sexta-feira, 13 de agosto de 2010

UMA BOA AULA?

Nós professores estamos sempre aprendendo com os nossos educandos-educadores. Quer dizer: estamos sempre aprendendo quando estamos querendo aprender, pois algumas vezes não escutamos devidamente o que as pessoas ao nosso redor nos ensina sem ensinar, porque só aprendemos quando a gente muito deseja, quando a gente esforçar-se para compreender profundamente o que foi dito e, nesse dito, os não-ditos, os implícitos, os significados e sentidos que ficaram nas entrelinhas a espera de entendimento, de decifração, de interpretação, afinal, como disse Nietszche, “Contra o positivismo, que pára perante os fenômenos e diz: ‘Há apenas fatos’, eu digo: ‘Ao contrário, fatos é que não há; há apenas interpretações.” (NIETZSCHE apud Alves, 2006, p. 133). Então, não aprendemos simplesmente porque o outro nos ensina, aprendemos porque transformamos o conteúdo do diálogo estabelecido com o outro, em objeto de aprendizagem, que, por isso mesmo, transforma-se em conteúdo de ensino. Aliás, Piaget nos ensina desse modo, demonstrando que o processo de ensino-aprendizagem parte da ação do sujeito aprendente, ou, utilizando sua categoria teórica, sujeito epistemológico.

A constatação acima não dispensa o papel do ensino no processo de aprendizagem. Há educadores e educadoras que potencializam a aprendizagem, não necessariamente facilitam, aliás eu sou contra essas categorias fácil/difícil para tratar o processo educativo. Penso com minha experiência, que não é tão grande quanto pareço ensejar, que quando um educador, uma educadora, “facilita” a aprendizagem ele(a) mata a aula, impedindo o educando de pensar, de refletir, de buscar informações, de errar, de reavaliar o caminho de seu pensamento lógico, de inferir, de se perder e se achar. Talvez quando o professor, a professora, “facilite” a aula, esteja colocando-se no papel da autoridade intelectual indiscutível, referência única de conhecimento e verdade, obstaculizando a passagem da heteronomia dependente do educando para sua autonomia intelectual responsável, passagem essa que a escola propaga em seus princípios escritos no seu projeto político-pedagógico. Do mesmo modo, penso que quando pretendemos facilitar a aprendizagem estamos, na verdade, dificultando-a. As vezes sou tomado por uma necessidade obsessiva de dar a “resposta certa” que o educando tanto me pede, para fugir da ansiedade, tanto a dele quanto a minha. O currículo e os programas oficiais praticamente nos obrigam a pular de um conteúdo para outro, sem mesmo avaliar com seriedade se houve aprendizagem, pois temos que dar cabo dos conteúdos, e não necessariamente da aprendizagem. “É preciso muita calma nessa hora”, pois todas essas ansiedades acumuladas vão nos pressionando para uma espécie de ensino formal e destituído de significado, tanto para nós, quanto para os educandos e, contraditória e paradoxalmente, para a própria sociedade que exige ensino e aprendizagem “de qualidade”.

De fato, o problema não é facilitar ou dificultar a aprendizagem, mas torná-la significativa para o educando, e isso acontece quando o educador propõe desafios, problemas, obstáculos contextualizados, que motivam os educandos quando estão produzindo algo importante para eles. Quer potencializar a aprendizagem da leitura e da escrita? Por que não trabalhar com a elaboração de jornais, cujos temas e conteúdos refiram-se a problemas, dificuldades e conquistas que motivam os educandos a escreverem suas experiências e divulgarem-nas, utilizando pontuação e acentuação correta, linguagem apropriada para cada conteúdo, entre outras coisas. Quer fazer uma aula introdutória à Geometria? Vá para a quadra de esportes e aproveite o círculo do meio de campo e ensine diâmetro, raio, PI; o retângulo da pequena área, o perímetro do campo, a diagonal que forma dois triângulos retângulos, a área total e as demais áreas da outras figuras geométricas. Aproveite a linguagem dos narradores de partidas de futebol e construa textos singulares e lúdicos, aproveitando para ensinar pontuação, ortografia, entre outros; aproprie-se do jornal de domingo, onde tem a Revista da TV e motive seus educandos e educandas a escreverem os capítulos da próxima semana, além de discutir alguns temas por eles e elas apresentados como traição/fidelidade, amizade, sinceridade, riqueza/pobreza, a forma como os jovens e crianças aparecem nas novelas; envolvimento com drogas; quer ensinar função, elaboração de gráficos? Faça a partir de enquetes e levantamentos em sala de aula sobre namoro, futebol, família, gravidez na adolescência na cidade, alcoolismo; vá ao posto de saúde e levante, com os educandos e auxiliares de enfermagem e enfermeiras, as doenças mais comuns que assolam a região entre tantos outros temas e assuntos que fazem sentido para quem a gente quer fazer aprender (ensinar).

É nesse sentido que eu não paro de aprender, e por isso também que eu não paro de escrever, pois a comunicação da aprendizagem é uma necessidade mais que pessoal, é social. Deve haver algum dispositivo psíquico que, para além da vaidade pessoal, aciona o mecanismo que dispara a necessidade de comunicar nossas produções intelectuais. É no compartilhamento de nossos “achados”, através de encontros dialógicos, que melhoramos nossa percepção, potencializamos nosso comportamento, afiamos nossa inteligência e transitamos para um patamar superior de compreensão de determinado fenômeno. Esse “patamar superior de compreensão” pode ensejar uma interpretação errônea sobre a dialogicidade, na medida em que gera interpretações de superioridade racial, social, cultural. Somos sempre ignorantes em relação a algo que não sabemos e sempre sábios em relação a algo que não ignoramos, já dizia, com outras palavras, o mestre Paulo Freire. Por isso, o diálogo entre os seres humanos não pode jamais ser pautado numa relação hierarquizante, pois os verdadeiros sábios são aqueles que aprendem com as sabedorias e ignorâncias dos seus interlocutores, e os ignorantes são aqueles que ignoram os saberes que os outros lhes trazem, enfatizando, desdenhosamente, suas ignorâncias, como se não tivesse as suas próprias. E é justamente num diálogo que tive com uma educanda-educadora de uma cidade da Bahia, que encontrei inspiração para escrever este texto.

Estava dando aula sobre plano, planejamento e projeto, quando a mesma, em tom de desdém, afirmou que um professor dá uma boa aula independente de planejamento. Seu principal argumento foi o seguinte: Quando o professor domina o conteúdo do ensino, a boa aula acontece. Bem, pode ser que sim. Pode ser que não. E claro, mesmo com o planejamento e com o plano de aula, também pode ser que sim, também pode ser que não. Não apenas os professores sabem disso. Mesmo na vida cotidiana, geralmente quando a gente planeja “aquele final de semana”, a coisa não acontece, pois choveu, alguém ficou doente, outros desistiram, entre outras variáveis imprevistas. Entretanto, o reconhecimento da incerteza e da imprevisibilidade dos eventos não justifica a ausência do planejamento e do plano como referência da ação, principalmente quando essa ação lida com o imponderável, que brota das interações previstas e imprevistas que acontecem. Quanto mais incerteza, mais a necessidade de planejamento, para garantir alguma segurança no trajeto quando fatores circunstanciais e imprevisíveis aparecerem, e que bom que aparecem! A intervenção educativa exige um alto grau de organização, que o planejamento e a didática propiciam. Às vezes, quando pensava que tava dando uma “boa aula”, percebia que os educandos não aprendiam, apesar da tal “boa aula”. Naquele tempo eu, apesar de dominar teoricamente alguns conceitos interacionistas, só dominava de fato, de um ponto de vista bem abstrato, não tinha capacidade de operacionalizar na sala de aula aquele suposto conhecimento que detinha em meu discurso. Acreditava ser um “bom professor”. Mas, graças a Deus! Descobri, espero que não seja tarde, que dava uma “boa aula” para mim mesmo. Por isso os educandos e as educandas não aprendiam! Porque eu ensinava olhando para a minha vaidade e não para a necessidade e o nível de desenvolvimento cognitivo de meus educandos. Como fui tolo por um bom tempo! Nessa perspectiva a pergunta-título desse texto é provocativa e elucidativa. E abre, pelo menos para mim, caminhos fecundos de reflexão (auto) biográfica, de onde podem emergir frutuosas possibilidades de uma mudança autêntica de minha docência. Nesse sentido, a melhor aula que eu dei foi aquela em que os educandos efetivamente aprenderam.

Um abraço: Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

quarta-feira, 21 de julho de 2010

CAUSA DOS ASSASSINATOS: TRÁFICO DE DROGAS?

A maioria dos assassinatos de jovens entre 18 a 23 anos em Salvador e Região Metropolitana é atribuído pelas autoridades policiais ao tráfico de drogas, como se fosse uma causa já natural do processo social contemporâneo. Tal atribuição soa como uma explicação definitiva do fenômeno macabro e encerra o fim das investigações. Segundo o Jornal A Tarde da sexta-feira da semana passada, 16 de julho de 2010, somente 10% dos mais de 700 assassinatos na Bahia foram solucionados. A polícia baiana precisa admitir das duas uma: ou que é incapaz para garantir segurança pública razoável à sua população em função do contexto político, social e cultural baiano, ou que negligencia a violência quando esta atinge os jovens pobres das periferias do Estado, visto que a causa das mortes prematuras e violentas desses jovens tem causas mais amplas que o tráfico de drogas.
 
Ora, não é preciso ser sociólogo para perceber que o tráfico de drogas se apresenta como uma alternativa viável ao desemprego e à exclusão social que caracteriza a situação de uma parcela significativa dos jovens pobres baianos. A ausência de um governo atuante e eficiente, provido de um planejamento satisfatório, baseado em dados sociais concretos feitos em levantamentos estatísticos sérios, para assegurar a eficácia e a eficiência de políticas públicas voltadas à inclusão social desses jovens, com o apoio de uma legislação severa aos grandes traficantes, que nunca são acusados, muito menos presos, é a causa principal do assassinato em série dos jovens defuntos baianos. Ausência de escolas públicas de qualidade, de acesso ao sistema de saúde, de formação profissional voltada para a vocação local, como o turismo, entre outras iniciativas, quando conjugadas ao racismo, ou por causa dele, além do preconceito social contra os moradores de periferia, começam a matar antes mesmo das futuras balas que perfurarão o corpo de milhares de jovens baianos.

E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes do trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).

Os Melhores Poemas de João Cabral de Melo Neto / seleção de Antonio Carlos Secchin. São Paulo: Global, 1985.

As mortes que se morrem antes do trinta, como sintoma de uma sociedade e de um poder público que se alimentam delas.

Quem mata tantos jovens pobres e negros é o racismo que grassa no corpo social baiano!; Quem mata tantos jovens pobres é a negligência criminosa do poder público, entendido como o Executivo, o Legislativo e o Judiciário; Quem mata tantos jovens é a falta de futuro que, segundo o saudoso cantor filósofo e sociólogo Renato Russo, “não é mais como era antigamente.”; O que mata tantos jovens da periferia e das periferias do centro é a banalização da morte alheia, como se cada mãe, por estar supostamente preparada para a perda prematura do filho, classificado socialmente como pivete ou marginal, não sentisse a dor da perda de seu amado rebento, sangue do seu sangue que escorre inutilmente pelas ruas; O que mata tantos jovens é a impunidade que caracteriza os crimes.

Algum tempo atrás, ao levar meu filho em casa e sair de uma rua na periferia de Salvador, que possui uma transversal que vende drogas faz muito tempo, fui obrigado a parar o carro sob a mira de um revólver. Revistaram-me e ao carro em busca, inutilmente, de drogas. Expliquei-lhes que sempre passo próximo àquela transversal pois quase todo domingo à noite tenho de deixar meu filho na casa da mãe. Mesmo arriscando levar uns tabefes, perguntei-lhes porque eles não iam à fonte do tráfico e não o combatiam no local, já que muita gente está cansada de saber onde vende e quem são os traficantes visíveis? Elaborei esta pergunta em função de uma desconfiança: eles estavam abordando-me, não para combater o tráfico de drogas, mas para, caso eu fosse um viciado, extorquir dinheiro através de ameaças. Claro, não deve ser verdade esse absurdo, foi apenas uma hipótese surreal.

A responsabilidade do assassinato de tantos jovens, portanto, não está no tráfico de drogas. Este se apresenta como uma oportunidade de emprego, com boa remuneração para quem é analfabeto funcional, com clientes de bom poder aquisitivo, que pagam a vista e são fiéis ao produto. Evidentemente que o problema está no processo de demissão. Mas isto não é problema do/para o Estado, nem da/para a sociedade. Segundo o Estado liberal baiano, é uma relação livre entre patrão e empregado, resolvida sem a necessidade de mediação do poder público, pois a solução trabalhista, nesse caso, é resolvida nas repartições fúnebres, sem burocracia.

Autoria: Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Nesta Data Querida

Vá de bem e de bom sendo tu.

Vá de amor e de arte

Vá de leve e macio e arrepie os seus dias

dentro dos dias dos outros

que te rodeam e te rodopiam.

Beije sua esposa com paixão

e beba um vinho

de boa safra.


Faça amor devagar

escutando e sentindo

afiando, rolando,

subindo, descendo

mexendo...


Ora, deixa embolar!

Vá de graça no gozo

vá de vida em plenitude

na atitude decente

de ter nascido e ser gente.

Autoria: Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

São João: Nada de santidade, tudo de consumo e individualismo

Lembro-me daqueles São Joões que a minha memória poética guarda carinhosamente nos lugares mais claros e abertos de meus sentimentos. Nesses lugares de mim, há fogueiras acesas, cantigas, fogos de artifício, danças e, como dizia Manuel Bandeira, risos. Lembro-me bem que a gente se juntava, meninos de fogo, Eu, Binho, Bertinho, Cacau, Fernando, Buzigo, Zito, entre outros, e saíamos de casa em casa, visitando a pretexto de comer canjica, milho assado, amendoim e tomar um tiquinho de licor. As casas ficavam abertas, com luzes acesas em frente e o forró “comendo no centro” – expressão utilizada por meu pai e muitas outras pessoas para dizer que uma coisa estava muito boa. Expressando o exemplo joanino de solidariedade e partilha - alguns dos fundamentos para se construir um mundo novo - os pais dos coleguinhas abriam as portas e janelas de suas casas e as iluminavam, colocando no centro uma mesa forrada, geralmente com tecido quadriculado, cheia de fartura oferecida para os esperados e desejados visitantes.

Esperávamos os festejos juninos com ansiedade. Aprendíamos que nossas casas também deveriam estar enfeitadas e abertas, com fartura sendo oferecida para quem entrasse. A fartura a que me refiro era abundante, a despeito da pobreza em que nos encontrávamos. No São João, mais do que no Natal, nossos pais sempre davam um jeito de apresentar a casa como uma dádiva aos olhos e ao apetite. Alguém sempre fazia uma fogueira e aquele fumaceiro, aliado à fumaça dos fogos de artifício e à temperatura fria, para os padrões de Salvador, incensava o nosso mundo dos males e criava o clima mágico daqueles dias cheios de graças. A fogueira espantava o frio e aquecia nossa esperança e nossas mãos, que esfregávamos e passávamos no rosto frio daquelas noites. “Olha pro céu meu amor, vê como ele está lindo...” Daqui da terra olhávamos para o céu procurando balões, que àquela altura ainda eram permitidos. A gente vestia calças com retalhos costurados em cima dela, lembrando e celebrando nossas origens interioranas. Éramos, sem preconceitos, todos matutos, comumente chjamados de "tabaréus". Tinha quadrilha com tamanco de madeira e paqueras infantis. “Anarriê! Rapazes cumprimentam as damas! Olha a chuva!” E toda aquela simbólica forma da gente se apresentar unia, aproximava e criava um certo espírito de comunidade que celebra a vida.

Era tanta alegria! Mais tarde, nos despedíamos e retornávamos às nossas casas, onde encontrávamos nossos pais conversando alegremente com os vizinhos, contando histórias divertidas, curiosas e assombradas, que nos arrepiavam os ossos e entretiam nossa presença cheia de curiosidade, medo e diversão. Ficávamos como que hipnotizados com as histórias do adultos e esperávamos o desfecho de cada história que a oralidade dos nossos ancestrais nos presenteava. Era melhor que cinema. Hoje o cinema nem me causa mais curiosidade. Os desfechos e as “culhudas” já são bem conhecidas. Lembro de uma história que minha mãe contara sobre uma filha que bateu no rosto da mãe. Ela, como era de se esperar por aquelas datas, fora amaldiçoada e, toda sexta-feira à noite, transformava-se num pássaro gigante, com garras mortais que arrastavam o que estivesse pela frente e saia gritando de forma horrenda: - “Eu sou Aquela! Eu sou Aquela! Eu sou Aquelaaaaaa!” As pessoas que moravam no povoado eram obrigados a entrar no curral e ali dormirem até o fenômeno tenebroso cessar, pois, segundo minha mãe, o curral, onde ficavam bois e vacas, era abençoado. Aquilo assombrava-me muito. Depois dessa e de outras histórias, que a gente não cansava de ouvir, íamos dormir e rezávamos exageradamente alguns Pais Nossos e Ave-Marias como forma de proteção daquelas maldições tão distantes e, ao mesmo tempo, tão próximas.

O São João era assim. Não tinha mega, nem demasia. Havia fartura para ser partilhada. Não tinha banda, nem tinha festas particulares só para jovens que se encontram distantes de suas famílias, aliás, preferem desencontrar-se delas. Há menos histórias, partilhas, causos, solidariedade e um forrozinho bom de fazer gosto. Agora o São João, pelo menos o que está na moda, virou lugar para poucos dançarem, para poucos se divertirem, para poucos usufruírem. O mundo atual é apenas dos mais jovens, dos mais espertos, dos mais cínicos. As casas, suas fogueiras, suas luzes, apagaram-se com o vento do capital que depreda, precariza, mancha, individualiza, fragmenta e apaga as luzes que aqueles dias acendem ainda em mim. Viva São João!!!

Joselito da Nair, do Zé, de Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

sábado, 19 de junho de 2010

Que país não é este?

Eu ainda não tenho um país
eu ainda não sou cidadão,
como posso ser algo
se ninguém me ensinou
se não aprendi?

Que país não é este?
Que endereço
tem essa nação?
Onde fica a Bahia
onde fica o Brasil
que passa na televisão?

Aonde reside a verdade?
Aonde encontro a decência?
Como procuro
Se não há referência?
A propaganda eleitoral propaga
o que não foi feito
o que não tá direito
no governo atado
nos nós
de todos os "carlos"
de todos os calos
e cala-te's da história.

Aonde encontro a nação?
O gigante afetuoso, alegre,
rico, verde, criativo,
produtivo, saboroso.
Aonde existe educação?
De qualidade, com compromisso,
sem artifícios de números falsos.

Eu quero apreender meu país
na realidade concreta
da escola pública,
da saúde de qualidade
que atenda a todos
primeiro os mais pobres.
Eu quero aprender meu país
no respeito às leis
no cuidado com a terra,
com  o verde das matas,
com o azul do céu,
com o incolor das águas.

Creio que só uma mulher,
com jeito menina,
pode me dizer
meu país
pode me contar a história
por uma outra glória
por uma outra via.
Uma tal de Marina
que não se pintou.
Marina me embala
menina da floresta.
No seu colo verde
de espera, esperança
adormeço ninado
nas histórias que me contas
de um novo país: ecológico,
ético, justo, equilibrado.

Autoria: Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Felicidade não é Mercadoria

O ser humano precisa de muito pouco para viver. Na verdade o ser humano não vive, convive. Vive com, sempre, caso contrário não seria humano, pois, como sabemos, através dos estudos de psicologia, de antropologia, de sociologia e de arqueologia entre outros, o homo sapiens sapiens é humanizado no processo sócio-cultural em que se insere e é inserido assim que nasce. Assim, o ser humano precisa de muito pouco para sobreviver. Um pouco de alimento, umas poucas roupas, água, teto, proteção, afeto e convivência salutar. Seria perfeito se tudo fosse assim simples. A felicidade estaria dada sem muito consumo, sem muita destruição, sem fruição demasiada. Mas não o é. A felicidade é reconstruída por uma lógica individualista e consumista que cria necessidades cada vez maiores e frustrações ainda maiores e mais potentes na causa das infelicidades ambulantes que espiam as vitrines do shopping’s dos grandes centros urbanos. Nesse contexto a própria felicidade se torna um produto, uma mercadoria a ser consumida, com prazo de validade e demais atributos que uma mercadoria tem, principalmente o lucro, embutido não em seu valor de uso, mas em seu valor de troca.

No processo sócio-cultural numa sociedade capitalista há um defeito gravíssimo na formação humana. A ontogênese se torna esse monstro chamado indivíduo que nunca sacia o seu desejo, que corrompe a sua vontade, inclinando-a para o consumo egoísta. A criatura sócio-histórica desta contemporaneidade torna-se um Frankenstein que a tudo devora e assombra com sua peculiar selvageria, ocupando os espaços de maneira egoísta, pensando apenas no seu prazer imediato, invadindo sinais vermelhos, agredindo a convivência. Criatura deplorável, gestada cotidianamente no ventre desse mundo também deplorável em suas estruturas sociais e econômico-culturais. A felicidade desse mundo, desse tempo e do ser que nele é humanizado, se assim se pode dizer, é uma felicidade grotesca, assim como o é o Frankenstein. A felicidade imediata, pronta para ser consumida, usada e jogada fora, pois uma felicidade assim tem duração breve. Dura o tempo em que o indivíduo ainda sente os efeitos fugazes de sua ação. E não refiro-me apenas às drogas. Envelhece rápido, principalmente quando novas felicidades são fabricadas, substituindo velozmente as felicidades anteriores, que são abandonadas num canto da casa e da memória.

O grande problema é que a felicidade passou do momento para o produto. O produto envelhece ou é substituído por outro e a memória esquece, deixando a subjetividade insaciável, sem tempo para lembrar deliciosamente do tempo que passou, mas que na verdade, continua habitando eternamente nossa memória poética. Cito Carlos Heitor Cony, que em seu livro “Quase Memória”, nos apresenta com sua singularidade poética, seu pai carinhoso e cheio de segredos a desvendar. Seu pai e o próprio Cony se tornam eternos, pelos menos para mim e para meu filho. Mas, infelizmente, o produto como mediação para a memória esvazia de sentido a subjetividade que tenta lembrar e não encontra referências seguras para tal. A nossa humanidade vai-se empobrecendo e tudo a nossa volta vai sendo demolido e reconstruído ao sabor das demandas criadas pela propaganda. Outro dia a noite fria me lembrou o aconchego de meus pais na cama com colcha de retalhos que acolhia a todos nós. Não havia produtos, não havia laptop’s, como esse no qual escrevo, nem televisores de LCD com full HD, que eu nem sei o que é. Mas havia uma coisa bem melhor, havia algo que não passou para mim e nem vai passar nunca. A noite fria me lembrou aquele gosto bom de pai, mãe, irmão e colcha de retalhos, mal iluminada pelo candeeiro, que sempre aciona as velhas e sempre novas histórias pela memória de meus pais que a oralidade oferecia afetuosamente.

Pensando desse jeito, e sentindo de um jeito inexplicável, posso afirmar que tenho felicidades imensas. E portador dessas felicidades eu as distribuo ao meu filho, à minha mulher e aos meus irmãos. Conto histórias para meu filho e me divirto com ele ao ler os gibis atuais nessas noites que esfriam o tempo e esquentam nossa relação humana quando a noite chega. Conto-lhe algumas histórias que meus pais me contaram e, enquanto conto, revivo aquele sentimento de proteção, de pertencimento, de encontro entre seres humanos dialogando curiosos sobre o mundo que outrora se apresentava para nós e também o construíamos. Penso ser este o maior presente de pai que deixo para o meu filho: um presente a ser desembrulhado com espanto, desejo e admiração por toda a sua vida, para que consiga, quem sabe, continuar sendo feliz e assim convivendo depois que a morte me carregar para o mistério do sem-fim. Eu não desejo que meu filho se lembre de mim como aquele que comprou um Playstation 2, ou que lhe fez todas as vontades mesquinhas, mas como um pai amoroso e rigoroso que lhe contou histórias felizes e compartilhou com ele novas histórias também felizes que marcarão nossa convivência.

Há uma música que tem um trecho que é elucidativo para o que estou tentando dizer aqui: “Felicidade é uma cidade pequenina, uma casinha, uma colina, qualquer lugar que se ilumina quando a gente quer amar”. Para mim isso é a mais pura verdade. Quando fui mais pobre que sou, sofria, como sofre todo aquele que não conhece o futuro. Ou pensa que sofre. Agora penso que tive muitos momentos insubstituíveis que me tocaram a subjetividade, que assimilou desse modo e assim se apresenta, nesses momentos de escrita e reflexão. Como afirmei, minha casa era pequena e a colcha era de retalhos. O candeeiro acompanhava bruxuleando aquelas histórias ricas de humanidade que meus pais traziam em sua linguagem. Marcaram eternamente a minha existência e me proporcionaram pequenas felicidades, que reverberam por todos os tempos em que existo. Terminei de perceber que tanto faz assistir o jogo da seleção numa LCD de 40 polegadas quanto na minha velha TV de 14 que fica em meu quarto. Não é o tamanho da TV nem outras qualidades que vão mudar minha emoção, minha memória, meu desejo de estar com quem quero, relembrando e esperando. Saio do sofá da sala, onde a TV de 29 tela plana exibe o mundo da copa, deito na cama, me cubro, imagino com quem amo que o frio da África do Sul adentrou janela adentro e torço assistindo no quarto a copa do mundo em minha TV de 14 polegadas. Ritual do passado que a memória deseja renovar em gestos concretos, felicidade pequenina “[...] qualquer lugar que se ilumina quando a gente quer amar”.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas gentes e de Jesus, O Emanuel.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Não Deixem a Vida me Levar

No Caderno A, página 12,  do dia 01/11/2009, a notícia é muito séria. Na verdade é o que todos já sabemos, mas por falta de provas, e por conhecer a impunidade que caracteriza o legislativo, o executivo e o judiciário, este último tendo alguns juízes vendedores de sentenças, não dizemos. Mas o jornal A Tarde publica o seguinte; Munícipios da Bahia têm mais casos de corrupção. Nesta reportagem, um estudo demonstra os efeitos da corrupção nos indicadores sociais, do doutorando em ciências sociais pela Universidade Federal de Pernambuco, Clóvis Alberto Vieira de Melo. O estudo aponta o seguinte: "[...]nas cidades sem desvio de verba, o índice de abandono escolar no ensino fundamental foi de 7, 21% em 2004. Nos municípios com quatro casos de corrupção, o número pula para 16,16% - aumento de 124%. O quadro se repete para taxa de reprovação: 14,97% nas cidades sem corrupção e 22,5% nas com quatro casos - 50,6% de incremento. A Bahia ajuda a comprovar a tese. Além de ter os municípios mais corruptos, o Estado registra a terceira maior taxa de abandono escolar no ensino médio e a quarta maior no ensino fundamental, com 20,9% e 15,2%, respectivamente. Os dados são do Ministério da Educação (2005)" (Fonte: Jornal A Tarde, de 01 de setembro de 2009, Caderno A, página 12).

Ora, ora, essa informação contradiz alguns "iluminados" que afirmam ser culpa apenas do professor as condições educacionais da população atualmente. São Francisco do Conde, por exemplo, que, proporcionalmente, tem a maior renda per capita do Brasil, é, não é da Bahia não, é do Brasil! lidera ranking nacional em casos de corrupção e sua população, é tão pobre quanto a população de Ourolândia, que tem o PIB per capita, muitas vezes menor. Então a gente conclui que a pobreza não é uma questão de ter mais ou menos dinheiro, é uma questão de justiça social. Pedro Demo, no seu livro Pobreza Política, afirma que a pobreza não é um dado natural, é uma conseqüência social, de impedimento de acesso da maioria da população aos bens coletivamente produzidos. Ele mesmo dá um exemplo. Numa comunidade agrícola, que sofreu uma devastação da natureza, não há pobreza, há escassez de recursos. A pobreza começa a existir quando, naquela situação de escassez, alguns privilegiados retém para si a maior parte dos bens que restaram, enquanto que, para a maioria, restam as migalhas. A pobreza, portanto, é um dado social, e não natural. Por isso, quem ainda acredita num mundo melhor, tem de combater a corrupção e os privilégios, contra até si mesmo. Prefeito rico cidade pobre. Mas com o salário que tem nenhum prefeito enriquece. De onde veio o dinheiro para comprar a fazenda, a mansão, o carrão? Da corrupção!

Por isso também que crítico a música cantada por Zeca Pagodinho, quando num trecho ele canta: "[...] confesso que sou de origem pobre, mas meu coração é nobre..."

Quem confessa, confessa um pecado ou um crime. Pobreza não é crime, nem pecado. "Mas", no sentido de oposição, "[...]meu coração é nobre..." Quer dizer que ser pobre contradiz com nobreza? Pois eu sou pobre e tenho orgulho de minha existência com meu escasso recurso financeiro. Os ricaços é que deveriam ter vergonha de sua demasia! De seus carrões, de suas mansões, pois, muitas vezes, essa demasia é que não rima com nobreza, com ética, com decência.

Autoria: Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

terça-feira, 25 de maio de 2010

Universidade e Democracia

Uma vez o renomado sociólogo brasileiro Florestan Fernandes fez uma pergunta que me deixou com vertigem. Como pode existir uma universidade democrática numa sociedade autoritária? Ainda era estudante de graduação do curso de Pedagogia da Universidade Católica do Salvador. Fiquei atônito mesmo, pois minha imagem primitiva de universidade era de uma instituição onde se podia discutir sobre todos os assuntos possíveis dentro do rigor acadêmico necessário. Ainda há pouco tempo não encontrava a resposta para a pergunta de Florestan Fernandes, até que descobri que respostas como essa a gente só encontra no passar pela democracia ou pelo autoritarismo da experiência, ou seja: pela práxis social contextualizada, e não apenas na busca de compreensão intelectual abstrata.

A estrutura universitária tem seus fundamentos – comumente o pedreiro chama, na construção civil, pelo sugestivo nome de “sapata” – no colonialismo atrasado que nos fundou baseado na herança patrimonialista portuguesa. Herdamos a “sapata portuguesa” e ainda insistimos em caminhar com ela, pois assim caminha a humanidade brasileira nesse meio milênio de des-cobrimento. Necessitamos tanto da intimidação, da ameaça, do uso de recursos autoritários de poder que não sabemos como agir em situações simples que interpretamos como ameaça. Para surpresa das gerações mais novas de nosso “gigante pela própria natureza” ainda somos coronelistas, ainda somos racistas e escravocratas, ainda somos machistas, ainda somos nepotistas, ainda somos clientelistas. Quanto mais idade me chega mais começo a desconfiar que os políticos que dizem nos representar, afinal nos representam. O Congresso Nacional tem uma face bem baiana e brasileira e a universidade baiana não está imune a tudo isto. Talvez ainda interpretemos “estabelecer limites” com “impor censuras”; talvez ainda signifiquemos “cobrar responsabilidades” com “desautorizar autorias”; talvez ainda interpretemos “vencer o oponente” com “eliminá-lo completamente”. Com essas heranças que se reestruturam também na universidade não podemos sonhar coisas de falar e escrever, coisas de defender com paixão, coisas de se acreditar e fazer, coisas de pesquisar com liberdade, porque essas coisas não se voltam para nós, dialeticamente, mas se voltam contra nós, autoritariamente.


Eu tenho paixão por escrever. Acredito que a escrita é uma das formas de comunicação que, para além da verbalização, nos envia reflexivamente de volta a nós mesmos, pois o texto circula e retorna, não mais o mesmo texto, mas inserido do com-texto. O autor então não é apenas o autor, mas o co-autor, porque o texto não circula imune. Ele retorna “imundo”, ou melhor, cheio de mundo a nos interpelar. O texto vai perdendo, forçosamente, sua abstração e sendo reinscrito pelo mundo em que circula, trazendo de volta o concreto dialógico a desafiar seu autor. Eu me sinto assim, desafiado pelos meus textos que circulam, instado permanentemente a pensar com mais rigor, com mais coerência, com mais sapiência, com mais saber e, como sinto, com mais sabor, mesmo que às vezes o gosto seja amargo. A escrita é exercício de prazer e liberdade. Ninguém pode garantir essa liberdade. Mas, desconfio, que a universidade talvez só autorize os escritos dos já conhecidos, dos já mapeados, dos já ca-das-trados. Eu ainda não fui cadastrado e espero nunca sê-lo, deve doer pacas. Vou escrevendo sem cadastro mesmo. Não se pode escrever apenas concordando, não se pode escrever apenas elogiando, não se pode escrever sem acreditar, nem bajulando. Não se deve escrever aceitando intimidações e mudando o significado dos textos. Também não se deve escrever sem o devido cuidado ético, criticando apenas por gosto de destruir o outro. Senão a escrita perde sua força ética e estética, seu conteúdo crítico e sua capacidade acadêmica e política.


O conhecimento, a reflexão, a aprendizagem coletiva é algo fantástico, apaixonante, solidária e contraditória. A Universidade acontece em sua rotina dinâmica, que ainda não é dialética porque ainda não é democrática, mas vai sendo nos espaços criados pela ousadia do pensar, que é dizer a sua palavra.

Autoria: Joselito do Zé, da Nair, de Rafael, De Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.