quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

DESEJAR O NOVO

Rubem Alves, num de seus muitos textos, afirma que não podemos desejar o novo, pois só desejamos aquilo que já experimentamos e que nos deu sabor, nos deu delícia, realizou em nós “o princípio do prazer, sonho que o tempo não desfaz.” O beijo ardente, “a sensação suprema dos mortais, o gozo são e soberano dos animais”, o carinho materno, o abraço orgulhoso do pai. “Um dia feliz as vezes é muito raro”. Verdade. Se não o fosse, seria mais um dia banal. Fala-se muito mal dos dias banais, bem como se teme a escuridão. Mas, fico pensando: o que seria dos dias felizes se não fossem os dias banais? E o que seriam dos vagalumes e do luar se não fosse a escuridão?

Alves nos fala que desejamos repetir eternamente, mesmo sabendo racionalmente ser impossível, a experiência do que nos fez felizes. Desejamos que o raro se torne banal em nossas vidas, e nem pensamos sobre isso, porque, se pensarmos, deixamos de desejar ardentemente o retorno eterno do sabor que a língua nunca esqueceu e que, tocada inteiramente, espera reencontrar. O sorvete, o beijo, o gozo, o olhar, a paz, a festa, a fogueira acesa, a família, a viagem, o rio, o frescor e a transparência de suas águas, os risos, as mãos, cantos e encantos tudo isso num encontro de céu que a gente deseja que nunca acabe. E tudo isso espera em nós, pulsando uma saudade, uma vontade poderosa de reencontro, que nos impulsiona à busca do impossível. Desejamos retornar ao paraíso perdido.

Talvez por isso o passado e o futuro sejam tempos tão importantes para nós. No passado reside a experiência. No futuro habita a realização. E assim, se não foi hoje, amanhã será melhor. Algo bom vai acontecer ainda que não exista nem indícios de sua concretização, para que alguém que espera possa novamente provar do gosto que faz a vida valer a pena. E esse dia ainda não chegou, mas há de vir! Para que Deus possa voltar a existir na vida de muitos que creem.

Entretanto, na vida de muita gente, não há tempo para o eterno retorno. Não há futuro, nem há passado, só um presente ameaçador e desconfortável. Não há tempo para pensar, somente para sofrer e para fugir. Fogem todos os dias para qualquer lugar distante do sofrimento, muito embora este último tenha pouco de permanência e muito de fugaz. Essas pessoas sofridas enfrentam todos os dias a face cruel do mundo, sem finais e sem pausas para os comerciais. E só lhes resta imaginar e inventar brechas, becos, vielas, estreitos espaços por onde alcancem seus momentos de fuga da barbárie. Os sabores são odores; o carinho é a agressão; o abraço é o tapa; a fogueira é a ameaça acesa; a mãe é a perdida, o pai é o vilão. O que há para voltar? A mesma barbárie em suas mãos? A violência em suas atitudes? O sabor da morte no coração? O abandono como presente? E o futuro com uma única indagação: – por que?

O que será o novo para essas pessoas? O que pensar para frente de suas vidas se até agora o poder da morte imperou? Morte com morte? Crueldade com crueldade ainda maior? Como sair dessa equação infernal? Como? Creio que a saída é procurar empiricamente todos os indícios que a vida deixa no império da morte. Na linguagem, nos gestos, nos pequenos detalhes há rastros de esperança que ficam como vagalumes no escuro. Mesmo que precários, em seu acende e apaga, os lumes são traços de esperança de que a vida nunca desiste, e se mantém corajosa e criativa diante da imensidão do breu. Os lumes vagos e intermitentes até flertam com a escuridão e a enfeitam, dando-lhe um toque mágico que prenunciam o amanhecer fundante de toda pequena ou grande esperança. É preciso procurar esses lumes nas pessoas sofridas, aviltadas em sua dignidade e identificá-los como elementos imprescindíveis de fé, esperança, justiça e amor. É preciso crer numa gestação de um novo ser dentro do sofrido e amargurado ser. Mas isso não é fácil.

O mais fácil é marginalizar aquele que sofre. Assim não nos sentimos responsáveis pela desgraça alheia e não nos incomodamos com seus desdobramentos. Não podemos nem transformá-lo em coitadinho, nem em um animal perigoso e devorador da precária ordem em que nos movemos com dificuldade. Mas é difícil. Vivemos num mundo que requer cada vez mais o nosso tempo e nos suga com muitos canudinhos, cada um de uma instituição e espaço social. Além do tempo que dedicamos à família, temos que dedicar tempo ao trabalho que cada vez mais invade nossa privacidade, além do tempo que temos de dedicar aos múltiplos apelos do cotidiano. E, além disso, ainda temos isso como justificativa para nos escondermos do que mais importa e que vale a pena.

Eu não sei. Para as pessoas que estão sofrendo nesse momento os dias banais não existem. Não existem porque o sofrimento, pode até ser tornado banal para a sociedade, mas, para quem sofre, é bastante relevante. Nesse contexto é preciso desejar o novo, o que ainda não existe, o que ainda não foi provado como sabor gostoso da vida, como amor, carinho, atenção, companheirismo, abraço e ombro amigo. É nesse momento que todo ser humano entende que, mais do que qualquer mercadoria, o encontro solidário entre os seres humanos é que nos dá a paz e nos realiza enquanto pessoas em sua plenitude. Não é o tempo que vai nos conduzir à nossa humanidade sublime. Nem sei se alcançaremos isso. Mas, a partir das vidas de pessoas como Leonardo Boff, Divaldo Franco, Irmã Dulce, Madre Teresa, Santo Dias, Betinho, Frei Beto, entre tantos outros e tantas outras, anônimos ou não, nutro esperanças. Suas vidas são, como a de todos os humanos, fugazes, mas suas ações ficam como lumes na escuridão da humanidade, piscando a esperança imortal na alvorada humana.

Joselito de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel   

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