Estava lembrando-me da metáfora do Rei Midas que tudo que tocava virava ouro. O homem mais rico do mundo e, ao mesmo tempo, o mais infeliz. O ouro não serve para amar, nem para comer, nem para matar a sede e muito menos para viver. Recordei-me também de um filme: “O ouro de Mackenna”, com Gregory Peck, Omar Sharif e Telly Savalas, três excelentes atores do passado. O agora velho Omar Sharif de vez em quando aparece fazendo algum filme como “O 13º Guerreiro”, com Antônio Banderas. A sinopse de “O ouro de Mackenna” é a seguinte:
O delegado MacKenna perseguia a gangue do bandoleiro Colorado quando, ao cavalgar pelo deserto, é alvo de tiros dados por um velho chefe Apache. Ao responder aos tiros, achando que eram os bandidos, MacKenna acaba ferindo mortalmente o índio. Antes de morrer, o chefe lhe dá um antigo mapa que, segundo ele, traz o segredo da localização do 'Canyon del Oro'. Mas o alerta que, ao encontrar o veio de ouro, despertará a fúria de antigos deuses. MacKenna conhecia a lenda sobre o rico veio de ouro dos Apaches e do garimpeiro Lost Adam, que o teria descoberto e fora tornado cego pelos índios para que não achasse mais o local. Ele não acredita no velho e joga o mapa no fogo. Mas grava o desenho na memória.
O desfecho do filme vai comprovar a ira dos deuses e demonstrar a modificação do comportamento de homens e mulheres diante do brilho sedutor do valorizado mineral. Amigos tornam-se inimigos, parceiros matam-se, ali mesmo, deixando sobre o pó amarelo um rastro escarlate de sangue. Todos querendo para si todo o ouro, impossível de ser transportado naquele contexto. O sábio é o personagem cujo nome dá origem ao filme: Mackenna. Mas, claro, se você quiser saber todo desfecho, só assistindo. Acredito que poucas pessoas neste mundo recusariam uma aventura em busca do ouro. Aliás, creio que já vivemos assim, numa aventura em busca de mais e mais algumas graminhas de ouro para concretizar sonhos pessoais. Garipamos aqui e ali. Viajamos acolá onde notícias nos trazem informações sobre algum ganho amarelo a mais. É certo que nesse mudo sem dinheiro não há conforto, não há o carro, não há casa, não há saúde, nem há educação e segurança. Mas o grande problema que o filme mostra é que, ao chegar ao fim do arco-íris, com toda aquela abundância que daria para todos e ainda para muito mais pessoas, os seres humanos são tocados pela febre do ouro, e a insanidade se instaura, desejando tudo apenas para si. E nesse momento o ser humano abandona os seus valores e torna-se um homicida impiedoso. Esquecemos que o mais importante da aventura do ouro não é o ouro propriamente dito, mas a aventura. É a aventura que é o ouro! É nesta que o ser humano é transformado, é lapidado ou não, e, o fim do arco -íris, encontramos a nós mesmos, sempre outro, algumas vezes mais humanos.
Mas o ouro carrega com ele uma maldição: desperta a ira dos deuses e não dá sossego a quem o possui. O ouro provoca uma febre no ser humano e o destitui de seus valores no instante imediato que seu brilho brilha nos olhos dos insensatos. Já não basta o conforto, nem o bem-estar. É preciso mais, é preciso proteger o bem adquirido e isso exige poder concentrado. Isso exige que a indústria da morte comece a operar e fabricar os corpos oferecidos no altar adornado de ouro. Os filhos se matam pela herança amarela que o falecido pai ou a falecida mãe deixou; os parentes se enfrentam e se aniquilam, tentando concentrar em suas mãos toda a riqueza produzida por quem morreu. E quem morre, morre sempre à míngua. Nada leva, nem o próprio corpo que os vermes apreciam saborosamente. Mas o que isso tem a ver com o título deste texto? Qual a relação com o carnaval?
A questão não é o ouro. É o ser humano e seu modo de viver e compartilhar as riquezas desse mundo. O modo como construiu historicamente a forma de distribuir tudo o que produz: a economia, a ciência, a educação, a cultura, o lazer, os objetos de uso, e todas as coisas produzidas pela humanidade. Criamos o capitalismo para organizar a distribuição da riqueza. E o capitalismo é uma força produtiva poderosa! É como diz Caetano Veloso: “a força da grana que ergue e destrói coisas belas.” Marx reconheceu que não existia, até aquele momento histórico, nenhum sistema produtivo que aglutinasse tantas forças produtivas para produzir rapidamente a transformação da natureza através do trabalho. Entretanto, nenhum sistema criado pelo ser humano é tão eficiente para produzir o ouro e, ao mesmo tempo, concentrá-lo nas mãos de poucos, produzindo, nessa febre, uma imensa miserabilidade, resultado da imposição da concentração do ouro nas mãos de poucos que, durante todas as suas vidas, não precisarão de todo aquele ouro, pois não terão nem tempo suficiente para gastá-lo. E assim a maldição vai passando de geração a geração. Raul Seixas explica bem isso para mim em sua música “Ouro de tolo”.
Eu devia estar contente
por ter conseguido
tudo o que eu quis
mas confesso abestalhado
que eu estou decepcionado...
Porque foi tão fácil conseguir
E agora eu me pergunto "e daí?"
Eu tenho uma porção
De coisas grandes prá conquistar
E eu não posso ficar aí parado...
Eu devia estar feliz pelo Senhor
Ter me concedido o domingo
Pra ir com a família
No Jardim Zoológico
Dar pipoca aos macacos...
Ah!
Mas que sujeito chato sou eu
Que não acha nada engraçado
Macaco, praia, carro
Jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um saco...
É você olhar no espelho
Se sentir
Um grandessíssimo idiota
Saber que é humano
Ridículo, limitado
Que só usa dez por cento
De sua cabeça animal...
Eu me sinto assim também. Percebo a grande insensatez que é o acúmulo desenfreado de riquezas e a consequente produção de suas pobrezas e miserabilidades. Sei. Também corro atrás do ouro para pagar minhas contas e atender minhas básicas necessidades. Mas não quero o ouro só para mim. Tem ouro pra todo mundo, se todo mundo quiser retirar suas cercas, reduzir seus depósitos, dividir suas posses. Mas isso, neste contexto histórico, soa como ingenuidade romântica, quase como uma loucura. Mas, quem sabe se não é esse romantismo e essa quase loucura que vai nos salvar da destruição total e da barbárie?
O carnaval era uma festa popular, onde a criatividade, a espontaneidade e a liberdade libertária do carnaval, com um alegórico governo momentâneo, o Rei Momo, com as chaves da cidade na mão, “abria os trabalhos” para que imperasse o povo nos seus domínios. Havia os cordões, os grupos que inventavam suas fantasias, suas críticas, suas sátiras e seus teatros mambembes, transformando as ruas em espaços democráticos de manifestação. O colorido era muito mais colorido e os sons eram muito mais criativos e diversos. Não era todo mundo que entrava na brincadeira! Só quem trouxesse alegria. E na alegria a gente fazia um povo inteiro, de todo o mundo. Da Cochinchina à Patagônia, quem trouxesse alegria era baiano, era irmão de fé e podia abraçar a gente, suado e fedendo. Mas aí chegou a indústria cultural. E inventou o abadá, um pedaço de pano cheio de merchandising, que torna todo mundo igual, como produtos de uma mesma máquina. O toque de Midas manifestou-se em sua maldição. Tornou ouro o carnaval e paralisou sua criatividade, sua espontânea manifestação. Criou o critério do financeiro e impediu que a alegria do povo adentrasse carnaval adentro. O baiano foi afastado do circuito. Numa cidade onde mais de 80% da população é negra, as cantoras que fazem mais sucesso são brancas. Isso é muito estranho. Márcia Short e Margareth Menezes deveriam, com suas poderosas vozes, fazer muito mais sucesso do que fazem. O professor Ubiratan Castro de Araújo afirma que
As mães de hoje hesitam agir como as nossas há 50 anos: sair dos bairros com 5 filhos fantasiados para brincar o carnaval. Somando o dinheiro do transporte, a roupa nova, o refrigerante, o hambúrguer, o picolé, etc... Pior é a questão da segurança: apertucho e criança perdida. É preciso levar o carnaval aonde o povo está, com a mesma qualidade artística do centro da cidade. (ARAÚJO, A Tarde, Salvador, domingo, 19/02/2012)
Esse é o grande efeito negativo do “toque de midas”, o brilho do ouro paralisa, retira a ontologia fundadora das manifestações culturais e esvazia de sentido o conteúdo cultural. Não há festa quando o povo que a faz é dela expulso. E, nesse sentido, discordo do excelente professor Ubiratan C. de Araújo, historiador e membro da academia de Letras da Bahia, quando ele afirma que
[...] Na mesma linha de farisaísmo, bradaram [os que criticam o capitalismo atuando na direção do carnaval] contra o pecado capital do carnaval, a mercantilização, como se fosse possível organizar uma festa para multidões na base da gratuidade geral. (ARAÚJO, A Tarde, Salvador, domingo, 19/02/2012)
Não é possível organizar uma festa para multidões na base da gratuidade geral. Concordo. Mas é indecente e paradoxal organizar uma festa para multidões quando o povo da terra que criou a festa é dela expulso. A indústria cultural corre desesperadamente atrás do ouro, concentrando-o nas mãos de poucos. E o atrai para nossa terra, não tão boa quanto antes, prometendo a alegria que retiraram do povo. Mas não é possível vender a alegria do povo. Assim como não é possível vender sua alma. Por isso o homicídio cultural impera no carnaval, concentrando em axés e pagodes sem sentido negando a musicalidade singular que o baiano tem. Eu que morei a maior parte de minha vida em bairro popular, ali no Calafate, San Martin, sei que festa não é tanto questão de dinheiro quanto de alegria compartilhada na espontaneidade do querer, que pulsa em nossos entrelaçamentos sociais e culturais. O "cordão do Bola Preta" no Rio de janeiro é uma prova disso. O "Paroano sai Milhó", aqui em Salvador, da mesma forma, com a participação de jovens, anciãos e coroas como eu, provam que com pouco dinheiro, se faz uma festa com muito glamour, muito povo, muitos encontros de alegres foliões que voltam às ruas para transformá-las em carnaval. Os turistas e seus “ouros”, nos acompanha, nos abraçando suados e alegremente surpresos com nossa forma de fazer uma festa.
Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes, do Carnaval e de Jesus, O Emanuel
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