quinta-feira, 20 de maio de 2010

Amor e Morte

O enterro da minha mãe foi um dia de calma e paz. Ao redor de seu corpo estavam vizinhos, curiosos e demais parentes que moravam distantes no tempo e no espaço. Havia flores brancas e vermelhas e um silêncio oceânico entremeado por brisas de palavras e o ruído surdo dos abraços. Foi um dia de paz e calma, pois o câncer corroía não somente as entranhas de minha mãe, mas também as sinapses dos neurônios, as células do fígado e os músculos do coração de seus filhos sadios ao redor de seu leito de morte. Rezamos, mesmo quem não acredita muito como eu, mas a reza era despedida de nossa matriarca ao redor de nossas mãos entrelaçadas de solidariedade filial. No dia do enterro o corpo presente indicava a vida ausente e presidia as relações naquele quarto de passagem e despedida. Vida que fora tão singular e tão significativa. Vida insubstituível para os filhos e a filha. Vida que se deu para salvaguardar a vida dos seus. Ao redor do corpo havia cânticos, lágrimas sem desespero, abraços solidários, silêncios cheios de sentidos de todos e cada um. Não havia doutores nem comuns, não havia sábios nem imprudentes. Só humanos tecidos em torno do fio daquela vida que agora era morte. Só havia humanos diante do mistério profundo da vida e da morte, que ali, mais uma vez, apresenta-se como um texto vivo.

Depois fomos para casa, agora ôca, onde eu ainda morava. Minha mãe ficaria por ali por um tempo em silêncio completo.  No café da manhã, sentada à mesa da cozinha, ela foi se despedindo. Boa parte de nossa vida foi tecida naquele pequeno espaço, num tempo infinito de amor entre mãe e filho. Até então eu não havia percebido que quando uma pessoa amada morre leva consigo uma parte da casa, que morre também com ela. Minha mãe levara a cozinha e o quintal. Este último ela varria todas as manhãs. Meu olhar e meu ouvido, acostumados àquela rotina, não abriram mais as portas de si mesmos para perceberem o quintal que não mais havia. No quintal que foi levado, resta um chão cheio de folhas da goiabeira, onde formigas e aranhas tecem o destino da vida que continua sendo tecida em seus frágeis, mas insistentes fios. 
Um poeta, Leopardi, afirma que "há duas coisas belas no mundo: amor e morte". Esse verso, que dá título a este texto breve, lembrou o enterro da minha mãe. Foi um belo funeral. É justamente assim que desejo ir também: no rastro da última beleza que, involuntariamente, eu possa proporcionar ao mundo. 

Autoria: Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.    

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