quarta-feira, 6 de abril de 2011

Participação e autonomia: para além do diploma e da nota

Sobre o tema refletido no grupo 3, que se intitula “Avaliação em EAD – considerações do sujeito aprendente: autonomia e participação”, gostaria de fazer algumas ressalvas ao mesmo que, creio não foram abordadas neste grupo, deixando uma lacuna onde insiro-me como mais um sujeito de saberes, lançando meu olhar único sobre o objeto a que fomos convidados a refletir. Para fazer considerações de modo menos impreciso vou precisar do auxílio de outros intelectuais de maior envergadura sobre o tema da participação e da autonomia, a fim de enriquecer aliar às minhas reflexões e tentar garantir um mínimo de coerência e coesão ao meu discurso. Sobre a participação vou invocar Gustavo Luis Gutierrez e Afrânio Mendes Catani, que dão boas contribuições ao pensar sobre participação e; sobre autonomia invocarei João Barroso e Paulo Freire contando que terei capacidade de articular com esses autores o meu pensamento de forma que, no discurso aqui construído, nem eu deva esconder-me atrás dos autores renomados, nem deva, de modo a ferir a ética, utilizar das suas reflexões de modo a furtar suas ideias sem a devida autorização, como se fossem por mim construídas.

A participação é uma condição requerida em todo o processo social. É muito difícil encontrar alguém que, deliberadamente, possa colocar-se contra a participação, afinal, no mundo empresarial, o modelo de gestão requer a participação ativa do funcionário, “vestindo a camisa da empresa” a fim de reduzir custos e aumentar a competitividade e o lucro, visto que, em última instância, quem faz a diferença não são as novas tecnologias, mas empregados criativos, participativos e dinâmicos. Mas o que é mesmo participar? Segundo Habermas (1975, p.159), “significa que todos podem contribuir, com igualdade de oportunidades, nos processos de formação discursiva da vontade.” Interpretando-a Catani e Gutierrez nos diz que “participar consiste em ajudar a construir comunicativamente o consenso quanto a um plano de ação coletivo.” (2000, p.62). Nesse sentido a participação requer, a meu ver, o envolvimento de diferentes atores sociais num ambiente democrático e dialógico, para que a formação discursiva da vontade não caia no erro da imposição da vontade, tornando-a artificial, uma espécie de contravontade. Em função disso esse ambiente é criado, não por artificialidades burocráticas e demagógicas, mas por uma necessidade coletiva detectada pragmaticamente pelo coletivo de pessoas que partilham de uma experiência semelhante sobre o mundo em que estão inseridos.

Acredito que a participação vem primordialmente da necessidade, embora reconheça que o desejo tem fontes inescrutáveis e o inconsciente irrompe em forma de desejo que oculta a falta, o vazio deixado pelas transformações pessoais que o sujeito sofre na cultura e na sociedade onde, forçosamente, é obrigado a inserir-se. Catani e Gutierrez chamam a atenção dos quantificadores de participação quando afirmam que:
O grande problema da necessidade aliada à motivação é o tipo predominante de necessidade que aciona o desejo e motiva a participação. A “consciência individual do ator” chamado à participação pode estar completamente equivocada sobre o objetivo geral que guia a convergência das ações desencadeadas num processo participativo. Um fenômeno que venho detectando em minha experiência docente é a que lida com o fenômeno da avaliação e da nota no processo de formação de professores de Geografia, História e Educação Física. Posso afirmar, com ressalvas e certa necessidade de aprofundamento, que o que motiva primordialmente e prioritariamente a participação do licenciando em seu processo de formação é a nota. Ora, se isto for uma realidade, a participação dos licenciandos em seu processo de formação dificilmente o conduzirá à autonomia política e intelectual tão decantada nas diferentes abordagens pedagógicas da contemporaneidade, posto que o resultado da formação se traduz em profissionais que esperam a recompensa de suas ações e não agem proativamente em direção a “(...) ajudar a construir comunicativamente o consenso quanto a um plano de ação coletivo.”
A vontade de poder quantificar os graus de participação, aliada à inexistência de um critério consensual que a defina, leva o pesquisador a ter que lidar com duas questões que dificultam qualquer análise. Em primeiro lugar é muito complexo dar conta da consciência individual do ator chamado a participar, sua verdadeira e íntima vocação, compreendida aqui como a disposição pessoal para engajar-se no processo. Outro problema é que esta situação permite associar o grau de participação ao número de pessoas consultadas; ou seja, induz a acreditar que muitos indivíduos, interferindo fortemente em muitas decisões, constitui um sistema bastante participativo. (CATANI e GUTIERREZ, 2000, p.61)

A necessidade, portanto, geradora da participação, pode não ser uma necessidade concreta, ideologicamente dirigida pelas impressões indignadas que o sujeito tem da sociedade onde está inserido, mas uma necessidade artificialmente criada por instituições educativas que mais escravizam que emancipam os sujeitos que por elas passam em busca de determinada inserção social.

Nessa adversidade, a questão é saber como a história irrompe na vida de todo dia. Como no tempo miúdo da vida cotidiana, travamos o embate, sem certeza nem clareza, pelas conquistas fundamentais do homem das múltiplas misérias que o fazem pobre de tudo: de condições adequadas de vida, de tempo para si e para o seus, de liberdade, de imaginação, de prazer no trabalho, de criatividade, de alegria e de festa, de compreensão ativa de seu lugar na construção social da realidade. Uma vida em que, além do mais, tudo parece falso e falsificado, até mesmo a esperança, porque só o fastio e o medo parecem autênticos. Na abundância aparente, não estamos realizados – estamos apenas saturados e cansados em face dos poderes que parecem nos privar de uma inteligência histórica do nosso agir cotidiano. (MARTINS, 2010, p.10)
Portanto, devemos pensar se, como educadores e mediadores, em qualquer campo de ação, seja no presencial, seja na EaD, não estamos acionando contraditoriamente e sistematicamente a manutenção da ordem vigente conservadora na medida em que “ domamos” com um autoritarismo dócil e perverso, a politicidade crítica da participação a meros anseios de colocação profissional dos nossos educandos cuja representação máxima é a nota. “Na abundância aparente” de diplomas e certificações, de discursos e de palmas, a participação pode ser privada de sua inteligência histórica, dirigida erroneamente para a realização de necessidades artificiais, mercadorias do nosso tempo e do nosso campo profissional docente.

Ora, a participação então deixa de ser um ponto pacífico para tornar-se um ponto problemático, o que vai exigir um aprofundamento e certa sensatez em sua abordagem, ao invés da panaceia com que é tratada nos discursos que circulam no interior das instituições. A vontade é docemente coagida, tanto pela instituição formativa quanto pela sociedade em seu funcionamento, a assumir-se restritivamente nos quadros de um desejo mesquinho que busca a formatura como ascensão social e cultural.

Do ponto de vista da autonomia, Freire (2002) no ensina que o ato educativo deve se dar em dois movimentos convergentes: o movimento político da passagem da heteronomia dependente para a autonomia responsável e, o movimento epistemológico da passagem da curiosidade espontânea para a curiosidade epistemológica. Ora, creio que esta passagem não se dá se a nota impera nos processos de formação de professores. Ao invés de autonomia responsável temos o aprofundamento da heteronomia dependente, onde o educando torna-se refém da nota e do professor e este último também. A aprendizagem, o domínio de conhecimentos, técnicas, habilidades, atitudes e comportamentos ficam relegados a meios para atingir o fim: a nota. Esta impera e contamina a vontade, o desejo e adoece o processo de construção coletiva da autonomia dos sujeitos, que abrem mão de sua decisão e sucumbem como zumbis à procura da nota que os qualifica para o mercado. A autonomia aí, como afirma Barroso (2000) é decretada burocraticamente, não construída.

Barroso (2000) nos fala que “a autonomia é um conceito relacional (somos sempre autônomos de alguém ou de alguma coisa) pelo que a sua ação se exerce sempre num contexto de interdependências e num sistema de relações.” (p.16). O sujeito aprendente necessita exercitar sua autonomia como necessidade subjetiva de construção de si mesmo e do próprio sistema de relações sociais e culturais específico onde está inserido e precisa se inserir com dignidade. Não basta “decretar” discursivamente a vontade de autonomia para o outro, mas permitir, motivar, subsidiar essa busca permanente através de mecanismos institucionais concretamente democráticos, reduzindo a armadilha sedutora do diploma e do caminho simbólico até ele, a nota, ou melhor, um conjunto de notas que se somam, como se representassem o conhecimento adquirido pelo educando num processo democrático onde sua autonomia, sua vontade e seu desejo participaram de seus atos formativos.

A EaD oferece possibilidades concretas de rupturas com os artificialismos autoritários que mais escamoteiam que transparecem seus mecanismos de sujeição da vontade e controle da participação, relegando a autonomia ao imperativo do “você fazendo o que eu quero, terá a nota merecida”. Mesmo os wiki’s, os fóruns, os chat´s, os AVA’s, as enquetes, os link’s e todos os demais recursos disponibilizados pela EaD podem acionar processos avaliativos em que o sujeito aprendente tenha uma autonomia reduzida a parâmetros restritos estabelecidos nas práticas educativas acionadas no processo e uma participação dirigida para propósitos que não lhe diz respeito, reduzindo seu ímpeto curioso, seu espanto filosófico e sua vontade de aprender e continuar aprendendo para além da nota e do diploma.

Joselito Manoel

REFERÊNCIAS
BARROSO, João. O reforço da autonomia das escolas e a flexibilização da gestão escolar em Portugal. In Gestão democrática da educação: atuais tendências, novos desafios. Naura Carapeto Ferreira (org.) 2. Ed. São Paulo: Cortez, 2000.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 24. ed. São Paulo/SP: Paz e Terra, 2002.
GUTIERREZ, Gustavo Luis; CATANI, Afrânio Mendes. Participação e gestão escolar: conceitos e potencialidades. In Gestão democrática da educação: atuais tendências, novos desafios. Naura Carapeto Ferreira (org.) 2. Ed. São Paulo: Cortez, 2000.

MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. 2. Ed. São Paulo: Contexto, 2010. 

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