domingo, 23 de maio de 2010

Educação e Cultura: uma conversa preliminar


A definição e conceituação de cultura não é tarefa fácil. Prefiro a definição simples de Paulo Freire e Romanelli, talvez seja a preguiça intelectual confortável que me afeta agora. Segundo esses autores, a cultura é o resultado do processo de significação que o ser humano dá, inserido num determinado grupo sócio-cultural, aos fatos, acontecimentos e objetos à sua volta. O exemplo da pena do pássaro, dado por Paulo Freire em seu livro Educação como Prática de Liberdade demonstra, didaticamente, uma noção simples e elucidativa de cultura. Na ave, é natureza. Mas no braço ou na cabeça do índio, é cultura. Toda cultura é a expressão do processo de significação que determinados humanos, de determinado local, dá aos fenômenos do seu e de outros contextos. Toda cultura, portanto, tem seus vetores explicativos, suas "linhas de força". Para compreender o processo de significação, de produção cultural de uma determinada localidade é preciso apreender as tais "linhas de força" que definem o que é relevante e merece ser comentado e discutido, e, ao mesmo tempo, o que é irrelevante e que não merece consideração. Vou citar um exemplo retirado do livro de Rubem Alves, Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e suas regras, publicado pelas edições Loyola, citando, por sua vez, o pesquisador, ou pesquisadora, (esses nomes estrangeiros são difíceis de saber) Evans-Pritchard.

Em princípio achei estranho viver entre os azande e ouvir suas ingênuas explicações de infortúnios que, para nós, têm causas evidentes. Depois de certo tempo aprendi a lógica do seu pensamento e passei a aplicar noções de feitiçaria de forma tão espontânea quanto eles mesmos, nas situações em que o conceito era relevante. Um menino bateu o pé num pequeno toco de madeira que estava em seu caminho - coisa que frequentemente acontece na África -, e a ferida doía e incomodava. O corte era no dedão e era impossível mantê-lo limpo. Inflamou. Ele afirmou que bateu o dedo no toco por causa da feitiçaria. Como era meu hábito argumentar com os azande e criticar suas declarações, foi o que fiz. Disse ao garoto que ele batera o pé no toco de madeira porque ele havia sido descuidado, e que o toco não havia sido colocado no caminho por feitiçaria, pois ele ali crescera naturalmente. Ele concordou que a feitiçaria não era responsável pelo fato de o toco estar no seu caminho, mas acrescentou que ele tinha os seus olhos bem abertos para evitar tocos – como, na verdade, os azande fazem cuidadosamente – e que se ele não tivesse sido enfeitiçado ele teria visto o toco. Como argumento final para comprovar o seu ponto de vista ele acrescentou que cortes não demoram dias e dias para cicatrizar, mas que, ao contrário, cicatrizam rapidamente, pois esta é a natureza dos cortes. Por que, então, sua ferida teria inflamado e permanecido aberta se não houvesse feitiçaria atrás dela? (p. 18)
O diálogo entre o cientista e o azande é mediado pela cultura local, pelas suas linhas explicativas que dá sentido e significa todos os fenômenos, dos mais simples aos mais complexos. Vocês podem observar que, tanto a explicação do cientista quanto a do menino azande tem sentido, tem uma lógica cultural que dá significado. Por isso, quebra-se a ideologia da hierarquização entre culturas. Não existe cultura superior, nem cultura inferior: existem diferentes forças explicativas para os mesmos fenômenos. Em qualquer lugar há linhas de força que dão significados e imprimem sentidos aos eventos contemporâneos, desde uma febre, um choro repetido de uma criança, até o choque de partículas nucleares, recentemente levado a cabo por cientistas na Europa.

Outra coisa que gostaria de comentar brevemente é sobre a relação entre culturas. Li em algum lugar, não recordo a autora – era uma autora, isso eu sei –, que não existe cultura pura. Toda cultura é sempre o resultado de tradições que se mesclam e que ganham sentidos específicos em função de fatores sociais, econômicos, geográficos, políticos, religiosos, que os exigem e reforçam, entre outros. Nesse sentido, a idéia de “resgatar” uma cultura me parece errônea. Não é possível resgatar algo puro, fixo, estável, herdada, pois toda cultura está em permanente negociação, conversação com outras culturas. Nesse sentido, a relação entre culturas não poderia ser, nem a de proteger a “cultura oprimida” contra o avanço de culturas estranhas e estrangeiras, nem a de render-se deslumbradamente ao “novo”, como acontece comumente no Brasil, o país do herói sem caráter, o nosso Macunaíma de Mario de Andrade. Talvez o nosso maior problema seja este, achar que tudo que vem de fora é melhor e mais avançado do que o que é produzido por nós. Milton Nascimento e Fernando Brandt, já afirmavam em música conhecida que “ficar de frente pro mar e de costas pro Brasil não vai fazer desse lugar um bom país.” E é verdade! As vezes a gente ainda tem aquele comportamento dos índios em 22 de abril de 1500: de frente pro mar, deslumbrados com aquelas gigantescas canoas com asas que deslizavam soberanas sobre o mar infinito.

Na educação sistemática o fenômeno se repete. Nós, educadores, adoramos as “novidades” que são escritas por pesquisadores e filósofos estrangeiros. É Perrenoud (competências), é Fourstein (PEI), é Fulano e Sicrano. Mas esquecemos das contribuições inegáveis de pesquisadores, pedagogos e filósofos brasileiros e baianos. Poucos professores conhecem, de fato, o legado de Paulo Freire. Muitas vezes, quantas e quantas professoras com as quais trabalho em processo de formação, ou n’alguma palestra, vêm exigindo “novidades”. Eu retruco, afirmando que tem muitas coisas velhas que são válidas e são mal aproveitadas em nossas práticas educativas. E aí cito este verso, que tive acesso através da novela Laços de Família, na qual Toni Ramos, por fazer um personagem dono de livraria, recitou.


Lenha Velha pra queimar
Vinho velho pra beber
Um velho amigo pra conversar
Um velho amor para viver

O que é velho também é bom. Na verdade, toda novidade nasce da indagação das velhas idéias, dos velhos conceitos e noções. Estou procurando, cada vez mais, trabalhar nesse sentido, mostrando que a novidade aparece, ou seja, é produzida, pela nossa curiosidade sistematicamente dirigida e orientada para os fenômenos do nosso cotidiano, entre eles, os educativos, sobre ensino, aprendizagem, inteligência, função social da escola, entre tantas outras coisas. E é nessa perspectiva que passo a comentar o papel da escola pública ou privada diante do fenômeno da cultura, pois compreendo que a escola ainda é a principal agência socializadora sistemática de cultura, principalmente para as classes populares. (ah, não comentei sobre a influência da televisão, pois não tenho idéia de seu papel na contemporaneidade)

A função social da escola é educar em três dimensões: a política, a humana e a técnica. A cultura é entrelaçada neste processo. Uma escola da zona rural, por exemplo, deve estar comprometida com a cultura local, partindo desta e assegurando seu domínio e valorização por todos, sem no entanto, como frisei acima, protegê-la da relação com outras culturas, caso contrário, a escola estará negligenciando uma de suas funções sociais. O ideal seria partir sempre dos “achados” das crianças, jovens e adultos, a fim de ir valorizando, problematizando e comparando com outras abordagens e perspectivas culturais, permitindo aos educandos que percebam as principais abordagens.

A escola, portanto, tem de procurar conhecer a política cultural da comunidade/sociedade em que está inserida. Para isso, a escola – seus funcionários, administradores e professores - tem de ser educada também, acionando um projeto político-pedagógico e um currículo comprometido em valorizar, de antemão, as perspectivas culturais locais em relação permanente com as demais influências culturais que compõem o cenário atual do nosso processo civilizatório.

Autoria: Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

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