O silêncio não é o vazio, o sem-sentido; ao contrário, ele é o indício de uma totalidade significativa. [...] É o silêncio a própria condição da produção de sentido, o lugar que permite à linguagem significar.
(Eni Orlandi, 2002, p. 70)
O silêncio não é simplesmente a ausência da palavra. Há muitos tipos de silêncio. E todos revelam e expressam determinada situação. Há o silêncio da sabedoria, que é o momento de ouvirmos bastante para tentar compreender. O silêncio de escuta é praticado, geralmente, pelos mais velhos. A maturidade escuta muito, para poder pronunciar alguma palavra. Procura entender o seu interlocutor, seu contexto, seus motivos e seus anseios, a fim de construir a ponte de palavras que permitirá a comunicação entre ambos. Quando uma anciã e um ancião falam, podem vir também muitos equívocos e preconceitos sobre o objeto a que nos referimos. Mas há muito de uma experiência vivida, almagamada com a intuição, os sentidos diversos e a sabedoria partilhada durante anos nas diversas interações vividas com seus contemporâneos em múltiplas situações.
Outro silêncio é aquele deliberado, quando temos a necessidade de contemplar a nossa vida, o que fizemos, o que temos a fazer, o que erramos, o que ainda é possível melhorar. É um silêncio monástico, contemplativo, um silêncio de advento, aguardando revelações. Penso que, assim como a escrita da poesia em mim acontece, ou seja, eu não digo: - agora vou escrever uma poesia. Não é assim que acontece. A poesia inscreve-se em mim, por um processo de germinação no seio do meu ser. Assim também a revelação ou as revelações, não vem do céu, de um espírito superior, vem da ruminação que elaboramos reflexivamente sobre a nossa existência e, sem hora marcada, apresenta sua síntese. Eu faço silêncio para esperar pela palavra. Essa palavra é marcada pela minha singularidade no mundo com os outros. Eu forço nela a sabedoria relativa que tenho. Eu procuro nela alguns pequenos segredos da minha vida cotidiana que, embora sempre estejam a minha frente, não consigo ver num mundo saturado de sons e cores. E o silêncio se faz um espaço precioso para poder ouvir, sem os olhos, pois os olhos, neste caso, cegam e ensurdecem, a verdade que se esconde, cotidianamente, diante de mim.
Há também o silêncio dos cínicos. Silêncio funesto, que faz “vistas grossas” às situações que mereceriam palavras duras, gritos, ordens. É um silêncio maldito, que oculta, que esconde, que protege o delinqüente, o marginal. Hanna Arendt, em seu livro A condição humana, refere-se a dois tipos de silêncio, entre os quais o silêncio a que refiro-me acima.
Embora ninguém saiba que tipo de “quem” revela ao se expor na ação e na palavra, é necessário que cada um esteja disposto a correr o risco da revelação; e nem o praticante de boas ações, que precisa ocultar sua individualidade e manter-se em completo anonimato, nem o criminoso, que precisa esconder-se dos outros, pode correr o risco de revelar-se. Ambos são indivíduos solitários; o primeiro é “pró” e o segundo é “contra” todos os homens; ficam, portanto, fora do âmbito do intercurso humano e são figuras politicamente marginais que, em geral, surgem no cenário histórico em épocas de corrupção, desintegração e decadência política. Dada a tendência intrínseca de revelar o agente juntamente com o ato, a ação requer, para sua plena manifestação, a luz intensa que outrora tinha o nome de glória e que só é possível na esfera pública. (ARENDT, 2004, p. 192-193)
O silenciamento é um ato contra a humanidade. Se existir humanamente é pronunciar o mundo, como afirmava Paulo Freire, silenciar o outro é desumanizá-lo. Somente pode falar quem... reduz outros ao silêncio, ao reino animal, vegetal. Boaventura de Sousa Santos (2001), em seu livro A crítica da razão indolente, afirma que “O silêncio é, pois, uma construção que se afirma como sintoma de um bloqueio, de uma potencialidade que não pode ser desenvolvida.” (p. 30). E há muitas potencialidades relegadas em nosso país ao silenciamento estúpido que os poderosos, e nem tão poderosos assim, impõem. É preciso fazer silêncio dentro de nós para poder dialogar com nossas atitudes, pois pode ser que, também nós, silenciemos os outros. É preciso dialogar com nossos demônios nos espaços de silêncio criados em nós para podermos saber quem somos nessa dialética silêncio/palavra. Precisamos enriquecer nosso silêncio, nosso discurso interior, com o diálogo fecundo conosco, no âmago do nosso ser, para ir encontrando-se com a palavra verdadeira que muitas vezes traímos.
Não façamos apenas um minuto de silêncio. Este minuto é de morte. Façamos silêncios de vida, onde a palavra possa ser fecundada por mundos interiores de amor, de romances, de emancipações, de justiças, de ética, de respeito às diferenças nas práticas interpessoais, de alegrias compartilhadas pelas conquistas, não sobre os outros, mas com os outros. Neste final de ano, eu quero ficar um tempo em silêncio. Preciso me encontrar por lá em mim mesmo, para poder pronunciar-me emancipadamente contra a hipocrisia, contra o cinismo, contra a arrogância, contra o barulho das mil coisas que nos engolem, mesmo quando estamos de licença-prêmio.
Autoria: Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.
olha, zelito. ia ficar em silêncio, para refletir sobre o dizer, mas resolvi me pronunciar: o escutar é um aprendizado e no mundo da pressa, do individualismo, cada vez mais estamos esquecendo de escutar o outro e a nós mesmos. temos uma predisposição para enunciar a palavra q fere, q rasga o outro aos poucos (e q por isso tb nos rasga). n percebemos isso. por isso, silêncio é sim sabedoria. o tempo do calar-se para enunciar é necessário. para q nós n calemos quem mais gostamos ou de quem precisamos! beleza de texto! parabéns!
ResponderExcluirObrigado pela sua sensibilidade que aqui fica em forma de escrita.
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