A Igreja Católica tem grande poder
ainda na sociedade. Suas orientações são seguidas sem questionamentos e sem
reflexão, bem como as orientações de outras “torcidas organizadas”, digo,
religiões. Pelo menos as torcidas organizadas frequentam o mesmo estádio para
assistir a um mesmo evento, no caso, esportivo. Os religiosos, porém, nem isso
conseguem. Parece que o deus de um não se dá com o deus do outro e, colocar os
dois num mesmo espaço público poderia desencadear uma nova guerra santa. Parece mesmo que nem estão falando de Deus. Mas de
deus, uma criação de cada grupo que disputa, Bíblia a Bíblia, prece a prece, pregação
a pregação, a hegemonia pelas almas baianas e brasileiras que ainda não foram “salvas”
pelo deus de cada agremiação.
Bem, eu não quero ser salvo por
ninguém, senão pela própria Vida, que é, naturalmente, o caminho e a verdade. É
na vida que Deus está e é nela que eu vou exercendo minha humanidade possível.
Entretanto, o que desejo falar neste texto é sobre algo que já falei em outros
textos, mas desejo enfatizar em função do contexto que a vida apresenta com a
morte violenta de milhares de jovens. Outro dia estava assistindo o excelente
Programa Observatório da Imprensa, apresentado pelo experiente Alberto Dines, e,
neste programa, foi citado o número de pessoas que morrem pela violência no Brasil: quase
60.000 pessoas por ano! Número funesto de países em guerra civil. Ora, não vejo igreja alguma dizer algo sobre isso.
Talvez até justifiquem com a penitente resignação: “é a vontade de Deus.” Bem,
de Deus é que não é. Porque Deus é Vida. Pode ser de “deus”, a criação humana
de Deus. O deus de “lá ele e de lá ela”. Sei que não consigo ouvir tudo, mas no
plano e no alcance da minha audição pouco ouvi um líder religioso ocupar a
arena pública discursiva para denunciar essa matança, essa ausência do estado e
o nosso silêncio conivente.
Fazem discursos esperados, que não
comprometem ninguém, discursos fatalistas, acusando sempre o pecado do outro como origem de tanta violência. Ninguém chama a
atenção da secretaria de segurança pública, ninguém reflete o desgosto de Deus
diante de tantos assassinatos, de tanta corrupção, de tanta maldade e cinismo. Consideram-se
acima do bem e do mal, esses líderes religiosos, consideram-se, muitos deles e
delas, como se fossem o próprio deus. Semideuses, pois, do microfone que lhes
está reservado, eles pronunciam os discursos que se encontram na esfera do
regime de verdade carimbado e autorizado pela tradição. Foucault está certo.
Nas operações discursivas o que é mais importante e verdadeiro jamais será
dito. Nem pelo (a) pastor (a), nem pelo bispo, muito menos pelo cardeal. Ficará
no silêncio inquietante de quem sabe o que deveria ser dito, com coragem,
rompendo a margem institucional do dizer e enfrentando o cinismo, a intimidação
e as violências simbólicas e físicas que produzem silenciamentos.
Romper com essa margens estreitas
do discurso é fundamental para que enfrentemos as mazelas que os governos maquiam ou apagam de suas propagandas, que os pastores riscam do seu mapa discursivo, que
os bispos e cardeais preferem não pronunciar, não porque seja polêmico, mas
porque o equilíbrio dos podres poderes que nos regem depende muito desses
silenciamentos. Eu fui de uma geração que falava mais dos problemas sociais,
políticos e econômicos. Ainda herdamos os efeitos da luta pelas diretas já e
por todo o movimento político e social dos anos 80. Contudo, submergimos. Mas
agora, nesse contexto de tanta hipocrisia é preciso a pronúncia de cada vez
mais pessoas. É preciso uma primavera política, social e cultural à brasileira
e baiana.
A Igreja Católica, além de outras,
por exemplo, é contra o aborto. Que seja. Também, de certa forma, sou contra.
Mas uma criança que nasce numa maternidade que funciona precariamente é aborto
também. Um aborto em vida. Ter uma escola pública abandonada com professores
ruins é aborto também. Ter dificuldades em ser atendido em postos de saúde e
hospitais públicos e privados, jogados em macas, esquecidos pelos médicos que
tentam, com as condições péssimas de trabalho que têm, atender a todos e a
todas na medida do impossível, é aborto também. Ficar presos em ônibus lotados,
seja para ir ao trabalho, seja para voltar para casa é aborto também. Ser
assassinado numa cidade sem lei é aborto também. Aborto social, porque é
responsabilidade de um governo, que administra um estado ineficiente e cobrador
de impostos, manter a qualidade de vida de seus habitantes, pagadores de
impostos. E o assassinato de mais de 60 mil pessoas, como afirmou Marcelo
Freixo no referido Programa acima citado, tem endereçamento. Com raras exceções,
que por isso, tornam-se manchete em todos os jornais, são jovens negros e pobres
que vivem nas periferias dos grandes centros urbanos. ABORTO SOCIAL COM RACISMO
TRADICIONAL. Mas os “sábios” líderes religiosos calam sobre isso. Não reconhecem
e, portanto, nem se posicionam contra esse aborto sistemático praticado por
nossa falida sociedade.
Sair do “ventre livre” é fácil. Vou corrigir-me: Não é fácil e é doloroso, principalmente para a dona do ventre. Mas viver com saúde, educação, segurança e qualidade de vida é uma luta
constante que, muitas vezes, é perdida pelas crianças e jovens que as igrejas,
a todo fórceps, quer que nasçam, mas
talvez, não queiram ou, no mínimo não se interessam que elas vivam. É como
diria nosso brilhante e comprometido poeta João Cabral de Melo Neto:
Somos
muitos Severinos
iguais
em tudo na vida:
na
mesma cabeça grande
que a
custo é que se equilibra,
no
mesmo ventre crescido
sobre
as mesmas pernas finas
e iguais
também porque o sangue,
que
usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais
em tudo na vida,
morremos
de morte igual,
mesma
morte severina:
que é
a morte de que se morre
de
velhice antes dos trinta,
de
emboscada antes dos vinte
de
fome um pouco por dia
(de
fraqueza e de doença
é que
a morte severina
ataca
em qualquer idade,
e até
gente não nascida).
O
aborto social "ataca em qualquer idade", principalmente jovens negros e pobres, “ e até gente não nascida”. E o silêncio celebra cada morte
no esquecimento nos números dos cadáveres de todos os anos. Que os nossos líderes religiosos
falem sobre isso. Que não sejam como o bispo do filme "A Missão", de 1986, que se
cala diante do massacre dos índios e missionários em função das ambições colonizatórias
e “civilizatórias” dos portugueses.
Joselito
da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus,
O Emanuel.