Individualismo sem Saída

O projeto de sociedade das elites, de modo geral, funciona assim: ele produz a pobreza e produz, para a pobreza continuar sendo pobre, a ideologia de que essa condição é responsabilidade do pobre ou “mau jeito do mercado, produto eventual, fortuito, não questão estrutural, parte integrante do capitalismo” (DEMO, 2006, p.06). Assim, somos concebidos por essa história de negação pensando que nossa condição material precária é culpa de nossos pais e avós. Assumimos a responsabilidade por ela e nos esforçamos ao máximo para sairmos dessa situação desfavorável através de nossos estudos e do nosso trabalho. Desse modo, a nossa pobreza econômica se alia à pobreza política para reproduzir nossa pobreza de sempre. Aceita sem reclamos, mas com resignação e a certeza de que estamos cumprindo o nosso papel individual na busca pela melhoria de nossas condições materiais de existência na sociedade capitalista.

Não sairemos dessa pobreza assim. Desculpe te decepcionar meu caro/minha cara estudante/colega. No plano do exercício de nossas potencialidades individuais que o liberalismo nos propõe, só estaremos contribuindo ainda mais para o acúmulo da riqueza nas “mãos invisíveis” do capital privado. No plano individual alguns poucos podem até melhorar sua situação – anotem isso: alguns poucos – mas do ponto de vista da maioria dos nossos irmãos e nossas irmãs, colegas, companheiros/as, somente a provocação unida e exigente por políticas públicas de inclusão, elaboradas no âmbito da sociedade civil e sancionadas e implementadas no âmbito do estado, é que muitos de nós poderemos juntos, nessa coletividade implicada com nossa assunção social, melhorar nossa qualidade de vida. O Movimento dos Sem-Terra (MST) consegue fazer isso razoavelmente bem. Caso contrário, seguiremos cantando o trecho de “Sangue Latino” com Ney Matogrosso:

Jurei mentiras
E sigo sozinho
Assumo os pecados
Uh! Uh! Uh! Uh!

Os ventos do norte
Não movem moinhos
E o que me resta
É só um gemido

Minha vida, meus mortos
Meus caminhos tortos
Meu Sangue Latino
Uh! Uh! Uh! Uh!
Minh'alma cativa

Do mesmo modo, no plano cultural e ideológico, só conseguiremos sair de nossa condição de pobreza política, tirando nossa alma do cativeiro, quando investigarmos profundamente as ideias e os mecanismos políticos e econômicos que nos dominam em nossa prática cotidiana. Porque nos contradizemos. E, no plano individual, soltos como unidades humanas de produção, não poderemos entender o mecanismo amplo que nos empobrece. Nossa atividade mental produz “o protesto individualista do mendigo, ou a resignação mística do penitente.” (BAKHTIN, 2002, p.115). “Deus quis assim”; “É desse jeito”, “É assim mesmo”, são expressões que caracterizam essa percepção mental ideologicamente empobrecida de aceitação passiva da realidade. Portanto, no plano individual de nossos esforços e esperanças não sairemos de nossa pobreza produzida e reproduzida pelas tramas dos poderes dominantes em suas políticas assistencialistas e de exclusão.

NOSSA POBREZA COLETIVA OU NOSSA QUALIDADE POLÍTICA ORGANIZADA? (Parte II)

Politicidade e Coletividade Institucionalizada

Precisamos de uma politicidade implicada coletivamente, tecida por laços de solidariedade no reconhecimento de nosso pertencimento a um grupo, a uma classe social concebida pela negação de seus direitos fundamentais e pela história de organização e lutas pela afirmação de nossos direitos a existência decente, porque cansamos de trabalhar, comer e dormir em benefício do lucro alheio; porque cansamos dessa vida de gado e queremos bebida, diversão e arte.
A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída para qualquer parte

A gente não quer só comida
A gente quer bebida, diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida como a vida quer

Bebida é água!
Comida é pasto!
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?

A gente não quer só comer
A gente quer comer e quer fazer amor
A gente não quer só comer
A gente quer prazer pra aliviar a dor

A gente não quer só dinheiro
A gente quer dinheiro e felicidade
A gente não quer só dinheiro
A gente quer inteiro e não pela metade

(http://www.vagalume.com.br/titas/comida.html)

Demo, (2006, p.10) entende “[...] como politicidade a habilidade humana de, dentro das circunstâncias dadas, tomar o destino em suas mãos e construir a autonomia relativa possível como sujeito.” Mas essa politicidade necessária não é construída no plano individual, pois este, sozinho, não possui os recursos intelectuais necessários para identificar as estruturas que atuam em seu processo de empobrecimento, nem recursos políticos e econômicos para elaborar e executar ações consistentes de enfrentamento bem sucedido a tais estruturas. Somente como sujeito coletivo e institucional é que essa politicidade sai do plano do lamento e da resignação e entra efetivamente na cena da desconstrução política, econômica e ideológica das estruturas que o empobrecem. Nesse sentido, Bakhtin (2002, p.116) demonstra que  
De maneira completamente diferente será experimentada a fome pelos membros de uma coletividade unida por vínculos objetivos (batalhão de soldados, operários reunidos no interior da usina, trabalhadores numa grande propriedade agrícola de tipo capitalista, enfim toda uma classe social desde que nela tenha amadurecido a ‘noção de classe para si’). Nesse caso dominarão na atividade mental as tonalidades do protesto ativo e seguro de si mesmo; não haverá lugar para uma mentalidade resignada e submissa. É aí que se encontra o terreno favorável para um desenvolvimento nítido e ideologicamente bem formado da atividade mental.  
A noção de “classe para si” somente é elaborada no interior da participação política do sujeito em grupos, movimentos e instituições que identificam as estruturas de poder e as ideologias da legitimação do domínio num processo dialógico intenso, promovendo assim o surgimento da força coletiva estabelecida em fundamentos políticos e éticos que move uma multidão rumo à busca da transformação das estruturas que a empobrece. E assim poderemos sair do lamento, da pobreza política e começarmos o processo de ruptura, passando a cantar, dialeticamente, o trecho seguinte do “Sangue Latino”, com o mesmo Ney Matogrosso:
Rompi tratados
Traí os ritos
Quebrei a lança
Lancei no espaço
Um grito, um desabafo

E o que me importa
É não estar vencido
Minha vida, meus mortos
Meus caminhos tortos

O horizonte da qualidade política guia nossa luta ativa, rompendo velhos tratados, traindo ritos que nos aprisionam, lançando nosso grito, nosso desabafo, jogando para fora do nosso espaço a lança ideológica alheia que nos fere a subjetividade ampla que nos caracteriza, nos une, nos estimula a criar formas de luta e enfrentamentos, não mais como indivíduos solitários, renunciados e frágeis, batendo a cabeça no muro da vergonha individual, mas como sujeitos políticos engajados em movimentos, associações, sindicatos e instituições que nos fortalecem enquanto sujeitos coletivos, porque o que importa é não estarmos vencidos, nem humilhados diante da arrogância do ethos capitalista, mas tecendo caminhos tortos diante dessas asas retas de Brasília que não pode sair do chão enquanto nossa emancipação e nosso bem-estar coletivo não estiver postos em seu plano de voo.  

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de e com Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel com o apoio de:

BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. 9. ed. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002.

DEMO, Pedro. Pobreza política: a pobreza mais intensa da pobreza brasileira. Campinas. SP: Armazém do Ipê (Autores Associados), 2006.

TAVARES, Conceição. Vozes-mulheres. Cadernos Negros 13; Quilombhoje. São Paulo, 1990.

sábado, 16 de abril de 2016

MANDELANDO O BRASIL

Professora: Quem dividiu o Brasil?

Estudante: Professor/a, a pergunta não seria quem descobriu o Brasil?

Professora: Não. Nesse contexto histórico atual a pergunta que fiz está correta.

Estudante: Wiliam Bonner, Miriam Leitão e Wiliam Waack dizem que foi o PT. Mas, desde que sou criança, vejo que somos divididos.

Professora: Ah, muito bem! Você desconfia de quem nos dividiu?

Estudante: olha pró, sou um rapaz negro, nordestino e pobre. Já nasci apartado. Minha irmã nunca foi escolhida para ser a rainha do milho, nem mesmo da laranja ou da jabuticaba.

Professora: Huum. Continue.

Estudante: Só entrei na universidade através das cotas e desde a contribuição dos/as meus/minhas professores/as da educação básica, comecei a perceber que a divisão começou há muito tempo. Teve um autor que eu li que afirmou o seguinte:

A Lei de Terras, em 1850, visou formalizar as posses das terras, no período do fim do tráfico de escravos. Se todos (ex-escravos, brancos que não tinham propriedade, pequenos agricultores) tivessem condições de comprar e regularizar a posse da terra não haveria mão de obra para substituir o sistema escravista. Após a abolição, o Brasil oferece incentivos à imigração e existe o movimento de pobres e ex-escravos expulsos do campo para as cidades para o trabalho em subempregos, com início da criação de bolsões de pobreza nas cidades (VELLOSO, 2013, p. 124).

Então meus antepassados foram impedidos de desenvolverem em paz suas capacidades e produzirem sua riqueza através do trabalho, professora. Eu descobri que não nasci pobre porque meus pais e avós não gostavam de estudar e trabalhar, como eu pensava antes. Eles foram impedidos de se desenvolverem por outros grupos humanos! Foram empobrecidos!

Professora: Muito bem meu jovem! Sua percepção crítica está muito boa. E o seu domínio técnico-científico está aliado a essa percepção?

Estudante: Sim professora. Entendi que minha luta para que a história não se repita passa pelo meu empoderamento através também de uma aprendizagem eficiente, conquistada com muita dedicação e disciplina. Passa pela minha associação com meus colegas, professores/as, grupos, instituições, associações e movimentos políticos e sociais.

Professora: Então vamos reunir essa nação baseados em outros fundamentos e princípios? Vamos mandelar para acabar com esse apartheid nacional?
Estudante: Vamos pró!

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.

sábado, 26 de março de 2016

CONTRA A DITADURA E CONTRA A VIDA DE GADO

 Nesse contexto em que nosso país se encontra dividido de um extremo a outro, alguns brasileiros clamam pela volta da ditadura como solução definitiva para o problema da corrupção no país. Com um Congresso Nacional no qual a maioria dos seus representantes está envolvida com a corrupção, independente de cores partidárias, com os escândalos envolvendo empresas estatais, políticos e empresários, com a crise que abala a economia brasileira e com as manobras políticas de setores conservadores da sociedade para tentar a impossibilidade de voltar atrás na história, o apelo ao regime de exceção na condução da política brasileira vai beneficiar apenas os grupos sociais, políticos e culturais que sempre foram agraciados com o acúmulo escandaloso do capital em nosso território. Logo, o exercício do poder político num contexto ditatorial só beneficiará as camadas sociais privilegiadas da população brasileira na economia, na política, na ciência e, principalmente, nos serviços sociais, resultando num país distorcido, com um povo empobrecido, mas lutador e esperançoso na divisão equânime dos bens produzidos coletivamente.

Os poderes na arena social

Para entendermos sistematicamente as afirmações acima é preciso compreender o que é o poder. A política, para produzir seus efeitos de forma eficaz precisa do exercício organizado do poder. Demonstrando a distinção entre os poderes sociais econômico, ideológico e político, Bobbio (1995, p.956) afirma que:

Esta distinção entre três tipos principais de poder social se encontra, se bem que expressa de diferentes maneiras, na maior parte das teorias sociais contemporâneas, onde o sistema social global aparece direta ou indiretamente articulado em três subsistemas fundamentais, que são a organização das forças produtivas, a organização do consenso e a organização da coação.  
O poder, segundo Bobbio (1995) é a capacidade de um indivíduo, grupo ou instituição de modificar o comportamento de outro indivíduo, grupo ou instituição, segundo os seus interesses. O poder econômico é a capacidade de um indivíduo, grupo ou instituição de modificar o comportamento de outro indivíduo, grupo ou instituição, segundo os seus interesses, utilizando para isso as vantagens dos recursos econômicos disponíveis. O poder ideológico é a capacidade de um indivíduo, grupo ou instituição de modificar o comportamento de outro indivíduo, grupo ou instituição, segundo os seus interesses, utilizando-se das ideias, crenças, valores, modos de ser e de estar no mundo, que beneficiam e legitimam o grupo dominante na sociedade. O poder político é a capacidade de um indivíduo, grupo ou instituição de modificar o comportamento de outro indivíduo, grupo ou instituição, segundo os seus interesses, utilizando-se do uso da força, do aparato policial, das forças armadas, dos jagunços, dos paramilitares, ou seja: de qualquer grupo armado a serviço do grupo dominante.
A organização das forças produtivas – o poder econômico –, a organização do consenso – poder ideológico – e a organização da coação – poder político – constituem a base fundamental do “sistema social global”. Num regime de exceção como é a ditadura, o poder da coação, de prender e arrebentar, como diria um ex-presidente, cujo nome não pronuncio atendendo ao pedido do maldito saudoso, é legitimado pelo domínio absoluto do estado sobre a sociedade. Nesse modelo opressor do estado, o poder econômico age sem controle da população, atendendo de modo privilegiado aos interesses dos grandes grupos econômicos. O poder ideológico é utilizado através de meios como jornais nacionais, jornais impressos, revistas, propagandas do estado no rádio e na televisão, escolas, poder judiciário, universidades e, entre outros meios, as igrejas, como forma de legitimar o domínio e a opressão, convencendo a população brasileira da suposta necessidade do exercício do poder centralizado no estado, dominado por grupos privilegiados, no qual a população apenas aparece como gado a ser conduzido pela falsidade ideológica história adentro.

Vocês que fazem parte dessa massa
que passa nos projetos do futuro.
É duro tanto ter que caminhar
e dar muito mais do que receber
e ter que demonstrar sua coragem
À margem do que possa parecer
E, com o exercício do poder ideológico, articulado ao poder político e ao econômico, nosso povo vai voltando a ser uma massa crente nos “projetos do futuro”, nunca nos projetos do presente. O país deixa de ser nosso agora, para ser deles “sempre”. Nesse sentido eu valorizo a contribuição do “Príncipe do Gueto” em Salvador. "Depois de nós é nós de novo!" O poder ideológico é o mais nefasto, porque a gente começa a ver o outro, nosso algoz, como o ideal a ser seguido: ideal de beleza, de trabalho, de organização familiar, etc. e, ao mesmo tempo, começamos a nos ver como exemplo de trabalho, de família, de religiosidade e de beleza, entre outros, mal sucedido a ser negado e abandonado. Por isso, o importante papel dos movimentos sociais na atuação contra-ideológica. O movimento negro na Bahia, por exemplo, tem uma importância ímpar nesse processo quando reconstrói a percepção da negritude em condições ideológicas favoráveis a essa imensa parcela da população baiana e brasileira. A noite da beleza negra, para escolha da Deusa do Ébano, por exemplo, é uma das iniciativas importantíssimas como posicionamento ideológico crítico da negritude em nossa sociedade. O movimento dos sem-terra contra o poder do agronegócio, do movimento feminista contra o poder do machismo com sua violência física e simbólica, dos homossexuais contra a heteronormatividade e a violência assassina, entre tantos outros movimentos e grupos críticos dos arranjos sociais dominantes, situam-se na arena ideológica a favor da afirmação altiva dos negados por séculos de tradições colonizatórias que caracterizam a opressão no Brasil.
 “O conceito de política, entendida como forma de atividade ou de práxis humana, está estreitamente ligado ao de poder”, afirma Bobbio (1995). O poder político é, como vimos acima, em última instância, o poder da coação, do uso da força para manter o comportamento do outro na submissão, diante dos interesses que beneficiam os que estão no domínio. Não há, portanto, como entender a política desvinculada do poder, pois, segundo Bobbio (1995, p.956)
O que caracteriza o poder político é a exclusividade do uso da força em relação à totalidade dos grupos que atuam num determinado contexto social, exclusividade que é o resultado de um processo que se desenvolve em toda a sociedade organizada, no sentido da monopolização da posse e uso dos meios com que se pode exercer a coação física.
Quem tem a posse legítima do poder político é o estado, entendido por Weber apud Bobbio (1995) “Por estado se há de entender uma empresa institucional de caráter político onde o aparelho administrativo leva avante, em certa medida e com êxito, a pretensão do monopólio da legítima coerção física, com vistas ao cumprimento das leis.” Embora tenha o monopólio e a legitimidade do uso da força, através de seu aparelho repressor – polícias, forças armadas, etc. – a administração institucional do poder – relação de subordinação entre governante e governados – não pode ser pensada apenas como ação do estado, senão a cidadania desaparece da cena política e o autoritarismo se instaura. Daí a importância da negociação para a construção do consenso no âmbito da sociedade civil.

O Aparecimento da Sociedade Civil na Trama Política

É nesse contexto estrutural assim delineado que podemos apresentar a importância da operacionalização do conceito de sociedade civil. Segundo Bobbio, numa definição positiva de estado entende-se a sociedade civil como o
[...] conjunto de relações não reguladas pelo estado, e portanto como tudo aquilo que sobra uma vez bem delimitado o âmbito no qual se exerce o poder estatal. Mas mesmo numa noção assim vaga podem-se distinguir diversas acepções conforme prevaleça a identificação do não-estatal com o pré-estatal, com o anti-estatal ou inclusive com o pós-estatal. (BOBBIO, 1992, p.34)
Assim, a política não se restringe à administração do estado. Do ponto de vista da sociedade civil pré-estatal poderíamos afirmar que a política começa na sociedade civil.
Numa primeira aproximação pode-se dizer que a sociedade civil é o lugar onde surgem e se desenvolvem os conflitos econômicos, sociais, ideológicos, religiosos, que as instituições estatais têm o dever de resolver ou através da mediação ou através da repressão. (BOBBIO, 1992, p.36)
Nessa concepção de sociedade civil a negociação para a construção do consenso, seria a ação prioritária da política. Contudo, uma vez que o estado não consiga produzir respostas satisfatórias aos conflitos advindos da sociedade civil ele perde a governabilidade, o que pode conduzir à perda de sua legitimidade, podendo evoluir para uma dinâmica anti-estatal ou, quem sabe, desembocar numa sociedade pós-estatal, o que em nosso contexto parece muito difícil.
A sociedade civil é uma dimensão importante e imprescindível da política. Nela os conflitos são gerados e as esperanças concebidas, demandando solução do estado. Este último, para não perder a governabilidade, utiliza-se de instrumentos e meios para ficar a par dos interesses da população, ou seja, captar os humores da opinião pública no intuito de se posicionar na arena política instaurada. A percepção da opinião pública e de seus distintos interesses no âmbito da sociedade civil pelo estado é de fundamental importância para orientação do aparelho ideológico da instituição estatal, pois a decisão deste último – que geralmente é a favor de um indivíduo, grupo ou instituição e geralmente contra outro indivíduo, grupo e instituição – vai ser justificada direcionado a uma coletividade e ao bem-estar da mesma.
O aparelho ideológico do estado é necessário para se fortalecer a busca pela obtenção do consenso na sociedade civil através da mediação. Caso contrário, o estado aciona seu aparelho repressor. Mesmo assim, evidencia o poder que tem a sociedade civil e que não pode ser desprezado. A sociedade civil não encaminha apenas as demandas que se tornam objeto de decisão política para o estado. Encaminha também as orientações e os direcionamentos que os indivíduos, grupos organizados e instituições dão aos conflitos; encaminha as histórias de esperanças e as decepções que a elas se seguiram por governos que a desprezava; encaminha, enfim, a futura decisão em relação ao estado e ao governo que nele se apresenta. Futura decisão que se mantém na tensão armada no compasso de espera no campo aberto da política.
Assim, a sociedade civil é constituída como um cabo de guerra, numa arena política, no qual movimentos, associações, instituições empresariais, religiosas, educacionais, partidárias, sindicatos, etc, disputam a orientação e o direcionamento das demandas levantadas em seu âmbito político, uns tendo a orientação de classe social e sua luta e, os outros, tendo a orientação liberal como guia. O poder e a política, nesse sentido, são exercidos cotidianamente, geralmente, mas nem sempre, na luta pelo bem-estar de uns em detrimento dos outros. Essa disputa acontece nos campos da saúde, da infraestrutura, da economia, dos direitos civis, e da educação, entre outros.
Na ditadura, os setores organizados da sociedade civil em torno dos interesses da negritude, da mulher, dos homossexuais, dos trabalhadores, dos sertanejos, da intelectualidade crítica aos arranjos conservadores, entre outros, são silenciados pelo poder político do estado a serviço dos interesses dominantes e neocolonizatórios. E esse silenciamento é feito com tortura e morte. O contraditório não constitui elemento do debate político e ideológico, que se restringe às dimensões técnicas e moralistas, reconstituindo todo um sistema econômico, jurídico, político e ideológico que justifique e legitime o status quo dominante e excludente. Portanto, a ditadura só favorece quem possui condições ideológicas, econômicas e políticas favoráveis à manutenção do poder excludente, com o povo marcado, de volta à sua “vida de gado” no curral da ordem branca, hetero e burguesa que tenta nos encurralar na história contemporânea.

Joselito M. de Jesus, professor. Com o auxílio de:
BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade; por uma teoria geral da política. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. 4. ed. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1992.; ________________;.MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Tradução Carmen Varriale [et al]; coordenação de tradução: João Ferreira; revisão geral: João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cascais. 8. ed./Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 1995. 
Zé Ramalho: Vida de Gado.