Meu sogro Ataíde é um sujeito sui generis. Ele tem umas tiradas que deixam minha sogra “tiririca”. Um dia desses, dias desses em Jacobina é um dia jacobinense, minha sogra e eu pedimos para ele comprar pão, entre às 16:30 e às 17:00. E ele saiu para realizar nosso pedido, pois aguardávamos para o café da noite, que é servido entre 18:30 e 19:00 horas. Esperamos, esperamos, esperamos e, faltando pão e paciência, amenizamos com a macaxeira e o ovo frito com o cafezinho que a minha sogra querida transforma com pó, fogo e água, numa magia que só ela sabe. Quando deu lá pras 20:00 h e muitos, muitos minutos depois, chega o “ cavalheiro da triste figura” quixotesca, trazendo o pão e um bafo familiar. Eu e Dona Lídia nos entreolhamos e, meio espantado, meio calejado, indaguei o motivo de tanta demora, ao que ele respondeu, de prontidão, pois de certo já vinha com a resposta na ponta da língua: “- Meu filho, Jacobina fica muito longe!” Com certeza o arteiro parou em algum boteco para bater papo e esqueceu do alimento, mas lembrou-se biblicamente de que “nem só de pão vive o homem”, mas de uma pinga e de uma boa “conversa fora” também.
Bem, são por essas e outras que eu gosto do meu sogro, um ser humano que inventa a sua existência nos estreitos espaços concretos que, com sua criatividade, amplia horizontes, utilizando os múltiplos sentidos que o circundam em seu cotidiano. Basta situar que a padaria fica a menos de 150 m de casa. Mas eu fiquei pensando sobre a riqueza de sua “tirada”: "Jacobina fica muito longe". E isso me fez pensar sobre distâncias e tempos, sobre distâncias e sociedades, ações, sonhos e realidades. Seu Ataíde abriu-me caminhos para pensar outras coisas associadas ao seu enunciado. Fico pensando, por exemplo, que toda cidade tem uma distância de seus cidadãos, distância que aumenta ou diminui conforme os recursos financeiros, educacionais, políticos e sociais que tais cidadãos dispõem. Há uma distância de uma cidade para si mesma que teria de requerer um mapa diferente. Uma cartografia que pudesse mapear os pontos de desperdício da experiência, da solidariedade, da polidez, da urbanidade, das possibilidades citadinas que estão latentes na natureza e na sociedade, que são possibilidades que podem ser acionadas por políticas públicas construídas o mais participativamente possível, mas que estão distantes da cidade cotidiana que se acostumou com a sua pobreza repetitiva e seu abandono indolente.
Jacobina ainda guarda uma distância considerável de si mesma. Ela está maltratada, precisa tomar um banho, limpando seus rios poluídos que desfilam sujeira e odor bem no centro de sua cidade, deixando as águas doces correrem em paz para o seu destino de vida corrente e remansos, que traz alegria para os ribeirinhos e demais vizinhanças. Jacobina precisa voltar no tempo em que os meninos tomavam banho na “prainha” e resgatar a beleza natural que constitui sua origem. Não há mais "prainha", espaço público e democrático de mergulhos e infâncias. Agora há o espaço privado do Hotel Fiesta para isso, num rio artificial onde nem todas as infâncias podem realizar seus sonhos de “Aquamen e Namor”. Jacobina precisa acolher seus filhos, principalmente os que vêm das zonas rurais, e tratá-los cuidadosamente, com respeito e acolhimento decente. Há uma distância enorme entre as crianças da zona rural e das periferias do município que precisam de acesso a médicos, parques infantis, quadras de esportes, escolas públicas com eficácia na aprendizagem e eficiência no ensino, incluindo os professores e demais profissionais da educação comprometidos com a ascensão humana dessas crianças. Há uma distância que me incomoda. Nos bancos locais, nos restaurantes, nos hotéis, nos bares e até nas ruas ardentes de verão eu percebo distâncias. Jacobina, assim, fica muito longe de seus filhos e filhas.
E é difícil chegar nela, seja pelo transporte clandestino, seja pela detentora oficial do uso exclusivo da BR 324 em termos de serviços de transporte coletivo, protegida pela AGERBA: a Viação São Luiz ou Falcão Real, que seja. A distância social é muito maior que a distância rodoviária. Agora a distância concreta ficou ainda maior com as crateras que vão de Capim Grosso até o povoado de Paraíso, um pouco antes de Jacobina. Parece que há interesses escusos que dificultam o acesso das pessoas à Jacobina. Os buracos produzem distâncias cansativas para nos fazer desistir de chegar. Os buracos na pista aumentam consideravelmente a possibilidade de acidentes, pois não há mais possibilidade de desviar deles a não ser indo para o acostamento, como mostra a foto acima. O estresse, o desconforto e o perigo são consequências nefastas dessa distância. Mas a distância maior é dos poderes públicos para com nossos direitos. A Polícia Rodoviária Estadual e Federal prende e multa quem desrespeita as leis de trânsito. Deviam prender e multar os gestores públicos que deixam uma estrada virar uma armadilha contra a vida.
E é difícil chegar nela, seja pelo transporte clandestino, seja pela detentora oficial do uso exclusivo da BR 324 em termos de serviços de transporte coletivo, protegida pela AGERBA: a Viação São Luiz ou Falcão Real, que seja. A distância social é muito maior que a distância rodoviária. Agora a distância concreta ficou ainda maior com as crateras que vão de Capim Grosso até o povoado de Paraíso, um pouco antes de Jacobina. Parece que há interesses escusos que dificultam o acesso das pessoas à Jacobina. Os buracos produzem distâncias cansativas para nos fazer desistir de chegar. Os buracos na pista aumentam consideravelmente a possibilidade de acidentes, pois não há mais possibilidade de desviar deles a não ser indo para o acostamento, como mostra a foto acima. O estresse, o desconforto e o perigo são consequências nefastas dessa distância. Mas a distância maior é dos poderes públicos para com nossos direitos. A Polícia Rodoviária Estadual e Federal prende e multa quem desrespeita as leis de trânsito. Deviam prender e multar os gestores públicos que deixam uma estrada virar uma armadilha contra a vida.
Um rosto crispado de um gerente de banco para um cliente pobre; uma palavra maldita do médico que nem olha para o paciente humilde; uma fila enorme para chegar até ele; a distância de uma mulher agredida pelo marido para o agente policial, em busca do registro da queixa; um olhar sistematicamente desconfiado do policial para com o jovem negro; um atendente de loja ou de outra instituição impaciente com a senhora que tem dificuldade com as novas tecnologias; um professor que falta a aula por motivo fútil; tudo isso, entre outras atitudes, aumenta distâncias dentro da mesma cidade, que vai se afastando, deixando de frequentar nossos sonhos e desejos, além de multiplicar as necessidades de seu povo, que, por isso mesmo, vai deixando de ser seu povo e vai fugindo para distâncias onde, talvez, não queira mais ser encontrado, quando, quem sabe, a cidade se arrepender de sua atitude egoísta e grosseira. Numa cidade assim indivíduos isolados se relacionam prejudicialmente com a mesma, devorando-a sem tentar decifrá-la, corrompendo-a, sem tentar moralizá-la. É preciso trazer a cidade pra perto das pessoas que nela residem e que dela precisam.
É preciso começar com uma cartografia das distâncias citadinas. Os braços da cidade estão em cada instituição, em cada profissional, em cada cidadão que nela vive. As mãos também. Mas percebo que cada vez mais nossos braços estão se cruzando, que nossas mãos estão se fechando, e que estamos dando bananas uns para os outros. Aumentando distâncias e ficando sozinhos. Essa nova cartografia precisa rascunhar as fronteiras, precisa ver nos buracos da estrada um desrespeito profundo a um povo de um território. A falta de educação social faz fronteira com o quê? A precária saúde pública traça seus contornos com que região humana e institucional? Qual a distância entre a circulação do dinheiro e a felicidade das pessoas que moram numa cidade? É preciso fortalecer ou começar movimentos de cidade, visando, sobretudo, mapear e reduzir distâncias cruciais de vida e bem-estar. Indicadores é que não faltam para medir tais distâncias e os desdobramentos delas: PNUD, IBGE, MEC, SAEB, ENEM, IDH, entre outros que mostram a que distância estamos, não de São Paulo ou do Japão, mas de nós mesmos, de nossa busca em fazer do nosso lugar um lugar que se chega sem dificuldades e cuja distância é reduzida por uma cultura de solidariedade, de urbanidade, justiça e igualdade de tratamento. O que exige uma cultura política democrática, participativa, comprometida com os problemas que seu lugar apresenta. Mas creio que estamos muito distante disso. Pior que o terremoto e o tsunami japonês é a nossa indiferença com a cidade que desejamos e, por isso mesmo, ela está do outro lado do outro lado do mundo, numa distância incomensurável de quem nela vive e, principalmente, de quem com ela morre. Enquanto isso, tô com Ataíde: Jacobina fica muito longe.
Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.
Parabéns professor pelo belíssimo texto.
ResponderExcluirObrigado Filha. E vamos pensando o concreto real a fim de transformar o concreto pensado a favor da maioria dos seres humanos.
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