Vou dizer, a
"dita" continua dura, não amoleceu, ainda não teve tempo. Tentem denunciar o que estão vendo - o rei está nu! - e verão o que acontece. Há um
silenciamento não explícito que, embora percebamos o que acontece a nossa
volta, não podemos pronunciar, senão a morte começa a ser anunciada na pronúncia de nossas dores e sofrimentos. E a morte a
que me refiro vem com muitas aparências.
Primeiro vão tentando desqualificar nossa pronúncia. Começam a nos chamar de "afetados", loucos(as), sapatão, viado, imbecil... Depois, quando essa estratégia não funciona, começam a tentar nos enfrentar com a lei, escrita por eles, e seus advogados - sem desmerecer os advogados. Em seguida começam as ameaças e, finalmente, um dia um tiro tenta nos calar. Mas balas não têm o mesmo poder da palavra. Romantizo, para poder continuar crendo. Sou apaixonado pelo livro de João Ubaldo Ribeiro: O sorriso do lagarto. Ele nos ensina que uma bala medeia a relação truculenta do poder político, do poder científico e do poder religioso frente ao poder comunitário, às crenças e a religiosidade populares, à verdade, ao romance e ao amor.
Primeiro vão tentando desqualificar nossa pronúncia. Começam a nos chamar de "afetados", loucos(as), sapatão, viado, imbecil... Depois, quando essa estratégia não funciona, começam a tentar nos enfrentar com a lei, escrita por eles, e seus advogados - sem desmerecer os advogados. Em seguida começam as ameaças e, finalmente, um dia um tiro tenta nos calar. Mas balas não têm o mesmo poder da palavra. Romantizo, para poder continuar crendo. Sou apaixonado pelo livro de João Ubaldo Ribeiro: O sorriso do lagarto. Ele nos ensina que uma bala medeia a relação truculenta do poder político, do poder científico e do poder religioso frente ao poder comunitário, às crenças e a religiosidade populares, à verdade, ao romance e ao amor.
A genialidade de João
Ubaldo brinca com nossos sentimentos e, com essa pedagogia em sua obra acima
citada, nos atira a verdade na cara, mostrando que o lagarto pode nos sorrir a
qualquer momento no exercício perverso dos poderes hegemônicos. No "O sorriso do lagarto" há um caixão simbólico na Baía
de Todos os Santos. Neste caixão há um corpo do personagem João Pedroso. Neste
corpo há muitas mortes. Mortes de sonhos de amor, de liberdade, de emancipação,
de participação. Morte do sonho de verdade, sonho de ver o ser humano com mais
sabedoria e menos poder. No fundo da baía fria, não há somente um corpo
simbólico de João Pedroso que a ficção ubaldiana criou, há todo o sonho de um
povo, afundado pela ditadura num caixão bem trancafiado, para o corpo não
pronunciar a sua morte e reclamar a sua justiça, caso apareça boiando n'alguma
praia de Salvador. Há muito mais corpos, há muito mais sonhos, há muito mais desejos
emancipatórios ali, no fundo da baía de todos os demônios e santos. O silêncio
do fundo marítimo no O sorriso do lagarto tem gritos abafados de dor, revolta,
indignação e sofrimento.
Não sou contra o
poder. Ele é intrínseco ao ser humano vivendo em sociedade. Em toda e qualquer
relação humana há poder. Mas penso que esta dimensão humana deve estar a
serviço dos sonhos de felicidade e não o seu contrário, como é de praxe. O
poder deve estar a serviço do amor, da paz, do encontro da humanidade com um
destino permanentemente construído pela solidariedade, pela justiça, pelo amor.
O tiro só encontra o alvo, a violência só se justifica e a morte só se realiza
quando a solidariedade, a justiça e o amor não constituem o currículo do poder.
Aí o poder se torna insano, mesquinho, individualista, hipócrita, violento e
assassino, produzindo mortes diversas, seja num antigo campo de concentração
nazista, seja nas senzalas do Brasil escravagista, seja nos latifúndios
nordestinos, seja na xenofobia européia, seja nas guerras civis africanas, seja
nos subúrbios e nas favelas das periferias do mundo.
[...]
A uns três metros dele, um bulício num dos canteiros rompeu o silêncio e ele
foi ver o que era. Era um grande lagarto esverdeado e iridescente, que pôs a
cabeça para fora de uma touceira de margaridas e o encarou, mostrando e
recolhendo a língua repetidamente. O lagarto de João Pedroso, o lagarto que
sorria, o lagarto que ainda ia sorrir mais? Não era possível que um lagarto
sorrise, mas a verdade é que, depois de se aproximar mais um pouco, sentiu que
realmente havia algo de um sorriso em torno do bicho e não sorria para ele, mas
como que sorria dele. (João Ubaldo Ribeiro. O sorriso do lagarto, p. 362)
O
lagarto sorri na ferida exposta, no sangue que escorre, na vida que morre. O
lagarto sorri no poder insano, no ditador soberano, na pena de morte. O lagarto
sorri na fome que come o faminto, na execução sumária, na morte diária, no
enterro indigente. O lagarto sorri no bispo que cala e consente, no policial
que lucra matando, no juiz que vende sentenças, no advogado que vende a alma,
no governo que vende mentiras, nos/as deputados/as que são evangélicos por
causa do voto fácil. O lagarto sorri nos corpos atolados de lama, nos dramas do
morro e das suas baixadas. O lagarto sorri na floresta que some na serra
elétrica, no inferno que queima toda a pele da terra e estorrica a esperança do
povo.
Autoria: Joselito da
Nair, do Zé, de Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
E o sorriso do lagarto, parece, estorricou a esperança...
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