A relação entre as dimensões
públicas e privadas no mundo é complexa, de difícil apreensão. No Brasil então,
é ainda mais complexa, em função, entre outras coisas, do patrimonialismo que
caracteriza nossas relações como uma “herança maldita” que os portugueses nos
deixaram e fizemos questão em aperfeiçoar como instituição cultural
privilegiada da nossa relação com o público e o privado. O público em nosso
país é utilizado como ponte para algum empreendimento privado, não podendo,
assim, ser considerado como a solução para os problemas sociais e econômicos
que nos afligem. A relação entre o público e o privado em nosso país deve ser
vista com cautela e analisada criticamente, pois sob o manto do público existem
muitos interesses privados que prejudicam sensivelmente o processo democrático
e a transparência das instituições.
Acerca do primado do privado
sobre o público Norberto Bobbio (1992) aponta que
Um dos eventos que melhor do que
qualquer outro revela a persistência do primado do direito privado sobre o
direito público é a resistência que o direito
de propriedade opõe à ingerência do poder
soberano, e portanto ao direito por parte do soberano de expropriar (por
motivos de utilidade pública) os bens do súdito. (BOBBIO, 1992, p23)
A citação acima, do ponto de
vista lógico, não apresenta problema. Há uma instância inviolável dos
indivíduos que o Estado não pode intervir. Entretanto, mesmo do ponto de vista
lógico o direito de propriedade e o poder do soberano não são pacíficos. Aliás,
problema que Rousseau apresenta brilhantemente em 1754, em seu “Discurso sobre
a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens”. Nesta reflexão
aparentemente longa ele afirma que:
O verdadeiro fundador da sociedade
civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas
suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios,
misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as
estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: “defendeis-vos
de ouvir esse impostor, estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de
todos e que a terra não pertence a ninguém. (ROUSSEAU, 1999, p.87).
O direito de propriedade para
Rousseau, portanto, não é um direito natural, senão uma imposição política e ideológica
que engendrou, desenvolveu e consolidou a ideia de propriedade privada ao longo da história humana. Segundo este
brilhante filósofo, quem se apropria privadamente do fruto da terra é um
impostor e, como impostor, deve ser enfrentado, tanto na dimensão do poder
político – o poder vindo da autonomia de arrancar a estaca que iria cercar a
terra –, quanto na dimensão do poder ideológico – o de evidenciar a contradição
da ideia de propriedade privada como fundamento para o bem estar individual e social.
Por outro lado, no plano do
primado do público sobre o privado, Bobbio (1992), amparado em seus estudos
aponta que:
O máximo bem dos sujeitos é o efeito
não da perseguição, através do esforço pessoal e do antagonismo, do próprio bem
por parte de cada um, mas das contribuições que cada um juntamente com os
demais dá solidariamente ao bem comum, seguindo as regras que a comunidade
toda, ou o grupo que a representa (por simulação ou na realidade), se impôs
através de seus órgãos, sejam eles órgãos autocráticos ou órgãos democráticos.
(BOBBIO, 1992, p.25)
O autor supracitado
apresenta dois pensamentos que se confrontam: o que vai na direção do direito
público e o que vai na direção contrária, o direito privado. Em nosso sistema
legal o direito público prevalece, em tese, sobre o direito privado. Digo em
tese, porque esta relação no Brasil tem um traço patrimonialista indelével. O
que é tido como público torna-se pelo uso e pelo abuso, privado. Quantos
funcionários públicos não avacalham em suas funções no cargo público? Quantos
funcionários públicos não se comportam como donos dos cargos e funções a que
são responsabilizados? Em cartórios, em universidades, em escolas, em
departamentos de trânsito entre outros, muitos funcionários públicos atendem de
acordo com o seu humor e com a propina que acompanha a solicitação para "apressar" o serviço. Quem comprou um imóvel sabe bem disso em Salvador. É
preciso adiantar a propina para o “despachante”, senão você tem seu documento
pronto no “não sei quando”.
Por isso mesmo não concordo
com os sindicatos quando defendem uma classe de trabalhadores sem atentar para
todas essas mazelas. A estabilidade no serviço público deveria beneficiar toda
a sociedade e não apenas o barnabé. O mesmo barnabé que utiliza de sua função
e, nela, exerce todo o seu poder privado contra o usuário do serviço público. A
gente reclama dos políticos brasileiros, mas somos muito parecidos com eles
aqui na planície cotidiana de nossas ações corporativas. Muitos funcionários
públicos no Detran, nas polícias, nas escolas e nas universidades, entre outros
órgãos, deixam de dar, solidariamente, suas contribuições, juntamente com os
demais, ao bem comum, ferindo diariamente as regras que a comunidade toda
estabelece, utilizando o serviço público para benefício “pessoal e
intransferível”.
Outro exemplo são os
representantes sindicais. Pelo que percebo J. Carlos e Rui Oliveira, só para citar
dois exemplos, são indícios de um sistema imperial no sindicato. J. Carlos,
embora deputado, continua dando as cartas no Sindicato dos Rodoviários, orientado pelo seu PT, enquanto Rui Oliveira parece que vai ser mumificado na cadeira de presidente da
APLB, dirigido pelo seu PC do B. Os sindicatos são assaltados por ideologias partidárias vencidas, por
formas de luta e de organização ultrapassadas, por discussões atrasadas e por
militantes incompetentes, que fazem o que a “elite” do seu partido ordena.
Resultado: sindicatos esvaziados, credibilidade em xeque, falta de transparência,
por causa da privatização partidária dos sindicatos. Há um movimento intenso de
privatização do público nos sindicatos, na qual ideólogos partidários, que se acham os melhores
líderes por terem a voz mais alta, rejeitam toda e qualquer pluralidade e
contrariedade. Pensam dialeticamente e agem metafisicamente. Dialética para o
governo e para o que se denominou de “elites”. E metafísica para nós. Um
filósofo sentenciou: somos muito objetivos em relação aos outros e muito
subjetivos em relação a nós mesmos. Todos nós.
Portanto, muitos espaços e
órgãos considerados públicos são utilizados para fins privadíssimos,
pessoalíssimos. Basta ser amigo do amigo, da amiga para passar à frente na
fila. Basta pagar a propina para o documento ser liberado. Basta estar próximo
ao rei para ter privilégios soberanos. Os funcionários públicos colocam
estampada a lei que ofender barnabé é crime e leva à prisão, etc. Mas não há a
contrapartida desta mesma lei. A do funcionário público que utiliza de seu
cargo e de sua função para ofender, atrapalhar, atrasar as solicitações,
necessidades e exigências dos usuários do sistema no qual estão envolvidos.
Como a relação entre o público e o privado no Brasil não é pacífica, nem
simples, é preciso deixar de lado visões corporativistas a fim de defender o
interesse público, o usuário do sistema público, a transparência, a eficiência
e a honestidade nas ações dos funcionários públicos. É preciso mudar essa cultura patrimonialista que nos caracteriza, rejeitar o "jeitinho brasileiro" para que, enfim, os
barnabés possam se unir por melhores condições de salário e de trabalho sem a necessidade de lideranças envelhecidas e
comprometidas com os interesses privados de seus partidozinhos de mentirinha,
que só pensam em como vencer as próximas eleições.
Joselito da Nair, do Zé, do
Rafael e do Direto Público Brasileiro
Com o auxílio de
Com o auxílio de
BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade; para uma
teoria geral da política. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo; Nova Cultural, 1999.
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