quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Os Sorrisos do Lagarto

Vou dizer, a "dita" continua dura, não amoleceu, ainda não teve tempo. Tentem denunciar o que estão vendo - o rei está nu! - e verão o que acontece. Há um silenciamento não explícito que, embora percebamos o que acontece a nossa volta, não podemos pronunciar, senão a morte começa a ser anunciada na pronúncia de nossas dores e sofrimentos. E a morte a que me refiro vem com muitas aparências. 

Primeiro vão tentando desqualificar nossa pronúncia. Começam a nos chamar de "afetados", loucos(as), sapatão, viado, imbecil... Depois, quando essa estratégia não funciona, começam a tentar nos enfrentar com a lei, escrita por eles, e seus advogados - sem desmerecer os advogados. Em seguida começam as ameaças e, finalmente, um dia um tiro tenta nos calar. Mas balas não têm o mesmo poder da palavra. Romantizo, para poder continuar crendo. Sou apaixonado pelo livro de João Ubaldo Ribeiro: O sorriso do lagarto. Ele nos ensina que uma bala medeia a relação truculenta do poder político, do poder científico e do poder religioso frente ao poder comunitário, às crenças e a religiosidade populares, à verdade, ao romance e ao amor.

A genialidade de João Ubaldo brinca com nossos sentimentos e, com essa pedagogia em sua obra acima citada, nos atira a verdade na cara, mostrando que o lagarto pode nos sorrir a qualquer momento no exercício perverso dos poderes hegemônicos. No "O sorriso do lagarto" há um caixão simbólico na Baía de Todos os Santos. Neste caixão há um corpo do personagem João Pedroso. Neste corpo há muitas mortes. Mortes de sonhos de amor, de liberdade, de emancipação, de participação. Morte do sonho de verdade, sonho de ver o ser humano com mais sabedoria e menos poder. No fundo da baía fria, não há somente um corpo simbólico de João Pedroso que a ficção ubaldiana criou, há todo o sonho de um povo, afundado pela ditadura num caixão bem trancafiado, para o corpo não pronunciar a sua morte e reclamar a sua justiça, caso apareça boiando n'alguma praia de Salvador. Há muito mais corpos, há muito mais sonhos, há muito mais desejos emancipatórios ali, no fundo da baía de todos os demônios e santos. O silêncio do fundo marítimo no O sorriso do lagarto tem gritos abafados de dor, revolta, indignação e sofrimento.

Não sou contra o poder. Ele é intrínseco ao ser humano vivendo em sociedade. Em toda e qualquer relação humana há poder. Mas penso que esta dimensão humana deve estar a serviço dos sonhos de felicidade e não o seu contrário, como é de praxe. O poder deve estar a serviço do amor, da paz, do encontro da humanidade com um destino permanentemente construído pela solidariedade, pela justiça, pelo amor. O tiro só encontra o alvo, a violência só se justifica e a morte só se realiza quando a solidariedade, a justiça e o amor não constituem o currículo do poder. Aí o poder se torna insano, mesquinho, individualista, hipócrita, violento e assassino, produzindo mortes diversas, seja num antigo campo de concentração nazista, seja nas senzalas do Brasil escravagista, seja nos latifúndios nordestinos, seja na xenofobia européia, seja nas guerras civis africanas, seja nos subúrbios e nas favelas das periferias do mundo.
[...] A uns três metros dele, um bulício num dos canteiros rompeu o silêncio e ele foi ver o que era. Era um grande lagarto esverdeado e iridescente, que pôs a cabeça para fora de uma touceira de margaridas e o encarou, mostrando e recolhendo a língua repetidamente. O lagarto de João Pedroso, o lagarto que sorria, o lagarto que ainda ia sorrir mais? Não era possível que um lagarto sorrise, mas a verdade é que, depois de se aproximar mais um pouco, sentiu que realmente havia algo de um sorriso em torno do bicho e não sorria para ele, mas como que sorria dele. (João Ubaldo Ribeiro. O sorriso do lagarto, p. 362)
O lagarto sorri na ferida exposta, no sangue que escorre, na vida que morre. O lagarto sorri no poder insano, no ditador soberano, na pena de morte. O lagarto sorri na fome que come o faminto, na execução sumária, na morte diária, no enterro indigente. O lagarto sorri no bispo que cala e consente, no policial que lucra matando, no juiz que vende sentenças, no advogado que vende a alma, no governo que vende mentiras, nos/as deputados/as que são evangélicos por causa do voto fácil. O lagarto sorri nos corpos atolados de lama, nos dramas do morro e das suas baixadas. O lagarto sorri na floresta que some na serra elétrica, no inferno que queima toda a pele da terra e estorrica a esperança do povo.

Autoria: Joselito da Nair, do Zé, de Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

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