quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

ACIMA DA LEI, ABAIXO DA LEI

A greve dos policiais militares do Estado da Bahia está servindo bastante para meu amadurecimento político. Pensando nos acontecimentos da hora vou juntando-os, dispersos que estão em meios e mensagens divulgados por atores diversos. Vou juntando-os num conjunto ordenado de sentido que as abordagens teóricas que domino me permitem. O combate ideológico está acirrado, e a Rede Globo entrou jogando forte nesse jogo político-ideológico que agora se dá. Através de Alexandre Garcia, entre outros de seus repórteres, utiliza-se da Constituição Federal para marginalizar os policiais que fazem greves e paralisações em busca de assegurar direitos tais como a aprovação da PEC 300, proposta que cria o Piso Salarial Nacional para policiais e bombeiros.

A Lei Magna do país é utilizada ideologicamente a fim de questionar a legitimidade do movimento dos policiais e bombeiros baianos. A Lei. Mas, lei? Que lei? Começo a lembrar de uma frase de algum intelectual cujo nome não recordo, que, entre tantas outras coisas, afirmava que as classes dominantes estão acima da lei, enquanto as demais classes estão bem abaixo dela. A lei não importa para os primeiros, que sempre a atropelam quando seus interesses estão em jogo. Para os demais, a lei é uma miragem e a cidadania que a Revolução Francesa nos propiciou, muitas degolas depois, é um termo sem sentido prático para a maioria dos tupiniquins. Quando lutamos para fazer valer a lei, o estado aciona sua burocracia, seu aparelho ideológico e repressor (policias, exército) para silenciar-nos e restabelecer a ordem da desordem dominante.

De fato, a depender de quem comete o crime, ou, para utilizar um eufemismo “dilmista”, um “mal feito”, nenhuma punição o aguarda, e toda a população brasileira sabe disso, tanto é que nem espera o veredito, ou, certamente, já o espera. Em nosso Brasil, "bandidos de toga" que se utilizam de suas privilegiadas posições de poder no sistema judiciário para fazerem “mal feitos”, não vão presos, nem devolvem os super ganhos que obtiveram do sucesso de sua empreitada criminosa. São aposentados sem perdas salariais, como recompensa. Os políticos também seguem a mesma cartilha. Não ouvi falar ainda de que algum deles, envolvidos em desvios de verbas, falcatruas e “maracutaias”, para utilizar um termo bem lulista, tenha sido preso de verdade ou devolvido o que tomou dos impostos ferozes que corroem o poder de compra dos mais pobres que, proporcionalmente, são os que mais pagam impostos nesta nação.

Nas favelas, no Senado
Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a Constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?

Creio que nossa paciência está se esgotando e perguntando-se com uma legião urbana e rural de indignados: Que país é esse? Que Constituição é essa? Que funciona para a maioria e é ineficiente para uma pequena, porém privilegiada minoria? Esse “ninguém” que desrespeita a Constituição não são os pobres, os favelados, os funcionários públicos de carreira, os policiais, professores, engenheiros, enfermeiros, entre outros. Esse “ninguém” tem apenas uma denominação categórica: classe social detentora dos meios de produção, para usar uma denominação bem antiga. Mas, como diria João Cabral de Melo Neto, isto ainda explica pouco. A cultura é outra dimensão fundamental para nos aproximarmos de uma compreensão do que acontece em nossos domínios territoriais.

O processo de escravatura e o patrimonialismo no Brasil deixou marcas indeléveis em nossa cultura, que se reflete no modo como concebemos e significamos acontecimentos, pessoas e situações que se desenrolam em nosso singular processo histórico. O Capitalismo no Brasil, tal como concebido pela filosofia liberal, foi introduzido em função das concepções culturais reinantes daquele momento histórico. Por isso não podemos conceber que há apenas um capitalismo: há capitalismos, tal como vão sendo engendrados pelas culturas que vão penetrando, mesmo em se levando em conta os efeitos da globalização. Penso que o Estado de Direito Moderno, se é que assim devemos denominá-lo, absorveu as incongruências advindas da cultura portuguesa e do escravagismo que reinou por muito tempo em nossa história. Os senhores de escravos tinham direitos plenos sobre os escravos e, nenhum dos crimes que cometiam para manter a ordem escravocrata no seu domínio feudal, ou fazenda, tais como estrupos, homicídios generalizados, torturas cruéis, entre outros, não eram considerados crimes e, portanto, não eram passíveis de punição. Já especulando, penso que isso tenha chegado até nossos dias. Os senhores e as senhoras atuais na politica, na economia e no Direito não cometem crimes, senão “mal feitos”, pois são donos dos ministérios e dos órgãos do governo que ocupam e, como donos, podem fazer o que bem entender, ou simplesmente nada fazerem. Não há punição para eles e elas porque, simplesmente, a lei não os alcança, e talvez por isso mesmo seja cega. Apenas para eles e elas.

Outra herança cultural que explica bem o nosso comportamento social atual, advindo da escravidão no Brasil é a percepção do trabalho como coisa de escravo, ou seja, naquela época, de gente desqualificada. O trabalho aqui no Brasil se contrapõe ao estudo. Tanto é que a gente diz: – Tá vendo? Não estudou. Está aí nessa vida de faxineiro, agricultor, pescador, lavadeira, empregada doméstica, gari, prestador de serviços gerais, etc, etc, etc. Ainda temos uma concepção estranha de que quem estuda deve trabalhar menos e ter regalias diversas diante de quem "não estudou". Eu imagino que quanto mais estudamos é porque mais trabalhamos. Estudamos para entender melhor o mundo que nos desafia e agir de forma mais eficiente sobre ele, através do árduo trabalho. Ainda hoje eu vejo algumas famílias se orgulharem e dizerem que seus filhos fazem “Direito” ou “Medicina”, doutores que jamais poderiam lavar um prato ou varrer uma casa, ou seja: limpar sua própria sujeira. É que no Brasil antigo essas profissões foram as primeiras de nível universitário, com cursos na Bahia, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Os doutores de “anel no dedo” eram tratados com regalias e privilégios e isto se reflete na cultura da nossa gente até os atuais dias brasileiros. Quem trabalha nesse país com braço, suor e dor não é valorizado. Chico César, com sua poesia concreta nos alerta sobre esse comportamento cultural até os dias atuais quando afirma que:

A tinta pinta o asfalto
Enfeita a alma motorista
É a cor na cor da cidade
Batom no lábio nortista
O olhar vê tons tão sudestes
E o beijo que vós me nordestes
Arranha céu da boca paulista

Os tons tão sudestes, tão racistas, tão machistas, tão preconceituosos ainda dão os tons por estas paragens nacionais, sem reconhecer o sabor gostoso e emancipador do beijo nordestino em suas ruas, seus monumentos, seus edifícios e construções, enfim, sem reconhecer o valor daqueles que ergueram com braço, saudade e dor as grandes construções em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Manaus, entre outros estados dessa federação. Como diria Patativa do Assaré, Seu doutor me dê licença para outra história contar e, sobretudo, fazer. Não precisamos fazer outra Constituição. Não. Precisamos fazer justiça!!! Precisamos que a lei escrita seja cumprida em sua letra e não empalidecida pelo conjunto de estratégias legais que liberam o criminoso e marginalizam e encarceram o povo. Não. Não é de lei que estou falando. Na verdade estou falando de uma história que precisa urgentemente ser mudada, ainda quando estamos vivos. Precisamos que o conjunto de dispositivos legais não seja apenas escritos fajutos que representam os interesses de uma classe social. É hora de fazer valer a força do trabalhador, dos marginalizados, dos desesperados, dos excluídos de modo geral. É hora de usar a Constituição a nosso favor e atuar na superestrutura social com a força que brota das indignações que se somam nessa história tipicamente brasileira que nos nega, mas que lutamos bravamente para nos assumir em nossa plenitude de direitos e ficar no mesmo nível da lei no Brasil, que tem os olhos bem abertos para discriminar.

Joselito Manoel

2 comentários:

  1. Adorei seu texto, muito reflexivo e gerador de futuras ações.

    Continue assim. Agente de seu tempo...

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  2. Obrigado Fábio,
    Precisamos da nossa primavera. Precisamos acabar com tanto desperdício do dinheiro público, com as propinas e as vantagens do judiciário, do executivo e do legislativo e colocar os três poderes na linha, a serviço da felicidade e da realização do seu povo, que mantém esse país a duras penas.

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joselitojoze@gmail.com