Uma porta é a mediação entre dois espaços, entre duas realidades, entre dois cômodos, e, possivelmente, entre a vida e a morte. Uma porta é um umbral, que nos permite uma escolha fundamental: a passagem para outra situação, ou a recusa em abri-la e continuar no mesmo espaço e na mesma condição em que se encontra. Lembro-me agora da piada de um personagem de um programa humorístico, quando os programas humorísticos tinham humor. Um sujeito chegava para o outro e afirmava que o Tio dele havia criado uma invenção que dava para ver através da parede. O interlocutor ficava espantado e admirado e perguntava qual seria o nome dado a tão maravilhosa invenção. Ao que o primeiro respondia: - Janela. Uma porta, do mesmo modo, e de certa forma, é uma invenção que dá para outra realidade separada por um limite, que pode ser uma parede, um muro alto, uma idéia, uma crença, uma dita-dura ou mesmo uma dita-mole. Ao cruzá-la, os dados estão lançados e muita coisa pode mudar numa simples passagem.
Há portas dentro de nós. Muitas. Há portas que não podem ser abertas nunca, e há portas que devem ser cruzadas em cada fase de nossa breve existência. Há uma porta que eu ainda não cruzei, mas que deveria. Não sei. Não há motivo razoável para não cruzá-la, talvez o inconsciente esteja recusando uma dor longíqua, talvez minha psique tenha sido construída desse jeito em função do processo vivido. Cada pessoa constrói seus mundos em função da forma como foi tratada durante, principalmente, sua infância. Eu assisti recentemente o filme “O Contador de Histórias”, que narra a vida de Roberto Carlos, que foi adotado por uma francesa e, ao longo desse processo, construiu, a tempo, outra subjetividade emancipatória, tornando-se um dos maiores contadores de história do nosso tempo. O filme emociona, pois vai mostrando como o amor sincero salva pessoas e, ao mesmo tempo, denuncia como a FEBEM e outras instituições similares, através de seus gestores, “educadores” e profissionais diversos, transforma crianças em marginais e, depois, numa atitude perversa, impinge às próprias crianças, a responsabilidade por essa passagem, por atravessarem essa maldita porta. Parece aquele professor, aquela professora que não sabe ensinar e se desculpa afirmando que é o educando que não sabe aprender. É um truque sujo. Por isso eu repito que quem deveria ter um melhor preparo e uma melhor remuneração deveriam ser os professores da Educação básica, não os do ensino superior. Claro, e também uma melhor coordenação e supervisão, garantindo um desenvolvimento adequado e bem planejado das atividades educativas.
Mas eu me referia a portas. Algumas escolas forçam seus educandos a abrirem portas que estes não desejam, portas que não levam a lugar que tenham significados em suas vidas. Toda atividade educativa deveria levar a portas que fossem, verdadeiramente, a passagem entre suas vidas concretas e a vida acadêmica, entre o biológico e o sócio-histórico. O saudoso mestre Paulo Freire, em seu livro Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à docência refere-se a duas passagens: uma de caráter epistemológico: a da curiosidade ingênua para a curiosidade epistemológica e a segunda, de ordem política, a da heteronomia dependente para a autonomia responsável. E ele mesmo adverte que não se trata de ruptura, mas de passagem. A ruptura nega o educando enquanto sujeito de saberes porque desconsidera tudo o que ele já traz para a escola antes mesmo de chegar a ela. Nega o educando também enquanto sujeito político, que pensa, decide, arrisca, posiciona-se diante das circunstâncias, retrocede, por sabedoria ou medo. A porta que o educando deveria atravessar rumo à sua emancipação, muitas vezes é fechada pela escola que deveria abri-la. E muitas vezes ela nem é fechada com carinho, com respeito, mas batida com força, com violência sobre o desejo e a curiosidade natural que todo educando tem diante do mundo. Quando muitos educandos cruzam os portões da escola, que são portas grandes, são obrigados a deixar para trás suas vidas, suas emoções, seus desejos, ou seja: devem deixar de ser humanos e se tornarem máquinas de aprender.
Um dos grandes problemas da humanidade contemporânea é que a mesma aprende apenas a ultrapassar as portas largas. Portas largas são escolhas fáceis, menos cansativas, melhores para resolver nossos problemas individuais e imediatos. A Bíblia trata desta questão, incintando-nos a escolher a porta estreita. Mas o problema é que a sociedade baiana e brasileira, dita cristã, apenas nos ensina a escolher as portas largas. Eu me sinto tentado também a fazê-lo, abrir a porta mais fácil e entrar nela sem arrependimento. Quando eu vou estacionar no shopping a porta larga aparece na vaga exclusiva para idosos e portadores de deficiência. Sinto-me tentado a economizar combustível e tempo, resolvendo meu problema imediatamente. A porta larga está logo ali, chamando, convidando à transgressão. Venha Joselito! Venha! A vaga pode ser sua. Se você não ocupar outro o fará. É assim mesmo, já está tudo perdido. Esse mundo é um inferno mesmo. Mas eu, no momento atual, fico pensando que a abertura daquela porta vai fechá-la para quem precisa realmente passar por ela. Penso em deixar de preparar a aula para o dia seguinte, pois poderia aproveitar meu tempo para assistir aquele filminho no cinema. A facilidade ao prazer é um convite sedutor. Mas, fazer essa passagem vai fechá-la para os alunos que precisam de minha dedicação, responsabilidade e competência. Então vou pela estreita. E são tantas as portas largas que se abrem e se oferecem sedutoramente para a gente cruzá-las. É fácil, dá prazer, reduz os obstáculos, traz conforto imediato. Mas é errado! Pagamos alguma coisa com isso, pois prejudica toda a sociedade. Reportagem hoje, domingo, 16 de maio de 2010, veiculada no jornal A Tarde, Página B10, mostra os resultados de um estudo sobre noções de justiça e altruísmo em vários povos do mundo, conclui que “Se você desenvolver normas para ser mais justo com as pessoas além de sua esfera social, explica Joseph Henrich, isso cria enormes vantagens econômicas permite que uma sociedade cresça.” O que, talvez, precisamos entender, é que a moeda mais valorizada de qualquer mercado é a CONFIANÇA. Uma sociedade que não confia em suas leis, em sua justiça, em seus membros, em suas regras, é uma sociedade doente e paupérrima. Creio que a nossa, apesar de todas as conquistas que tivemos nos últimos tempos, ainda se encontra, de modo geral, nesse estágio precário da existência.
Ainda, portanto, estamos atravessando a porta larga, evidenciando nosso moralismo e nossa hipocrisia. Apontamos o dedo em riste para o outro, mas, quando podemos, cometemos nossos pequenos crimes, burlando a lei e ferindo o direito dos outros com pequenas passagens pela portas que se alargam diante das circuntâncias, que não hesitamos em atravessá-las.
Autoria: Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.