terça-feira, 13 de novembro de 2012

AMOR E MORTE



Há duas coisas belas no mundo: amor e morte. Leopardi

Para o autor Paulo Freire (1993), “cabe ao professor observar a si próprio; olhar para o mundo, olhar para si e sugerir que os alunos façam o mesmo e não apenas ensinar regras, teorias e cálculos”. De fato, o professor deve, também, ensinar os educandos a olharem para si mesmos e para o mundo. Perceber a poesia e a feiúra do mundo, o encanto e o desencanto e, deste espanto, encontrar um novo canto que ressignifique o seu pranto. O fortalecimento da afetividade dos educandos também passa por aí.

Não podemos desistir de amar, mesmo que o verbo sofrer seja conjugado juntamente. Amar é a arte mais difícil de aprender, contudo, é a maior recompensa que qualquer ser vivo pode ter. E o amor exige dedicação, comprometimento, observação dos detalhes, dos pequenos gestos, das discretas faces que revelam os segredos que nem mesmo seu dono sabe. E refiro-me ao amor supremo. Aquele pelo qual oferecemos nossa vida sem pestanejar, em nome do que e de quem amamos.

Eu amo meu filho. Sei disso porque quando levei um tiro na perna direita, num assalto a ônibus, com dor e tudo olhei para ele, que estava sentado em minha perna esquerda para ver se estava bem e nada o havia atingido. Minha perna sangrava e meu coração estava assustado demais com a possibilidade terrível de meu filho ter sido ferido. Felizmente, o marginal deu muita sorte naquele momento. Muita sorte. E eu ainda mais. Poderia levar muitos tiros a ver meu filho ferido. Depois disso, parei de pegar ônibus. O marginal estava em todos eles. E a polícia, o herói combatente, o braço armado do estado, em nenhum deles. Naquele dia, 09 de dezembro de 2006, eu percebi o que era, de verdade, amar.

Há pessoas privilegiadas em sua sensibilidade que não precisam passar por situações limítrofes para compreender esses sentimentos e emoções basilares do ser humano. Descobrem cedo, assim que experimentam desde a primeira vez. Eu não sou assim. Sou atrasado para essas coisas. E talvez sempre precise chegar perto do precipício, olhar o seu chamado de morte, para entender que a vida, só vale a pena, com amor. Só que todos nós temos, cada um, o seu precipício. A morte sempre nos chama de lá do fundo dele e, aos poucos, a gente vai sentindo que o nosso caminho vai nos levando à grande queda. E Alguns de nós vamos caminhando, procurando desviar dele e construir veredas e jardins à nossa passagem, para ver se conseguimos passar pelo abismo numa descida suave, como numa escorregadeira divertida para o mistério do sem-fim (Cecília Meireles). Muito embora alguns e algumas dirão, com razão, que não há nada de divertido na escorregadeira que leva para o abismo da morte. É. Penso também que, já que vamos cair, não poderemos pelo menos, enquanto houver capacidade de escolha, escolher como cair?   

Por isso desejo um amor que me leve leve para o sem-fim. Por isso desejo meu jeito de ir. Inventando uma esperança definitiva que me assegure no apagar das luzes. Uma esperança com uma sobriedade tênue, mas cheia de paixão e força, para morrer com suavidade, seja caindo de paraquedas no abismo, seja descendo louco e alegremente na escorregadeira do sem-fim, que, no fim, me espera.   
  
 Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, do amor, da morte, da caminho, da verdade e da vida.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Por mim e pelas pessoas que estão no mundo da cegueira



Hojje estive lendo o jornal A Tarde de domingo, 04/11/2012. Na página A³, o bispo dos católicos, Murilo Krieger, retoma a história do homem invisível, a partir de uma leitura sua, em outro jornal, de uma experiência de um estudante de sociologia, onde o mesmo

[...] quis conhecer o olhar das pessoas nas avenidas de uma cidade grande. - isto é, saber o que elas realmente veem, para onde se voltam e a que dão valor. Vestiu-se por isso de forma simples, como se fosse um dos muitos trabalhadores braçais que diariamente cruzam os caminhos de todos. Sua primeira surpresa: em pouco tempo percebeu que simplesmente não era notado por ninguém! Sim, ninguém percebia sua presença, ninguém o notava, nem mesmo seus velhos conhecidos e amigos. Constatou que, para muitos, ele simplesmente não existia: havia se transformado em um homem invisível. (KRIEGER, Murilo. O homem invisível, Jornal A Tarde, página A3, Salvador, domingo, 4/11/2012)

Em função desta triste realidade, ressalto, mais uma vez, e creio que não será a última, a relevância de um “ensaio sobre a cegueira”, como propunha Saramago e Jesus Cristo. Ensaio mais que necessário nesse tempo de tantas imagens, tantas ideias, e tão poucas convicções e coerência. Os católicos veem Cristo numa cruz, na imagem projetada na igreja que frequentam, mas não vê as mulheres e homens simples que nos rodeiam. Os evangélicos, com seus paletós e gravatas, e suas bíblias nas mãos, como armas apontadas contra aqueles e aquelas que não creem ou que não fazem parte de seu partido celestial, também são cegos para as pessoas simples, muito embora eles e elas mesmos (as) sejam pessoas simples.

Os varredores e as varredoras de rua, os garis, as zeladoras e os zeladores de prédios, os ascensoristas e as ascensoristas de elevadores, os vendedores de picolé e de cafezinho, as senhoras do mingau e todas aquelas pessoas que exercem funções consideradas simples são atiradas na invisibilidade social, denúncia viva de nossa cegueira, da seleção preconceituosa de nosso olhar, da redução seletiva de nossa visão, que não percebe humanidade em toda gente e esquece, muitas vezes, dos preceitos de suas próprias crenças que, por não serem profundamente refletidas, não se tornam convicções pessoais ao lidarmos com os fenômenos da existência, entre elas, a qualidade de nossas relações sociais, políticas e culturais.

Há pessoas que não existem para nós. Não porque não as conhecemos, mas, simplesmente, porque não as percebemos, por causa de um olhar pobre de humanidade que cultivamos em busca de um falso e inalcançável status quo privilegiado. Traímos nossos sonhos de paraíso, nossas orações por um mundo melhor, mais solidário, piedoso, igualitário e justo. Quando não vemos negamos a existência ao outro, considerado inferior. Não os vemos, não os ouvimos, não damos importância alguma às mulheres e aos homens simples, muito embora muitos de nós almejemos a simplicidade para um mundo aparentemente sofisticado, mas lastreado por arcaicas e velhas formas de viver e de não ver.  

Hoje, olhe para os lados e veja as pessoas simples e humildes que contribuem, tanto quanto cada um de nós, para a construção do mundo e da existência pessoal e coletiva nele. Essas pessoas pronunciam o mundo e se inserem nele, mesmo invisibilizados em hospitais, fóruns, escolas, igrejas, supermercados, postos de saúde, eventos públicos, festas, teatros, praias, enfim, em todos os lugares em que se fazem presentes sem serem notados na exuberante pujança e sofisticação que toda simplicidade tem.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes simples e do ser mais simples deste mundo e de todos os outros: Jesus, O Emanuel 

sábado, 27 de outubro de 2012

AS VEZES ME DÁ VONTADE

As vezes eu sinto que preciso me renovar. 
Tomar um sol, um banho de mar. 
Sair sem rumo, dar um mergulho, nadar. 
Cortar o cabelo, quebrar o espelho, inaugurar.
Algumas vezes me dá vontade de mudar tudo:
de endereço, de situação, de telefone e de ilusão.
 

As vezes dá uma vontade de pegar o carro
e dirigir até cansar.
 Ir para longe, pegar o bonde que já passou 
e descer numa cidade desconhecida. 
Ficar calado e escutar, abrir os olhos e observar. 
Ficar atento a todo evento que acontecer ao meu alcance 
e aprender com aquele instante
tudo que possa compreender sobre a existência. 

As vezes tenho vontade de parar
 numa paisagem que me encante
e tenho vontade da eternidade daquele instante.
As vezes quero ficar numa cidade tão pequenina,
que tenha fofoca e que tenha vovó,
milhares delas, não uma só. 


As vezes eu tenho fome e tenho sede,
uma sede de ser outra pessoa, outro homem
com ignorância à flor da pele
e com esperança sem reflexão. 


As vezes eu não quero ser eu
e quero fugir para outro lugar.
Estou precisando é viajar. Ler João Ubaldo
Rever o outro lado que a lua não mostra
para saber da monotonia que não me suporta.

Joselito e só

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Há e ah



Há quem lamente
com ai e com ui.
Há quem contente
com pouco,
Há quem lamente
com muito.
Há quem aceite
desgosto,
Há quem reclame
do mundo.

Ah, que ninguém lamente
com pouco
com Deus é mui.
Ah, ninguém aceite
desgosto
Ah, reclame do mundo
com ai e com ui.

Há quem sempre interprete
a seu modo
a seu mundo
Há sempre quem analfabete
em ninguém o absurdo.

Há sempre quem gire
com o mundo
Ah, quem para
vira ninguém
com ai e com ui
com pouco,
sem mundo,
com nada...
Ninguém de tudo.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Triste dia do Professor na Bahia



Um colunista do New York Times, Thomas Friedman, afirma que seu país favorito, depois do Estados Unidos, é Taiwan. Segundo ele “[...] isso se deve ao fato de Taiwan ter utilizado o talento, a energia e a inteligência dos seus 23 milhões de habitantes, tanto homens quanto mulheres, em vez de escavar a terra e explorar o subsolo”. Ele argumenta que “[...] o país desenvolveu o hábito e a cultura de aperfeiçoar as habilidades do seu povo, e essas habilidades acabaram se revelando o recurso mais valioso e único verdadeiramente renovável do mundo atual.” Ora, tomando como pressuposto que essa informação faça sentido, e, como hoje é o dia do professor no Brasil, penso que nosso país desperdiça esse recurso valioso, que é a capacidade intelectual e técnica de um povo, quando desrespeita e maltrata o professor. 

Os diferentes governos, e agora este vermelho de araque, colocam o professor numa arapuca econômica e cultural. Com baixos salários os professores e as professoras da rede pública de ensino não têm como qualificar-se melhor. Não frequentam teatros, pouco vão a cinemas, mal adquirem livros novos e nem pensam em participar de discussões na sua área, tanto devido ao cansaço, quanto ao recurso financeiro escasso. Desprovidos de formação e de acesso aos bens culturais, além de fazerem "bicos" aqui e acolá, os docentes vão perdendo sua capacidade de intervenção mais qualitativa na prátiva educativa, sua criatividade vai minando e sua motivação vai se esvaindo pelo ralo de um sistema público de ensino montado para dar errado. Mas a culpa recai geralmente sobre o professor, a professora, que vai sendo punido (a) e marginalizado (a), cada vez mais, com cada vez menos. Talvez a maior contradição do nosso tempo.  

O Governo Wagner caracteriza sua gestão com mão de ferro diante de negociações com as categorias profissionais, entre elas professores e policiais militares, praticando um arrocho inexplicável e gerando ainda mais insegurança quanto ao futuro de tais categorias. No caso específico do professor da rede pública de ensino, o modo como o Governo tratou a última greve revelou claramente que educação pública em nosso estado baiano lamentável de coisas é algo desprestigiado, secundarizado. Simplesmente, as mãos governamentais foram lavadas e tudo ocorreu ao modo caótico, que só prejudicou crianças de famílias pobres do estado, que precisam da escola pública para realizar estudos sistemáticos. Os professores e as professoras foram marginalizados, e houve um silenciamento às avessas: ao invés de calá-los, não vamos nem ouvi-los. E assim foi feito o mal feito.  

As professoras e os professores ficaram clamando nas praças, na Assembleia Legislativa, nas ruas, enquanto o Governo investia mais recursos públicos em propagandas enganosas. Nosso governador não pensa que a educação seja importante riqueza nacional, um recurso renovável que reduz a desigualdade e amplia oportunidades, gerando, num ciclo virtuoso, ainda mais riqueza. Inteligência não é dom de brancos e ricos. É uma dimensão valiosa que o ser humano gera em interações qualitativas. Passa pela escola e continua gerando mais inteligência num processo ininterrupto, provocando o crescimento sustentável de um país e gerando uma nação de humanos com maior capacidade de intervenção na sociedade e na natureza. Mas, sem professor (a) nada disso acontece.

E quando digo professor (a), não estou falando daqueles e daquelas formados (as) em cursos aligeirados, somente para constar em estatísticas oficias. Refiro-me a educadores e educadoras comprometidos (as) com a ascensão cultural dos seus educandos. Mas o governo não forma educadores e educadoras que deviam se orgulhar de sua condição, ao invés de se lamentar. Lamentam os baixos salários, as péssimas condições de trabalho, o futuro profissional incerto, a perda permanente de poder aquisitivo, causando um empobrecimento cada vez maior. Os professores vão se adaptando à vida de professor, vida pobre, que proíbe a vida digna, que espanta jovens talentosos (as) dessa "vida severina". Vida de professor que não paga uma viagem em família, a não ser para ali bem perto, vida de aperto, vida sem sucesso. De vez em quando entram numa “caixa” pra juntar uns trocados a mais a fim de fazer algo diferente. E vão assim, remando contra governos que apenas mudam de sigla, mas não mudam o jeito de maltratar o professor (a), atirando fora, junto com ele (a) a maior riqueza dessa nação: a sabedoria e o saber que nosso povo tem.

Joselito Manoel de Jesus, professor

Mulheres que correm sob o sol


Ontem, 14 de outubro de 2012, na Meia Maratona Farol a Farol, Percebi empiricamente e ainda mais a força e a determinação das mulheres nas pessoas de Ana Lúcia Gomes, Lu Felício, Dilma Venutto, Lucília Vieira, Rose Delgado, Ducinalva Queiroz, Dinah Silva, Andréa Brito, Dorrane Vasconcelos, Eva Borges, Sônia Aquino, Karina Pereira, Maiara Lisboa, Irene Demouliere, Rosana Teixeira, Mônica e Newzete O’Dwyer, nossa ex-professora Cris, Itana Vieira também, entre tantas e tantas mulheres fortes e determinadas que vão nos ensinando que sexo frágil não é uma característica do ser mulher, mas de quem não enfrenta frente a frente seus desafios; de quem não se coloca desafios e vai em busca de alcançá-los.


Essas mulheres, especialmente neste domingo, não se deixaram abater pelo sol que nos acompanhou durante as provas – 5 km, 10 km e 21 km. Elas enfrentaram o calor, o cansaço, a dor, os calos e, passo a passo, foram vencendo suas distâncias, alcançando seus desafios, superando a si mesmas, cada uma na sua, cada uma com sua beleza, com sua altivez e singeleza, todas como uma graciosa fortaleza erguida a cada metro, a cada quiilômetro, até tornarem real o que era apenas um desejo abstrato, conquistando a si mesmas e descobrindo-se senhoras de seus planos e de suas passadas.

Essas mulheres me ensinam a chegar também, e a planejar meus desejos a fim de realizá-los, passo a passo, passando do sonho para sua realização, rumo a outro mais forte que reside em mim e que deseja manifestar sua força e sua determinação.


Elas dão passos sob o sol,
e me levam para além.
Foram rumo ao farol
no sentido iluminado de seus atos.

Lá vem elas, lá se vão
articuladas de vão em vão
vêm no sentido da superação.

Lá vêm elas ensinando
o valor de trilhar o seu caminho
com muita determinação.

Elas vêm passo a passo
planejando seu destino
na ação, no traçado

vêm trilhando suas vias
em sentidos alados
e movimentos solidários entrelaçados.

Com elas a gente vai chegando também
Com elas a gente vai além de nós
porque aprendemos a suar com sentido
pra chegar triunfantes no farol de todas as barras
da vida que superamos em nossas existências.

Joselito do Zé, da Nair, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

FOI DEUS MESMO QUEM TE DEU?


De vez em quando algum carro à minha frente no trânsito infernal de Salvador passa com um adesivo com a seguinte frase: “Foi Deus quem me deu”. Desde a primeira vez alguma coisa nesta afirmação me incomodou. Mas não dei importância, afinal, a vida nos consome e a gente precisa correr para cumprir todas as exigências com suas datas e seus horários. Agora mesmo sinto-me um pouco culpado: estou deixando de fazer alguma coisa mais importante para escrever este texto. Mas o incômodo permanece e reaviva, pois ontem mesmo passou mais um carro por mim com a mesma frase. E o que tem de problemático nisso? Bem, talvez o fato de que Deus não dá carro a ninguém, porque ele não é dono de concessionária e porque o carro, símbolo do sucesso de consumo das classes emergentes, em nada representa a experiência e a presença de Deus em nossas vidas.

Deus não dá carro e carro não é sinal da presença de Deus. Deus, para quem acredita, já nos deu algo muito maior: a vida. E o fato de vivermos já é um sinal mais do que claro de sua presença em nós. Viver, aprender, conhecer o mundo, imaginar futuros, compartilhar esperanças e memórias, acalentar sonhos, apaixonar-se, amar, criar e transformar feiúra em beleza, isso tudo já nos aponta a presença divina no ser humano e na natureza. Em outro texto falei sobre a felicidade, amparando-me na música que diz que “felicidade é uma cidade pequenina, uma casinha, uma colina, qualquer lugar que se ilumina quando a gente quer amar”. Outra cantiga, como um mantra, cantada pelos monges de Taizé, assim reza:

Onde reina o amor
fraterno amor
onde reina o amor
Deus aí está.

Então, para saber da presença de Deus, basta amar, mesmo que seja pegando ônibus, numa motocicleta ou passeando no metrô de Salvador da nossa imaginação, que talvez nunca venha a trafegar. Numa casinha humilde, onde a taipa ainda sustenta um passado recente e uma luz precária indica presença humana, Deus está presente.

Mas a lógica do deus que dá carro a alguns “escolhidos” é outra. Em nossa sociedade baiana e brasileira, onde uma classe social economicamente frágil começa a ter possibilidade de adquirir bens considerados símbolos de sucesso, como é o caso do carro – deixando essa classe social ainda mais frágil economicamente – este bem de consumo é eleito como representação simbólica de que a pessoa que o possui é um “abençoado”. Talvez o raciocínio seja este: como o carro é um bem de consumo mais caro e, portanto, não é qualquer um que pode adquiri-lo, o fato de que o sujeito tenha conseguido é sinal de que essa pessoa teve uma melhoria concreta em sua capacidade de compra, devido aos seus esforços pessoais e à benção de Deus e, portanto, é um vencedor. É um raciocínio bem antigo, desde antes das burrinhas enfeitadas dos caixeiros viajantes. Há também outro raciocínio em relação a isso. Como a compra do automóvel é algo custoso e difícil para as classes sociais mais pobres, perdê-lo por roubo ou qualquer outra forma seria um prejuízo muito grande. Por isso ninguém vai tirá-lo, pois o que Deus dá o homem não tira. Deus está no seguro, na direção, no comando do meu “1.0” e ninguém ouse subtraí-lo de mim, senão sofrerá o castigo divino e esse, meu camarada, tarda, mas não falha. Outro raciocínio é a da conquista de um sonho. Acalentamos em nossa alma o sonho de possuirmos o que julgamos valioso. E esse sonho nos mobiliza para a conquista. Enfrentamos dificuldades, apertamos o orçamento, trabalhamos mais um pouco e, com muita fé, conseguimos transformar o sonho em realidade. Legítimo. Desde que o sonho não seja tão pequeno, tão mesquinho, tão individualista, onde, de cinco lugares, geralmente apenas um é ocupado.

Por esse pensamento de que o carro significa a benção de Deus, Salvador deve ser uma cidade à beira da santidade, pois está entupida de “abençoados”, sendo uma das cidades mais contempladas com os regalos de Deus. Mas, no momento que o “abençoado” adquire a benção de quatro rodas, quatro portas, direção hidráulica, vidros e travas elétricas, alarme e ar condicionado, o diabo vem e engarrafa Salvador. O Vaticano deveria vir aqui constatar esse fenômeno religioso que aparece na estranha romaria de todos os dias pelas ruas da cidade. Deus abençoa e o "cão" amaldiçoa, deus dá e o “cramunhão”, como não pode tirar, pois o que deus dá nem o “coisa ruim” tira, ele atrapalha, atrasa, bota gosto ruim.

E ficamos engarrafados na encruzilhada que fica entre a "benção" e a "maldição", "batalha de fé" vista e experimentada todos os dias entre a Paralela e a BR 324; em Brotas, na Avenida San Martin e na ACM, na Tancredo Neves e na Rótula do Abacaxi, na Sete Portas e na Manoel Dias da Silva. Essa benção, “abençoados”, não é de Deus. Talvez seja o queijo que o diabo botou na ratoeira do engarrafamento que nos prende financeiramente em trocentas parcelas com bancos e, fisicamente, por todas as ruas de Salvador.



Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, da Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.