SE EU QUISER FALAR COM DEUS
Gilberto Gil (1980)
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
dos sapatos, da gravata
dos desejos, dos receios
tenho que esquecer a data
tenho que perder a conta
tenho que ter mãos vazias
ter a alma e o corpo nus
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
do que eu pensava encontrar
Dona Maria, assim como nosso querido Gilberto Gil queria “ficar a sós, apagar a luz, calar a voz...” Para conversar com Deus, esquecia a data e entrava de mãos vazias, com a alma e o corpo nus. Fora é o mundo com suas exigências que nos atrapalha o encontro conosco, com nossa intensidade mais fecunda e profunda, com nossa subjetividade altamente reflexiva, que é dentro, como um espelho diante de Deus. Algo que me assusta em alguns intelectuais profissionais, incluindo muitos professores e estudantes, pois todo ser humano é intelectual, Gramsci ensinou-me isto, é que desdenham dos saberes populares, relegando-os a segundo plano e se enfurnando em teorias, pesquisas e mais teorias que somente constatam tal sabedoria. Eles e elas esquecem de que as pessoas das classes populares produzem seus saberes e reflexões no mesmo grau de profundidade que qualquer outra pessoa, e que as mudanças são apenas de tipo de conhecimento, não de hierarquia de verdade.
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sósTenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
dos sapatos, da gravata
dos desejos, dos receios
tenho que esquecer a data
tenho que perder a conta
tenho que ter mãos vazias
ter a alma e o corpo nus
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dorTenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurarTenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
do que eu pensava encontrar
O poema, a música e, sobretudo, a oração de Gilberto Gil é uma produção cultural das mais belas com as quais me deparei. Sou suspeito para falar, pois sou fã incondicional de Gilberto Gil e admiro todas as suas composições. Todas, embora goste mais de algumas, o que é natural. Seu poema, canção, oração, sugere caminhos para quem quiser falar com Deus. Nem sempre a gente está a fim de falar com Deus, creio que por isso o título sugere uma possibilidade, não uma obrigação. Falar com Deus é coisa muito profunda. O título sugere que não deve ser uma conversa mecânica, automatizada pela obrigação religiosa alienante. Quando eu quiser falar com Deus, eu não posso fazê-lo como quem faz algo corriqueiro. Falar com Deus é, repito, coisa muito profunda, que exige cuidadosa preparação espiritual diante da Divindade Suprema do cosmos. Por isso Gil sugere pistas de como ficar preparado para esse diálogo fecundo. É preciso um ritual rigoroso a ser seguido para aproximar-se humildemente do Senhor Supremo.
A oração está dividida em três partes: Na primeira, constitui uma espécie de afastamento do mundo e suas mil e uma obrigações. Logo de entrada é preciso ficar a sós. E isto me lembra Dona Maria, lá da Rua do Bode no Calafate, quando recitava um verso antigo antes de rezar, como um ritual de entrada na Casa do Senhor para ficar mais intimamente em sua companhia. Dizia ela:
“Pensamento fique fora,
não entre comigo dentro,
vou louvar a Virgem Maria
e o Santíssimo Sacramento.”
Dona Maria, assim como nosso querido Gilberto Gil queria “ficar a sós, apagar a luz, calar a voz...” Para conversar com Deus, esquecia a data e entrava de mãos vazias, com a alma e o corpo nus. Fora é o mundo com suas exigências que nos atrapalha o encontro conosco, com nossa intensidade mais fecunda e profunda, com nossa subjetividade altamente reflexiva, que é dentro, como um espelho diante de Deus. Algo que me assusta em alguns intelectuais profissionais, incluindo muitos professores e estudantes, pois todo ser humano é intelectual, Gramsci ensinou-me isto, é que desdenham dos saberes populares, relegando-os a segundo plano e se enfurnando em teorias, pesquisas e mais teorias que somente constatam tal sabedoria. Eles e elas esquecem de que as pessoas das classes populares produzem seus saberes e reflexões no mesmo grau de profundidade que qualquer outra pessoa, e que as mudanças são apenas de tipo de conhecimento, não de hierarquia de verdade.
No segundo ato da peça Gil nos fala, não sei se há ironia aí, de outra disposição para falar com Deus: a dor. Creio que há certa influência de uma filosofia indiana aí. Ao ler este trecho lembrei-me logo de Herman Hesse, principalmente do seu livro “Sidarta”. O aprendizado de Sidarta caminha pelo abandono de si mesmo, pelo encontro e aceitação resignada da dor como caminho para o encontro com Deus. E há um senso comum arraigado na sociedade e alimentado ideologicamente pelas igrejas de pastores de televisão que pode ser exemplificado com o seguinte enunciado: “Se não vem (para Deus) por amor, vem pela dor”. Esta ideologia terrorista para atrair novos clientes, digo, fiéis, para a religião que a divulga não neutralliza a força poética da dor como caminho de diálogo para Deus. Muitas vezes, para encontrar a poesia, a gente precisa de dor, de tristeza, pois “pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba não.” Gil nos avisa que para falar com Deus não importa beleza, luxo, conforto, bem-estar. Quando nos deparamos com o sentido último da existência, a gente precisa humilhar-se para poder falar, pois tratamos com “Aquele que É”.
Talvez também possamos ver na multiplicidade de sentidos, uma ácida crítica à ideia que assegura a ideologia do “buraco da agulha”. Que deus é esse que precisa de tanta dor, tanta pobreza, tanta humilhação para falar com ele? Que história é essa de que só os pobres mais trucidados pela acumulação e concentração de renda podem falar com Deus? Certamente os ricos adoram essa ideologia, que legitima com tons divinos os seus privilégios sociais, culturais e econômicos.
Depois de ficar a sós, de calar a voz, de se humilhar e “comer o pão que o diabo amassou” é hora, na terceira parte, de se aventurar. Arriscar a subida sem nada que assegure seu sucesso na empreitada. Há sempre a possibilidade da queda, do salto mortal no abismo para o encontro com o nada. Há outra idéia de que para falar com Deus é preciso fazer a sua parte, encontrar, digamos, no “meio do caminho”. Por isso é preciso subir. Na Bíblia há essa ideia de subir a montanha para falar com Deus. Foi assim com Moisés e com outros. Eu adoro subir montanhas para rezar lá de cima. Para mim Deus não está em igreja alguma. Está na montanha. É lá onde o encontro.
Depois de ficar a sós, de calar a voz, de se humilhar e “comer o pão que o diabo amassou” é hora, na terceira parte, de se aventurar. Arriscar a subida sem nada que assegure seu sucesso na empreitada. Há sempre a possibilidade da queda, do salto mortal no abismo para o encontro com o nada. Há outra idéia de que para falar com Deus é preciso fazer a sua parte, encontrar, digamos, no “meio do caminho”. Por isso é preciso subir. Na Bíblia há essa ideia de subir a montanha para falar com Deus. Foi assim com Moisés e com outros. Eu adoro subir montanhas para rezar lá de cima. Para mim Deus não está em igreja alguma. Está na montanha. É lá onde o encontro.
E a gente cria expectativas diversas sobre Deus, o mundo espiritual, os anjos, os santos, nossos entes queridos que já morreram e, pode ser que, ao final dessa estrada, não haja nada. Há essa possiblidade. Há certo ateísmo nesta oração, música, poema. Por isso é preciso crer. Crer no invisível, no que não está dado e que, inesperadamente, pode acontecer. Entre mim e Deus é preciso haver um vácuo. É preciso retirar tudo da frente, reconhecer nossa pequenês e perceber que as mil e uma coisas do mundo nos dis-traem do encontro com Deus. É preciso soltar a mão, a corda, o apoio qualquer e, no momento da queda, acreditar que Deus o aguarda. Falar com Deus é quando não há nada nada nada nada nada nada nada nada, e isso, exige fé.
Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel