sexta-feira, 22 de abril de 2011

Religioso sem religião

Eu sou religioso, pois gosto de religar algumas coisas que estão ao meu alcance. Não tenho, porém, religião, pois eu sei o quanto ela atrapalha a religação entre as coisas que ela classifica como bem e mal, como certo e errado, como pecado e virtude. Há um Jesus que a Bíblia nos apresenta e que não é o mesmo Jesus que as instituições eclesiais nos impõem goela abaixo. O Jesus da Bíblia dialoga com todas as pessoas, ouvindo atentamente a sua lógica tecida culturalmente no seio da sociedade. É um Jesus que anda no meio do povo e toma partido pelo injustiçado; um Jesus que procura compreender profundamente o contexto em que está inserido. Por isso vai curioso ouvindo histórias, olhando a paisagem, interagindo com as culturas locais, percebendo seus vetores de poder, de saber, de esperança. Garimpa os achados e elabora sua mensagem com metáforas, alegorias, parábolas, produzindo mediações religadoras entre as coisas do céu e da terra.

Leonardo Boff, em seu livro O Pai Nosso, nos explica essa oração fundante do cristianismo de modo elucidativo. Ele nos ensina que tal oração consta de duas partes: A primeira parte lembra ao ser humano sua obrigação sagrada com o Senhor Supremo do Céu: O Pai, a santificação do seu Nome, a vinda do Seu Reino, a satisfação de Sua Vontade, vontade de amor, de alegria, de compartilhamento festivo de toda a criação e a criatividade Dele, além de nossa ação transformadora e cuidadosa com sua criação. Assisti ao filme "Avatar". Foi o filme mais místico e religioso que assisti nos últimos anos. Toda a criação compõe uma simbiose onde todas as coisas estão ligadas no curso da vida. E mesmo quando a morte vem é traduzida como uma continuidade, uma devolução ao cosmos, à senhora Vida, do que nos foi dado, seguindo a lógica do “(...) e ao pó tu voltarás”. “A Paixão de Cristo” eu já assisti “n” vezes. Sempre no período da Quaresma. Tornou-se obrigação oficial e, por isso mesmo, perdeu sua força fundadora, revolucionária, que falava que aquele acontecimento representava a verdadeira e radical transformação do mundo a favor dos pobres, humildes, encarcerados, marginalizados. Ao contrário: ganhou status de mercadoria, onde atores globais encenam o personagem “divino”. Coloco aspas em “divino” para sinalizar a contrariedade de um personagem que torna-se mercadoria, cujo valor agregado vem, não de Jesus, mas do ator global que encarna, a um cachê nada desprezível, seu personagem magnífico. E vão todos os clientes, digo, os fiéis, curtirem Nova Jerusalém, ver o “grande” ator desempenhar seu papel fora das novelas, digo, renovarem sua fé Naquele que nos libertou das garras do Satanás.

Na segunda parte da Oração do Pai Nosso as necessidades humanas são lembradas. O pão, representando o cuidado com as coisas temporais, a luta histórica pela sobrevivência. Somos seres biológicos e, como tais, precisamos, antes de tudo, nos alimentar para, como diria Marx, fazer história. O perdão necessário que representa o cuidado com a saúde do espírito. Depois vem o pedido de proteção contra as tentações e contra o mal ameaçador da dignidade humana, de seu aconchego com Deus. As tentações estão sempre presentes e precisamos orar e vigiar para não cairmos em tentação. O Pai Nosso religa, media a relação do ser humano com Deus. Esta oração é um documento que demonstra, pela fé, que Deus nos quer perto Dele, e faz sacrifícios supremos para conseguir isso, nos acompanhando como um Grande Pai por toda a nossa história. Deus nos espera de braços abertos. Com esses "braços abertos" não o imagino sofrido numa cruz, ensanguentado, abandonado por nós. O imagino sorridente, de braços abertos esperando o abraço feliz de quem, compreendendo o seu incrível sacrífico, o ama. Deus está aqui e eu quero abraçá-lo. Ele me espera num lugar bonito, arejado com brisas amenas, com um céu azulado e uma paisagem verdejante. Esse lugar é encantado e existe antes de mim. Mas para que eu possa entrar nele, é preciso que ele entre em mim antes, como um sonho de um mundo ecologicamente cuidado, preservado pelas mãos de pessoas sensíveis, que desejam viver num lugar assim, cultivado em seu seio. Um lugar dentro de nós, para existir fora de nós.

Eu quero fazer parte desse lugar, e por isso devo cultivá-lo dentro de mim. Deus está em todo lugar. Se assim o é, todo lugar é um templo vivo de adoração, pois ali está Aquele que tudo criou. Quando eu jogo lixo no chão estou me lixando para isso, ainda que minha ignorância me perdoe dessa ofensa. E o diabo fica rindo de cada esgoto, de cada lixão, de cada sujeira, no ar, na água, no chão. Voltando ao filme “Avatar”, lembrei-me da cena da caça. A linda nativa faz uma oração para a vida que interrompe a fim de alimentar sua comunidade. Que coisa mais linda! Há um reconhecimento da consciência de que interrompeu uma vida e por isso ora, pedindo autorização à Vida pela vida que tira. Eu não fui nesta quaresma à igreja alguma rezar. Não preciso. Deus me fala em todo lugar. Claro que sinto falta da comunidade que, com todos os seus defeitos, rezava uma oração bem maior que a minha, que a minha oração rezava junto. Alguns até podem alegar, com certa razão, que entrei num individualismo religioso que me afasta do próprio Deus, que se revela, predominantemente, na comunidade. Mas eu pergunto: Que comunidade? Que comunidade existe depois que as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) foram desarticuladas pelos poderes conservadores da igreja católica? Depois que entramos no cristianismo de resultados, onde muitas pessoas buscam o santo não pelo exemplo, mas pelo milagre, o sentido de comunidade que partilha o pão e faz história perdeu sua vitalidade escatológica.

Só me resta a tentativa de religar coisas, do “desejo ao impossível”, de juntar o que está partido, o que separa, pois o sentido do sagrado é isso. O que é atirado converge, vai junto; enquanto que o diabólico é divergente, separador, que dispersa forças nas construção coletiva e comunitária de um mundo melhor para todos, do lugar que deve existir antes dentro, para ser construído fora. Eu tenho minha espiritualidade, minha sensibilidade que percebe nos detalhes de cada dia o Deus Vivo que me fala de um outro mundo possível, de um Reino diferente, onde rei e presidente vivam contentes no meio do povo, partilhando palavras, alimentos, vivências solidárias de amor e compaixão. Sou religioso sem religião.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ecinho, de Itajacira, de José Jorge, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

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